O fardo de produzir e existir ao mesmo tempo
Entre tantas produções que tentam capturar o
mal-estar do nosso tempo, Ruptura (Severance), da Apple TV, se destaca por fazer
isso sem gritar. Com estética precisa, silêncios perturbadores e um enredo que
mistura crítica social com tensão psicológica, a série tem mobilizado
discussões intensas nas redes sociais e entre estudiosos de diversas áreas. Mas
por que ela nos provoca tanto? Porque, ao falar sobre trabalho, ela fala também
sobre identidade, memória, afeto — e sobre o preço psíquico que se paga para
continuar funcionando em um mundo onde produzir virou sinônimo de existir.
Sem entrar em detalhes que comprometam a
experiência de quem ainda não assistiu, o ponto de partida da série é a
existência de uma tecnologia que permite separar radicalmente a vida
profissional da vida pessoal. Uma divisão entre “quem trabalha” e “quem vive”,
como se fosse possível desligar a mente de uma realidade para habitar outra sem
consequências. O que poderia soar como alívio — deixar os problemas do lado de
fora — se revela rapidamente como algo mais sombrio: uma estrutura que
fragmenta o sujeito, apaga o desejo e transforma o trabalho em um vazio
repetitivo, descolado de qualquer sentido.
Escolher Ruptura como ponto de partida não é
apenas acompanhar uma tendência de interpretações nas redes, é reconhecer que a
série traduz, com linguagem ficcional, algo que muita gente sente, mas não consegue
nomear: a sensação de se dividir para caber na lógica do trabalho, a exigência
de “ser profissional” enquanto se silencia o próprio sofrimento. A série toca,
com delicadeza e desconforto, na ferida de um tempo que tenta nos convencer de
que é possível separar completamente a vida do trabalho, o corpo da mente, o
sujeito da função.
É a partir dessa metáfora que proponho uma
reflexão sobre os sofrimentos psíquicos ligados ao trabalho, articulando as
ideias de Marx, Freud e Lacan com experiências concretas de resistência, como o
Breque dos Apps e o recente movimento contra a jornada 6×1. Porque o que está
em jogo não é apenas a luta por melhores condições, mas a recusa de uma lógica
que nos adoece — e a tentativa, ainda fragmentada, de reinventar o que
significa viver e trabalhar sem se perder de si mesmo.
<><> Alienação e sofrimento
psíquico: quando o trabalho exige a cisão do eu
Existe algo de perversamente silencioso no
modo como o trabalho opera no século XXI. Não mais pelo grito do patrão ou pelo
som das fábricas, mas pelo excesso de planilhas, metas, notificações e sorrisos
forçados em reuniões virtuais. A opressão não grita — sussurra, exige, seduz.
E, talvez por isso, se torne ainda mais difícil nomear o mal-estar que provoca.
Marx já nos falava da alienação como processo
estrutural do capitalismo: o trabalhador é separado do fruto do seu trabalho,
da relação com os outros, da natureza e, por fim, de si mesmo. Essa separação
não é apenas econômica — é existencial. O sujeito se torna estranho a si, um
“ser funcional” que executa sem compreender, que repete sem se reconhecer. Em
vez de fazer parte de um processo criativo ou coletivo, ele se vê como peça
descartável de uma engrenagem que gira cada vez mais rápido.
Mas essa alienação, no mundo contemporâneo,
ganhou novas camadas. Hoje, não basta produzir — é preciso gostar de produzir.
Ser apaixonado pelo cargo, vestir a camisa, agradecer pela oportunidade. O
sofrimento precisa ser silencioso, contido, administrável. E, quando explode,
vira estatística: burnout, depressão, crise de ansiedade. A culpa é sempre
individual. A lógica do desempenho exige que o sujeito negue seu cansaço,
silencie sua dor, disfarce sua angústia. Não se trata mais apenas de trabalhar
para viver, mas de viver para performar.
É nesse ponto que a psicanálise entra como
ferramenta fundamental de leitura. Freud já mostrava que o sofrimento psíquico
emerge quando algo do desejo é interditado. Lacan vai além e aponta que o
sujeito é estruturalmente dividido — mas essa divisão se agrava quando a
linguagem que o cerca (como os discursos corporativos) opera uma captura, um
esvaziamento do sentido. A subjetividade é reduzida à eficiência, e o sintoma
aparece onde o sujeito foi calado.
Ruptura traduz essa lógica com uma imagem
radical: um sujeito literalmente dividido para servir melhor. Mas, na
realidade, essa divisão ocorre diariamente, sem bisturi. Um “eu profissional”
que obedece, planeja, entrega, sorri; e um “eu íntimo” que, depois do
expediente, lida com dores mal explicadas, insônia, tristeza difusa. A
separação entre vida e trabalho é vendida como equilíbrio — mas é vivida como
cisão. O sofrimento que emerge dessa ruptura não é colateral. É estrutural.
E, como todo sintoma, ele fala. Seja na forma
de crises silenciosas no banheiro da empresa, no esgotamento que impede de
levantar da cama, ou nos corpos que, ao não suportarem mais, param. Brecam.
<><> Corpo-trabalho,
mente-função: a mentira da separação entre vida e trabalho
O discurso dominante do mundo corporativo
insiste: é possível — e desejável — separar a vida profissional da vida
pessoal. É como se pudéssemos deixar os afetos, os conflitos, as dores e os
desejos do lado de fora ao bater o ponto. No entanto, essa separação, tão
frequentemente idealizada, é uma ficção funcional, uma tecnologia subjetiva a
serviço da produtividade. Na prática, ela não existe. O que acontece no
trabalho se inscreve no corpo, na mente, nas relações e no modo como habitamos
o mundo — mesmo quando fingimos que não.
A série Ruptura leva essa lógica ao
paroxismo: tenta criar duas versões de um mesmo sujeito, absolutamente
estanques, como se fosse possível isolar a experiência emocional do ambiente de
trabalho. A imagem é extrema, mas serve como lente de aumento para algo que, no
cotidiano, acontece em doses contínuas. A cisão entre “quem trabalha” e “quem
vive” é cultivada como se fosse um ideal de equilíbrio, mas na verdade opera
como um mecanismo de apagamento subjetivo.
No trabalho, espera-se que o corpo seja
máquina e que a mente funcione como uma extensão da empresa. Sente-se fome,
sono, raiva, angústia — mas tudo isso deve ser moderado, administrado,
transformado em linguagem neutra ou escondido atrás de expressões como “estou
só cansado” ou “é só uma fase”. A psique é colonizada por uma racionalidade que
transforma o sofrimento em falha individual. O sujeito aprende a pedir
desculpas por adoecer.
É nesse ponto que o sofrimento se torna
crônico. Porque não se trata apenas de lidar com a pressão, mas de carregar a
exigência constante de que esse mal-estar não apareça. O sofrimento, quando
reprimido, se inscreve no corpo: dores que não cessam, vícios que se
intensificam, afetos que se retraem, memórias que se confundem. O corpo fala —
e grita — quando a linguagem da produtividade já não dá conta de traduzir a
experiência.
A separação entre mente e corpo, entre
trabalho e vida, é sustentada por um discurso funcionalista que visa
eficiência, mas ignora a complexidade do sujeito. Ao recusar essa cisão, a
série revela algo fundamental: a impossibilidade de viver bem sendo dois. Não
há saúde possível quando somos forçados a esconder uma parte de nós para que a
outra continue operando. A conta, cedo ou tarde, chega. E quando chega, não é
com planilhas — é com colapsos.
<><> O gesto de brecar: o desejo
que retorna na luta coletiva
Existe um momento em que a dor atravessa o
silêncio. Um ponto em que o cansaço se transforma em recusa. Nem sempre é
planejado, nem sempre é consciente, mas ele chega — e quando chega, pode ser
mais político do que qualquer discurso: o gesto de parar.
Foi exatamente isso que vimos no Breque dos
Apps. Trabalhadores precarizados, invisibilizados, hiperconectados e
constantemente avaliados por algoritmos, decidiram interromper o fluxo. Não
apenas por melhores condições, mas para dizer: estamos aqui. Sentimos.
Sofremos. Não somos engrenagens. Aqueles que o sistema queria silenciar —
transformando-os em “parceiros” sem vínculo, sem direitos e, sobretudo, sem
tempo — se fizeram ouvir ao parar. Brecar, naquele contexto, foi mais do que um
ato laboral. Foi um ato de subjetivação.
A uberização do trabalho não é apenas um
modelo econômico, mas uma forma de organizar a subjetividade. A fragmentação
dos contratos, a ausência de vínculos formais, a intermediação algorítmica e a
promessa de “autonomia” dissolvem qualquer ideia de pertencimento coletivo. A
relação entre trabalhador e empresa se torna abstrata, sem rosto, sem espaço
para reconhecimento ou solidariedade. É cada um por si, competindo em tempo
real, medido por estrelas e punido por pausas.
Essa precarização não afeta apenas as
condições materiais de vida — ela afeta a possibilidade de se reconhecer
enquanto classe, de construir narrativas coletivas de resistência. O
trabalhador uberizado é isolado, individualizado, exaurido. E quando adoece, a
culpa é dele. Quando falha, é substituído.
O mesmo impulso de recusa se expressa no
movimento contra a jornada 6×1, que tenta naturalizar a ocupação quase total do
tempo dos trabalhadores do comércio. É mais um capítulo da colonização do tempo
pela lógica do capital. Mas, assim como em Ruptura, existe um limite: o corpo
não aguenta, a mente colapsa, e o desejo retorna. Retorna não como fantasia,
mas como resistência.
Freud dizia que o sintoma é uma forma de
satisfação substituta — é o que resta quando o desejo é interditado. Mas quando
esse desejo se reconecta à ação, temos algo mais potente: o gesto de não mais
aceitar. Lacan vai além e mostra que todo sujeito é dividido, mas pode falar a
partir dessa divisão, desde que não seja forçado a calar sua verdade em nome de
um ideal de completude — como aquele prometido pelo discurso empresarial que
vende “liberdade” onde há apenas abandono institucional.
Esses movimentos — o breque, a recusa da
jornada insana — são expressões políticas de um sofrimento psíquico que não se
resigna. São formas de dizer que há algo errado com essa estrutura que exige
que sejamos dois: um que trabalha sem pensar e outro que pensa sem conseguir
viver. Quando os corpos param, quando os desejos ganham voz coletiva, a fissura
se alarga. A “ruptura” já não é mais uma técnica empresarial de controle, mas
uma resposta subjetiva e coletiva ao esgotamento.
<><> Conclusão – Ninguém vive bem
sendo dois: por uma política do desejo no trabalho
“Ninguém vive bem sendo dois.” Essa frase,
que parece simples, talvez resuma a ferida mais funda que Ruptura escancara — e
que a realidade confirma todos os dias. A exigência de cisão, de dividir-se
entre um eu que sente e um eu que produz, adoece. E esse adoecimento não é
patologia individual: é sintoma de uma estrutura que opera como se o sujeito
fosse descartável, como se o corpo fosse extensão da máquina e a mente, uma
ferramenta de gestão emocional.
A precarização dos contratos, tão comum nas
novas formas de trabalho, não apenas elimina direitos, mas rompe os laços que
sustentavam a construção de uma identidade coletiva entre trabalhadores. O
sindicato vira um vestígio do passado, a luta uma memória distante. A solidão
se instala. E com ela, o esgotamento. É um processo de despolitização ativa, no
qual o sofrimento é administrado como “questão emocional” e não como sintoma de
uma violência estrutural.
Mas quando o sofrimento se transforma em
gesto coletivo, algo muda. O corpo que breca, a mente que se nega a continuar,
o vínculo que se refaz entre trabalhadores, tudo isso reabre a possibilidade de
dizer “não” — e, mais que isso, de afirmar um outro “sim”: um sim ao desejo, à
dignidade, ao tempo que não pode ser comprado.
Esses movimentos não são apenas reações
defensivas. São tentativas de recompor a existência em tempos de fragmentação.
A recusa à jornada insana, a organização dos entregadores, os pequenos atos de
resistência que acontecem nos bastidores do cotidiano — tudo isso compõe um
novo campo de luta, onde o desejo volta a falar.
Em vez de aceitar a lógica do
“funcionamento”, essas experiências exigem espaço para existir sem se dividir.
O trabalho que adoece também pode ser o lugar de onde emerge a possibilidade de
outra vida. E, talvez, esse seja o sentido mais profundo da recusa: transformar
o sofrimento em linguagem, o cansaço em gesto, a divisão em ação.
Porque ninguém vive bem sendo dois.
Fonte: Por Márcio Pereira Cabral, no Sul21
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