'Por
suposto respeito à privacidade, adolescentes estão morrendo ou cometendo crimes
graves na internet'
No top
10 de séries mais vistas da história da Netflix, Adolescência virou um fenômeno
global ao retratar a história de um menino de 13 anos acusado de matar uma
colega de escola.
O
enredo provocou debates nas redes sociais e mobilizou reportagens. Mas não
surpreendeu a juíza Vanessa Cavalieri, da Vara da Infância e Juventude do Rio
de Janeiro.
"A
série não mexeu tanto comigo porque trata de algo que vejo e falo há
anos", afirma.
Desde o
lançamento da produção, em 13 de março, o telefone de Cavalieri não para de
tocar, com pedidos de entrevistas e palestras sobre o tema.
Para
ela, a produção se tornou um sucesso de audiência e impactou o público por
expor uma realidade que muitos desconhecem ou ignoram: os riscos a que
adolescentes estão expostos na internet.
"Muitas
famílias acham que, se o filho está em casa, mexendo no celular ou no
computador em seu quarto, ele está seguro. Mas isso não é necessariamente
verdade."
A
magistrada destaca que a série aproxima o telespectador da história ao
apresentar um protagonista comum.
"Ele
vem de uma família trabalhadora, com pais amorosos e cuidadosos, que não foram
negligentes de forma significativa. Ele poderia ser colega dos nossos filhos na
escola, frequentar o mesmo clube, morar no nosso condomínio. Isso choca, porque
nos faz perceber que uma tragédia assim pode estar perto de nós."
Há dez
anos à frente da Vara da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Rio,
Cavalieri observa que o perfil dos adolescentes envolvidos em infrações mudou.
"Antes,
eram jovens em situação de alta vulnerabilidade socioeconômica, envolvidos em
crimes como tráfico de drogas e roubos. Mas, desde 2019, temos um novo grupo:
adolescentes de classe média e alta, alunos de escolas particulares, que
praticam crimes digitais e planejam ataques em escolas."
Mas um
padrão se manteve: a maioria é cometida por meninos.
"Cerca
de 90% dos casos registrados na cidade envolvem garotos. Isso vale para
qualquer classe social e tanto para crimes digitais quanto presenciais."
No
ambiente digital, ela afirma ter observado um aumento dos crimes de ódio ou
cometidos em comunidades de ódio, e a grande maioria dos envolvidos são
meninos.
"Raramente
vemos meninas nesses casos, com exceção daquelas que participam de comunidades
de automutilação e suicídio, principalmente em plataformas como o
Discord", diz.
"Por
outro lado, notamos um aumento da misoginia, homofobia e supremacia branca,
incluindo ideologias neonazistas, e, nesses casos, os envolvidos são quase
exclusivamente meninos. No Brasil, não houve ataques em escolas praticados por
meninas, por exemplo; todos foram planejados ou executados por meninos."
Ela
nota um crescimento no ressentimento de meninos com relação a pautas de gênero
— o que podem levá-los a ser atraídos para movimentos como os incels.
Retratado
na série, o termo é uma abreviação de "celibatários involuntários"
(do inglês involuntary celibates) e é marcado pelo discurso de ódio contra as
mulheres.
Por
isso, diz Cavalieri, o debate sobre masculinidades, de forma equilibrada, é
urgente.
"Hoje,
um menino em desenvolvimento, que nem sabe quem é ainda, que está descobrindo
sua sexualidade e o lugar do masculino na sociedade, muitas vezes é massacrado
com falas de que 'nenhum homem presta', 'todo homem é abusador'. Essa
generalização é muito ruim", afirma.
"Alguns
escutam isso de forma muito radical. E esse radicalismo pode acabar levando o
pêndulo para o outro extremo. Precisamos encontrar um equilíbrio",
adiciona.
"Precisamos
ensinar os meninos sobre relações respeitosas, de afeto. Eles sofrem com
exclusão, falta de pertencimento e de afeto. Seria importante ensinar que há um
caminho de descoberta da sexualidade com amor, com envolvimento
emocional."
A
seguir, a juíza elenca quatro lições que pais e educadores podem tirar da série
para se reconectar com a vida online de seus filhos.
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1. Estudar sobre a adolescência
Quando
assumiu a vara, Cavalieri percebeu que apenas o conhecimento jurídico não era
suficiente para lidar com os casos que surgiam.
"Queria
muito fazer um trabalho efetivo, um trabalho que conseguisse efetivamente
ressocializar, educar e recuperar os jovens que seguiram um caminho
equivocado", diz.
"Fui
estudar adolescência, com uma abordagem multidisciplinar na neurociência,
psicanálise, psicologia e psiquiatria. Queria entender por que esses
adolescentes se envolviam em atos infracionais e como evitar a
reincidência", conta.
"Chegou
uma hora que comecei a entender como funcionava a cabeça dos adolescentes, o
que era o tal do córtex pré-frontal imaturo que tanta gente menciona e o que
isso implica. O que essa imaturidade cerebral influencia o comportamento dos
adolescentes."
"Eles
parecem adultos, mas ainda estão em desenvolvimento. São impulsivos e têm
dificuldade em adiar recompensas. Por isso, precisam da orientação de adultos
para tomar boas decisões. Precisamos de letramento em adolescência."
A juíza
afirma que os pais devem estudar e buscar conhecimento sobre essa fase.
"É
importante ter letramento na adolescência, para os pais entenderem o que é
natural, o que passa na mente do adolescente e quais são suas
necessidades."
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2. Compartilhar experiências
Cavalieri
alerta que muitos pais perdem a conexão com os filhos na adolescência.
"Precisamos
ter mais compaixão pelos adolescentes", diz.
"Com
uma criança de dois ou três anos, vemos pais muito pacientes e dispostos a
entrar em brincadeiras infantis. Então você brinca de fazer de conta, canta a
musiquinha da Dona Aranha o dia inteiro. Só que quando chega na adolescência,
não temos paciência com o universo adolescente", diz.
"Vamos
nos afastando porque não conseguimos olhar para eles com compaixão. Precisamos
descer do pedestal de adulto e nos equiparar um pouquinho a eles, para poder
ter conexão e conversa."
Ela
sugere que os pais se interessem pelo universo dos filhos.
"Eu
vou falar por mim. Por exemplo, eu fui apresentada uns anos atrás pela minha
filha mais velha, quando ela tinha 13 anos, a um cantor que eu não conhecia,
que é super famoso, o Harry Styles. Me lembro que a primeira música que ela me
mostrou, pensei que fosse David Bowie. E entendi que havia ali um ponto de
conexão com a minha filha", relata.
"Talvez
eu não saísse da minha casa para ir no show por conta própria, mas fui porque
eu queria estar com ela, dividindo essa experiência. Falta isso: nos
interessarmos pelo universo deles."
A dica
vale para o ambiente online, diz a magistrada. "Eu e minhas filhas
compartilhamos entre nós coisas vídeos no Instagram que achamos que a outra vai
gostar. Isso é uma forma da gente criar ali vínculo. "
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3. Monitoramento da atividade online
Para
Cavalieri, é um erro interpretar monitoramento como invasão de privacidade.
"Em
nome a esse suposto respeito à privacidade, adolescentes estão morrendo ou
cometendo crimes graves; pessoas estão se suicidando ou sendo vítimas de golpes
gravíssimos. Isso porque os pais não supervisionaram o uso da internet",
afirma.
"A
internet é um lugar perigoso. Assim como os pais não consideram invasão de
privacidade perguntar aonde um adolescente vai ou virem um filho conversando
com uma pessoa estranha, temos que o olhar para o ambiente virtual da mesma
forma, lembrando que é tão ou mais perigoso do que a rua."
Ela
recomenda o uso de aplicativos de controle parental, como o Custody ou Change,
que também usam GPS para localizar o aparelho dos adolescentes em tempo real.
"Os
pais devem ter todas as senhas e logins para emergências", diz. "E o
GPS nunca deve ser desabilitado. Isso é fundamental para a segurança dos
adolescentes e pode ser decisivo em caso de emergência."
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4. Estabelecer limites claros
Além do
monitoramento, Cavalieri afirma que é essencial estabelecer limites claros para
o tempo de conexão à internet.
"Depressão,
obesidade e outros problemas de saúde estão ligados ao uso excessivo de telas.
O ideal é que o celular fique fora do quarto e seja bloqueado na hora de
dormir", diz.
Ela
lembra que especialistas, assim como diretrizes do governo, recomendam que
crianças não tenham celulares e que adolescentes precisem de regras claras.
"É
preciso definir quais conteúdos são proibidos. Por exemplo, apostas online são
restritas a maiores de 18 anos e extremamente viciantes", afirma.
Segundo
a juíza, um dos principais pontos de atenção é o tempo de uso das telas e o
horário para desligar os aparelhos.
"As
telas e as redes sociais são altamente viciantes. Estudos mostram que
plataformas como Instagram e Facebook ativam no cérebro as mesmas áreas de
prazer e recompensa que a cocaína. É esse o nível de impacto que estamos
discutindo", alerta.
O guia
preparado pelo governo federal para uso de telas define que crianças menores de
dois não não devem usar telas, e, entre 3 e 5 anos, o tempo máximo deve ser de
uma hora por dia.
A
Sociedade Brasileira de Pediatria também faz recomendações: crianças menores de
três anos não devem usar telas. Entre 3 e 6 anos, o uso deve ser permitido
apenas em situações excepcionais.
"Por
exemplo, se a criança estiver doente e precisar fazer nebulização, pode
assistir a um desenho para se acalmar", explica.
Entre 6
e 12 anos, segundo a SBP, o tempo total de exposição às telas deve ser de, no
máximo, uma hora por dia. Para adolescentes acima de 12 anos, o ideal é limitar
entre duas e três horas diárias.
"Mas
isso inclui todas as telas, não só redes sociais", ressalta Cavalieri.
"O ideal seria, no máximo, meia hora por dia de TikTok."
A juíza
alerta que um dos maiores problemas da geração atual é a privação crônica do
sono causada pelo uso excessivo de telas.
"Crianças
e adolescentes estão dormindo menos do que o necessário – entre nove e 11 horas
por noite. Isso afeta o crescimento, a atenção e o aprendizado. Há crianças
diagnosticadas com déficit de atenção sem terem TDAH, quando na verdade sofrem
de privação de sono", diz.
Por
isso, Cavalieri recomenda que o celular não fique no quarto e seja bloqueado à
noite. "Se a hora de dormir é nove ou dez da noite, o celular, o
computador e qualquer outro aparelho precisam ser bloqueados até a manhã
seguinte", afirma.
Fonte:
BBC News Brasil
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