Mauro Iasi: O ovo do pato - notas sobre
ideologia no capitalismo decadente
O
presidente dos EUA, Donald Tramp, que na tradução literal seria uma
espécie de pato vagabundo, anunciou aos quatro ventos que estava assinando “uma
ordem executiva histórica instituindo tarifas recíprocas a países de todo o
mundo”, e explica: “se eles fazem conosco, vamos fazer com eles”. Modestamente,
como é próprio do personagem, completa: “Este é um dos dias mais importantes,
na minha opinião, na história dos Estados Unidos”.
Enquanto
a cabeleira amarelo-milho esvoaça ao vento do Norte, as bolsas despencam em
todo o mundo, os investidores entram em pânico, o dólar cai, o presidente
segura uma tabela com dados falsos e um operário empresta seu apoio usando um
boné que espera que a América seja grande novamente, fabricado na China.
Sardenberg
diz que todos os grandes economistas — o que certamente não inclui o jornalista
— estão perplexos. Na rádio que só toca notícias, faz um desabafo lacrimejante,
dizendo que o tarifaço de Trump encerra um longo período de crescimento
econômico, diminuição da pobreza e no qual os investimentos dos EUA ajudaram os
países pobres no seu desenvolvimento.
Podia
ser um episódio dos Simpsons, podia ser uma briga no parquinho onde
um garoto minado empurra outro e fala para mãe: foi ele que começou. Mas é o
presidente da maior economia capitalista do mundo, sentado em um arsenal
nuclear com 5111 ogivas operacionais e ativas e quase oitocentas bases
militares pelo mundo afora que quer roubar a Groelândia do amiguinho
dinamarquês.
Jeffrey
Sachs, o professor de economia de Harvard e Columbia, que assessorou o FMI, o
Banco Mundial e a OCDE; e ajudou a Polônia, Eslovênia e Rússia a abandonarem o
socialismo e construírem a economia de mercado, desconcertado declara que não
sabe se é “apenas retórica, ignorância ou confusão”, mas que sabe que é “uma
política econômica incrivelmente ruim”.
Vamos
tentar ajudar Sachs, como ele ajudou a Bolívia de Paz Estenssoro a conhecer as
maravilhas do neoliberalismo e das privatizações. O modo de produção
capitalista, que esse senhor se empenhou tanto em propagar pelo mundo como
alternativa ao perigoso comunismo, só sobrevive através de ciclos de
crescimento e crise, nos quais o processo de valorização levanta barreiras
contra si mesmo. Na raiz da crise do capital está o processo contínuo de
valorização que leva à superacumulação e à alteração inevitável da composição
orgânica do capital, cada vez mais proporcionalmente concentrada no capital
constante do que no capital variável, o que resulta a longo prazo na queda das
taxas de lucro.
Para
quem tem dificuldade de entender esses termos, eu só posso aconselhar que
larguem seus gurus das redes sociais e comecem a ler O capital (na Boitempo tem).
Bom, o capital tenta compensar a queda nas taxas de lucro através de
contratendências, tais como o aumento da exploração do trabalho, a redução de
salários, o aumento da superpopulação relativa, o barateamento das matérias
primas e insumos, o aumento de mercados e a especulação financeira (tá lá no
Marx, no livro III). Além disso,
o imperialismo (Lênin, 2021) e
a guerra tornaram-se no capitalismo desenvolvido um meio eficaz de queimar
capitais, assim como o complexo industrial-militar (Mészáros, 2002).
Acontece
que, como nos ensinou Mandel (1990), o desfecho da crise de superacumulação e
superprodução não tem como ser racional. Mesmo diante da crise, que exige a
queima de capitais, os empresários tendem a investir jogando gasolina no
incêndio. Neste momento, a crise estoura na forma de quebra de empresas,
desemprego, ociosidade da capacidade instalada e queima descontrolada até criar
as condições de novos investimentos com taxas de lucro aceitáveis.
O
imperialismo (novamente, segundo Lênin) funciona como uma grande
contratendência porque exporta capitais e os reproduz de forma ampliada em suas
áreas de influência, partilhando e repartilhando o mundo através da guerra.
Ocorre, no entanto, que as nações sedes do imperialismo assumem, cada vez mais,
um caráter parasitário, isto é, vivem do valor produzido pelo capital
mundializado e do capital financeiro. O capital não tem pátria, mas as nações
imperialistas continuam sendo nações, com seu povo e seu governo, levando ao
fato que o capital pode entrar em contradição com o interesse nacional.
Para o
capital alemão, é muito melhor explorar um operário brasileiro na Volkswagen do
que um operário alemão. O operário na Alemanha ganha aproximadamente 2.150
euros ( R$ 13.388,00, mais ou menos, ou 62 euros por hora), enquanto o
brasileiro ganha na mesma empresa cerca de R$ 4.000,00 (cerca de 645 euros ou
1,74 euros por hora).
Quando
falamos em balança comercial, as coisas são diferentes, dado que cada vez mais
os países imperialistas produzem mercadorias fora de seus territórios
nacionais, concorrendo com suas indústrias nacionais. Mais de 90% dos Iphones
da Apple são montados na China. Nesse ponto, Jeffrey Sachs tem razão: o
problema não é a balança comercial deficitária. O que ele não compreende, e por
isso oferece uma saída clássica (cortar gastos do Estado), é que o déficit
comercial é compensado em muito pela remessa de mais-valor advindo da
superexploração nas áreas de influência do imperialismo e pelo fluxo do capital
financeiro.
Mas
isso resolve o problema do capital, não dos trabalhadores americanos que perdem
seus empregos graças à concorrência de suas próprias empresas transnacionais. O
pato vagabundo venceu os democratas no Cinturão da Ferrugem no Meio-Oeste,
antes conhecido como cinturão industrial, com a maioria dos votos operários que
alimentam o sonho da volta da indústria americana nos moldes do século XX.
Isso
não quer dizer, de forma alguma, que Trump virou um nacionalista em defesa dos
trabalhadores. Sua política de corte de empregos, de não taxar os ricos
financiadores de sua campanha, o endurecimento contra os imigrantes, o desmonte
dos serviços públicos, sua pauta moral (ou imoral) mostra bem seu interesse de
classe e seu caráter direitista, mas ele precisa de uma base popular e apoio
eleitoral, e capturou o descontentamento da classe trabalhadora.
O
embate entre o esclarecido professor de Harvard e o pato laranja com cabelo de
milho revela outra coisa. O professor racional tem razão: as medidas não vão
resolver o problema da indústria americana, provavelmente vão piorar muito a
situação, assim como é evidente que Trump mente e manipula, mas essa não é a
questão.
A
primeira pista para respondê-la está na epígrafe deste texto. A crise tem por
efeito aumentar as tensões no interior da própria classe dominante. A discórdia
é entre eles. Ocorre que Trump percebeu — melhor do que alguns segmentos da
esquerda brasileira — que o apoio popular é um importante fator na correlação
de forças.
O
segundo fator (para nós, fundamental) diz respeito à ideologia. Marx e Engels
nos apontam na mesma epígrafe que a crise que causa discórdia no seio mesmo das
classes dominantes revela, também, a perda de correspondência das ideias da
classe dominante, sua transformação em meras fórmulas idealizantes, em
hipocrisia deliberada. A ideologia que antes apresentava os interesses
particulares como se fossem universais perde sua correspondência com o real, e
“quanto mais elas são desmentidas pela vida e quanto menos valem para a própria
consciência, tanto mais resolutamente são afirmadas, tanto mais hipócrita,
moralista e santa se torna a linguagem da sociedade” (Marx e Engels, 2007, p.
285).
Vejamos
a questão mais de perto. O esclarecido professor de Harvard não encontra
racionalidade na proposta de Trump porque está procurando no lugar errado. Ele
está preso à noção weberiana da racionalidade instrumental, segundo a qual um
meio é racional quando adequado ao fim proposto. Esquece-se de que há outros
tipos ideais de racionalidade, como a tradicional, a afetiva, a ação orientada
por valores etc. O pai da sociologia compreensiva alerta que estes tipos
ideais, num contexto histórico concreto, se misturam, de forma que uma ação
racional quanto aos meios e fins pode se combinar com valores ou com o afeto.
Analisando
exatamente os EUA, Weber (2001) irá dizer que para ele a política americana era
a combinação da manipulação de meios irracionais para fins racionalmente
calculados, antecipando assim, sem o saber, o processo de ascensão do nazismo
em sua própria terra.
Trump
não tem um plano para salvar a economia dos EUA, nem para melhorar a vida dos
trabalhadores. Ele quer salvar o capital (dos séculos XIX e do início do século
XX) contra o capital (do século XXI). Ele quer,
“na minha opinião”, como disse no discurso do dia da
libertação, ele — o indivíduo extraordinário, o líder supremo. E,
portanto, precisa de recursos de poder que não encontra na outra face do
capital que já se tornou uma imensa e internacional máquina de acumulação e
parasitismo. Então ele busca o povo. Como o antigo Rei Sol, ele proclama: o
Capital sou eu.
Voltemos
à frase de Marx e Engels para entender o porquê do pato vagabundo não poder se
comunicar por meio de ideias, valores e representações que sejam claramente
significantes de significados precisamente determinados, isto é, ideias
correspondentes. Ora, pelo simples fato de que isso revelaria a crueza brutal
de seus interesses. Para isso, existe a ideologia, que oculta as determinações,
inverte, naturaliza, justifica o existente escondendo os interesses
particulares como se fossem universais. Ocorre que a força da ideologia reside
na sua correspondência com o real. Quando a burguesia afirmou-se como classe
universal e proclamou as palavras que constituem sua ideologia — igualdade,
liberdade, indivíduo, mercado, propriedade, livre concorrência — esses valores
correspondiam à materialidade de uma primeira fase do modo de produção
capitalista e da ascensão da burguesia. Com o desenvolvimento do capitalismo,
principalmente nos momentos de sua crise, esses valores se desidratam de sua
substância, vão se tornando meras frases idealizantes e, pouco a pouco, pura
hipocrisia e cinismo.
Assim,
não é possível pensar a fala e a ação do pato vagabundo nos termos de uma
racionalidade de meios e fins. Os valores da ideologia burguesa decadente são
explicitamente falsos e devem, portanto, ser reafirmados como sagrados
(mobilizados pela fé), manipulando afetos instintivos (irracionais), sem a
preocupação de esconder sua falsidade. São, por isso, hipócritas e cínicos
(Žižek, 2018).
Alguém
ainda acredita que a sociedade capitalista é a sociedade da igualdade? Alguém
ainda acredita na ideia positivista de progresso? Em que escaninho empoeirado
foi parar a ideia de fraternidade? As bombas que caem em Gaza são para defender
a liberdade e a democracia? No dia da libertação, quem foi liberto?
Enquanto
isso, o assecla nazifascista, Elon Musk, nos explica que a empatia não é um sentimento
humano eticamente aceitável, mas a fraqueza da sociedade ocidental, uma vez que
é manipulada pela esquerda para forçar o Estado a cercear a livre iniciativa
dos ricos e poderosos contra a natureza do mercado. Para ele, portanto, a
empatia é inimiga da liberdade.
Não
devemos considerar as falas desses senhores como piada, bobagens folclóricas ou
pura ignorância e confusão. Elas são a ideologia do capitalismo no seu máximo
desenvolvimento e, portanto, a ideologia de sua crise. É a forma adequada ao
conteúdo, que no caso do capitalismo plenamente desenvolvido não e a
civilização, mas a barbárie, ou, como dizia Benjamin, a civilização na forma de
barbárie.
Quando
a ideologia na sua forma de hipocrisia, que expressa a substância do
capitalismo em crise, encontra ressonância na classe trabalhadora e captura o
ressentimento da classe com o sistema capitalista, geram-se as condições para
que brote o fascismo. O ovo do pato chocou.
Fonte: Blog da Boitempo

Nenhum comentário:
Postar um comentário