Sob
críticas de maus-tratos, exportação de gado vivo dispara
O gado
geralmente é transportado das fazendas até os frigoríficos, onde é abatido.
Mas, em 2024, pouco mais de 1 milhão de bois, vacas e bezerros brasileiros
tiveram outro destino. Embarcados em navios, cruzaram oceanos, muitas vezes
cobertos de fezes e urina, até serem mortos no exterior – a maioria com a
garganta cortada enquanto ainda estavam conscientes.
A
exportação de animais vivos, também conhecida como exportação de gado em pé,
vem sendo proibida ou limitada em alguns países. No ano passado, o Reino Unido
aprovou uma lei proibindo o negócio, seguindo o exemplo da Nova Zelândia.
Austrália e Alemanha também impuseram restrições.
Já no
Brasil, a atividade está em expansão. Nos últimos 20 anos, mais de 8,8 milhões
de animais vivos foram exportados. Em 2024, o setor bateu recorde: mais de 1
milhão de bovinos — entre bois, vacas e bezerros — foram embarcados para países
como Turquia, Egito e Iraque, segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior
(SECEX). O volume representa um aumento de mais de 40% em relação a 2023.
Parte
desses animais estava a bordo do Al Kuwait. Uma investigação da ONG Repórter
Brasil mostrou que, em fevereiro de 2024, o navio tinha saído do Rio Grande do
Sul rumo ao Iraque, mas precisou parar na África do Sul, onde virou notícia
internacional. "Cidade do Cabo é atingida por odor ‘inimaginável' de 19
mil cabeças de gado em navio de exportação de animais vivos", noticiou o
jornal inglês The Guardian.
Representantes
do Conselho Nacional de Sociedades para a Prevenção da Crueldade contra Animais
da África do Sul entraram na embarcação e encontraram bois mortos, doentes e
cobertos de fezes. Classificaram a situação como "abominável".
Apesar
do crescimento, a exportação de animais vivos também enfrenta resistência no
Brasil. Especialistas e ativistas tentam barrar a atividade por meio da Justiça
e do Congresso, alegando maus-tratos aos animais, risco sanitário e poluição
nos mares.
• Confinados com fezes e urina
A
situação dos animais exportados vivos ganhou destaque em 2018. No dia 26 de
janeiro, no Porto de Santos, em São Paulo, teve início o embarque de 27 mil
bois rumo à Turquia. Devido a protestos de ativistas e a uma série de decisões
liminares, o navio Nada zarparia somente em 5 de fevereiro, quatro dias após o
previsto.
O
cheiro causado pelas fezes e urina dos animais infestou a cidade e foi descrito
como insuportável por muitos moradores. A pedido da Justiça, a
médica-veterinária Magda Regina entrou no navio para fazer um laudo das
condições dos bovinos.
"Os
animais são mantidos durante toda a viagem (que pode durar semanas, a depender
do destino) em espaços exíguos, confinados nas mesmas baias, juntamente com as
fezes e a urina resultantes deste processo", descreveu em um trecho do
documento.
A
médica-veterinária opinou que eram "abundantes os indicativos que
comprovam maus-tratos e violação explícita da dignidade animal". E afirmou
que "a prática de transporte marítimo de animais por longas distâncias
está intrínseca e inerentemente relacionada à causação de crueldade,
sofrimento, dor, indignidade e corrupção do bem-estar animal sob diversas
formas".
O laudo
foi uma das peças que levou a Justiça Federal de São Paulo a proibir a
exportação. Mas logo as instâncias superiores reverteram a decisão. Uma lei do
município de Santos que barrava a prática na cidade também foi revogada na
Justiça.
Os
maus-tratos aos animais são constantes, avaliou a médica-veterinária Maria
Eugenia Carretero, mestre e doutora em patologia animal e integrante nas ONGs
Canto da Terra e G269. "São toneladas de fezes e urina produzidas por dia,
às vezes chegando a uma altura de 30 centímetros. Imagino que o bicho doente ou
debilitado cai e aspira esse cocô", afirmou.
• O debate jurídico
Antes
mesmo desse episódio, em 2017, o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal
(FNPDA) havia entrado com uma ação na Justiça Federal de São Paulo contra a
União para tentar proibir as exportações em todos os portos do país. A ONG
sustentou que o transporte é realizado de modo cruel, assim como o abate a que
são submetidos.
Um dos
principais motivos para a importação de bovinos vivos é a forma do abate
adotado nos países muçulmanos. No método Halal, o abatedor precisa ser
muçulmano e cortar a garganta do animal com uma faca bem afiada – o bicho deve
estar consciente. Por isso esses países compram o boi vivo, para garantir que
este será morto da maneira que a religião preconiza.
"É
um método sem insensibilização", explicou Maria Eugenia Carretero.
"No Brasil é feita a insensibilização, geralmente com uma pistola
pneumática usada na cabeça. Você deixa o bicho em coma, se ela for bem
aplicada. O animal pelo menos vai ser sangrado sem ter consciência."
Em
abril de 2023, a Justiça Federal de São Paulo deu ganho de causa ao Fórum,
proibindo a exportação. Em fevereiro deste ano, no entanto, Tribunal Regional
Federal da 3ª Região (TRF3) derrubou a decisão, julgando que a atividade não
fere a legislação brasileira. O FNPDA está recorrendo.
• O debate no Congresso
Há pelo
menos dois projetos no Congresso pedindo o fim da exportação de animais vivos.
O projeto de lei (PL) 3.093, de 2021, é de autoria da Comissão de Direitos
Humanos do Senado. "Há constatações de superlotação, o que inflige
desgaste físico e dor aos animais, e práticas de crueldade no trato em
embarcações, ferindo a dignidade dos animais", descreveu o senador Fabiano
Contarato (PT-ES) em seu relatório.
Já o PL
521, de 2024, tramita na Câmara dos Deputados. "Atualmente, o transporte
de animais por via marítima para exportação é uma prática que levanta sérias
preocupações. O transporte inadequado, as condições insalubres e os espaços
reduzidos constituem maus-tratos evidentes", justificou o autor do
projeto, deputado Célio Studart (PSD-CE).
Além do
sofrimento dos animais, o relatório do senador Contarato destacou os riscos ao
meio ambiente e à saúde pública. Em relação ao primeiro, citou o acidente em
Barcarena, no Pará, em 2015. O navio afundou durante o embarque, matando 5 mil
bois e causando um desastre ambiental na região.
Em
relação aos riscos sanitários, Contarato lembrou de um caso na China. "É
muito importante destacar a crise provocada pelo surto de Peste Suína Africana
(PSA), que dizimou mais da metade do rebanho de suínos da China. A principal
hipótese para o fenômeno foi a chegada da doença por meio da importação de
animais vivos. Portanto, do ponto de vista de segurança sanitária, há
mecanismos mais eficientes de continuidade de produção de proteína animal, com
risco infinitamente inferiores."
• Regras deficientes
Em
agosto de 2024, a jornalista e ativista de direitos dos animais Janine Koneski
de Abreu entregou uma carta ao presidente Luís Inácio Lula da Silva pedindo o
fim da exportação de animais vivos. Apresentou pareceres de especialistas,
anexou fotos e relembrou da história do boi Elias, ocorrida em 2018.
"Não
é incomum que alguns destes bois se atirem ao mar, tentando fugir da escolha
feita para eles. A história do boi Elias, que se lançou ao mar da embarcação e
nadou por 5 horas em São Sebastião (SP), tocou tantas pessoas em todo o país
que virou um documentário, assistido por mais de 20 mil pessoas em menos de um
ano", afirmou.
O
Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) não deu retorno aos questionamentos
feitos pela reportagem. Mas sua posição foi apresentada em resposta à carta da
jornalista. A pasta defendeu a importância econômica da atividade, que
movimentou R$ 20 bilhões entre 2014 e 2023. "Além dos recursos envolvidos,
a atividade envolve importante rede de produtores, trabalhadores e empresários
rurais."
Salientou
que a exportação de animais vivos é regulamentada pela Instrução Normativa nº
46, de 2018. Antes de serem embarcados nos navios, os animais passam por uma
quarentena em Estabelecimentos Pré-Embarque (EPEs) e precisam ter um
Certificado Zoossanitário Internacional (CZI).
"Contudo,
as garantias fornecidas pelo serviço veterinário brasileiro estão limitadas até
a etapa de pós-embarque dos animais nos navios, momento em que as condições
previstas em normas são verificadas pela equipe do Mapa", informou. A
pasta reconheceu a deficiência nas regras durante a viagem.
"O
capitão do navio está subordinado a regras e procedimentos definidos por
organizações internacionais regulamentadoras do transporte marítimo de modo
geral, o que, atualmente, no que se refere à carga viva, nomeadamente ao
bem-estar dos animais, apresenta-se deficiente." O Mapa diz estar
trabalhando em fóruns internacionais para melhorar o regramento desta
atividade.
Além do
sofrimento dos animais durante a viagem, não se conhece o número de animais que
morrem e que ficam feridos durante a exportação. Essas informações deveriam ser
passadas pelos exportadores ao Mapa. "Muitos animais jovens e saudáveis
entram no navio e morrem lá dentro", avaliou a médica-veterinária Maria
Eugenia Carretero. "Pra mim, é como se fosse um crime premeditado".
Fonte:
DW Brasil
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