Enquanto o povo
morria de Covid-19, uma ditadura quase renascia
A denúncia do Procurador-Geral da República,
Paulo Gonet, contra o ex-presidente
Jair Bolsonaro e mais 36 pessoas envolvidas em um movimento articulado para a
promoção de um golpe de Estado no país revela um plano sombrio que vai muito
além da simples recusa em aceitar os resultados das eleições de 2022.
O que toda a sociedade brasileira não sabia é
que em 2021, enquanto milhares de brasileiros morriam de Covid -19 sem atenção
do governo, causando uma enorme dor coletiva, Bolsonaro, com a alta cúpula do
governo, já traçava um plano para excluir a possibilidade de honrarmos a
memória dos nossos entes queridos nas urnas no ano seguinte.
Enquanto o Brasil registrava números recordes
de mortes por Covid-19, o então capitão-presidente e sua cúpula governamental
articulavam um golpe para se manter no poder, independentemente da vontade
popular. Era a implementação de um projeto sistemático de desestabilização da
democracia para que os amantes da tortura e do autoritarismo permanecessem no
poder.
Conspiravam enquanto milhares de brasileiros
perdiam a vida por negligência do Estado. As famílias choravam seus mortos,
Bolsonaro fazia chacotas das mortes e planejava como silenciar o povo e
garantir poderes absolutos. Esses dois fatos explicitam o seu desprezo à vida e
à democracia. Aliás, um dia ele disse, sem ficar ruborizado, que sua
especialidade era a morte. Quanto a isso, não mentiu: mais de 700 mil pessoas
morreram vítimas da doença, que se alastrou por conta do negacionismo do
governo passado.
Quando Bolsonaro ridicularizou as vítimas
imitando uma pessoa sufocada e muitos pensaram que se tratava de sua mera
incapacidade mental e de empatia, fez isso porque, segundo a denúncia da PGR,
ele e seus comparsas previam o “uso da força”, “dar soco” e “virar a mesa”
antes mesmo das eleições. Isso mesmo: queriam calar a nossa voz a qualquer
custo.
Enquanto o presidente Lula passou a viajar
pelo país ouvindo o sofrimento da população e acreditava no caminho
democrático, os golpistas bolsonaristas davam passos para a “execução do plano
de permanência no poder, independente do resultado das urnas”. Eles nunca
quiseram disputar as eleições constitucionalmente definidas e nem enfrentar a
maior limitação para um autoritário na democracia: o poder do povo.
Ao contrário deles, nós acreditamos no poder
do povo e na importância da Constituição. Pessoas como o meu pai, perseguido
pela ditadura, e tantos outros que sequer tiveram a mesma sorte de estar vivos,
enfrentaram o regime militar para termos uma democracia. E é essa democracia
que garante aos golpistas, hoje, um devido processo legal e assistência de
advogados para se defenderem perante o STF.
Em 2021, governo federal minimizava a
gravidade da Covid-19, promovia tratamentos ineficazes e ridicularizava as
vítimas. Bolsonaro performava cruelmente para ridicularizar as vítimas da
doença. No entanto, a denúncia da PGR mostra que esse comportamento não era
apenas fruto de ignorância, mas parte de uma estratégia para deslegitimar o
sofrimento alheio e preparar o terreno para medidas autoritárias.
Os brasileiros que sobreviveram à pandemia –
e aos anos de desgoverno – tiveram a chance de ir às urnas em 2022 para honrar
a memória daqueles que foram vítimas da negligência estatal. Muitos perderam
pais, filhos, companheiros e amigos. Essas mortes não foram apenas números;
foram vidas interrompidas por um governo que escolheu a omissão e o
negacionismo.
Agora, o julgamento no Supremo Tribunal
Federal (STF) não é apenas sobre Bolsonaro e seus aliados golpistas. É sobre o
direito de milhares de brasileiros de serem lembrados. É sobre garantir que
nenhum governante possa novamente conspirar contra a democracia enquanto o povo
sofre.
A Constituição de 1988 garantiu a todos –
negros, brancos, pobres, ricos, LGBTQIA+ – o direito de opinar sobre os rumos
do país. Mas milhões de brasileiros foram privados desse direito não pela lei,
mas pela morte precoce causada pela crueldade e incompetência do governo
Bolsonaro.
Hoje, aqueles que sobreviveram têm a
obrigação de lutar para que a justiça prevaleça. Não apenas pela condenação dos
responsáveis pelo golpe frustrado, mas para que nenhum outro governo ouse
novamente brincar com a vida do povo.
O julgamento dos golpistas pelo STF não diz
respeito apenas a lados políticos e à defesa da democracia, mas também ao
direito que os milhares de brasileiros mortos têm de ser lembrados. É na
memória dos pais, mães, filhos, parentes. companheiros, amigos ou vizinhos que
hoje dizemos: nós temos amor ao próximo e não deixaremos que ninguém nos cale.
Temos a força da memória e da resistência. Ainda estamos aqui.
¨
Bolsonaro pode ser
investigado por novo atentado à democracia em ato na Paulista
Líder do governo na Câmara, deputado federal
Lindbergh Farias (PT-RJ) protocolou representação junto à Procuradoria Nacional
de Defesa da Democracia, vinculada à Advocacia-Geral da União (AGU), para que
Jair Bolsonaro (PL) seja investigado por um novo atentado à democracia.
Na ação, Lindbergh solicita providências
contra Bolsonaro por “declarações atentatórias ao Estado Democrático de
Direito” e que “estimulam a deslegitimação das eleições no Brasil”.
A petição tem como base falas proferidas por
Bolsonaro em duas ocasiões recentes: uma entrevista veiculada no YouTube, em 26
de março, e um ato público realizado na Avenida Paulista, no último domingo
(6).
Segundo Lindbergh, o conteúdo das declarações
“ultrapassa os limites da liberdade de expressão e da crítica política”,
configurando uma “grave ameaça à ordem constitucional” e à integridade das
instituições democráticas.
No documento, o parlamentar destaca que o
ex-presidente “dissemina desinformação sobre o sistema eleitoral, ataca
autoridades públicas e minimiza os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023”.
Em uma das falas, Bolsonaro afirmou: “As
urnas são inauditáveis”, além de alegar que o TSE “jogou pesado contra eu e a
favor do candidato Lula”. Para Lindbergh, declarações como essa “revelam um
padrão reiterado de ataque à democracia e tentativa de reescrever a história
recente sob a ótica da vitimização política”.
A representação também aponta incitação à anistia ampla para envolvidos nos
ataques de 2023, além de novas insinuações golpistas. No ato de domingo,
Bolsonaro declarou: “Me dê 50% da Câmara e 50% do Senado que eu mudo o destino
do Brasil”, citando ainda o presidente salvadorenho Nayib Bukele como
inspiração: “Bukele fez o mesmo em El Salvador. Podemos fazer o mesmo aqui”.
Para o líder do PT na Câmara, a postura do
ex-presidente compromete o pacto democrático. “É ainda mais grave que essas
falas partam de uma figura pública de projeção nacional, já considerada
inelegível, mas que segue mobilizando sua base com narrativas perigosas”,
afirma no documento.
Lindbergh solicita que a AGU adote medidas
judiciais e extrajudiciais cabíveis, incluindo ações civis públicas,
representações ao Ministério Público Federal e ao STF, além de medidas
cautelares “para evitar novas condutas semelhantes”. A ação também propõe a
implementação de campanhas educativas para conter a propagação de
desinformação.
“A atuação da Procuradoria se impõe como
resposta institucional necessária à altura da ameaça que tais condutas
representam ao regime democrático”, conclui o parlamentar. A AGU ainda não se
manifestou sobre o pedido.
¨
Anistia
inconstitucional. Por Marcelo Uchôa
Aos poucos as instituições brasileiras vêm
demonstrando que são mais fortes do que a trama golpista de 8 de janeiro de
2023. Nem por isso é possível afirmar que a democracia nacional está isenta de
riscos, prova disso é a movimentação dos simpatizantes do golpismo em favor de
anistia para os condenados que, em associação criminosa armada, tentaram abolir
o Estado Democrático de Direito, depondo, por violência, governo legitimamente
eleito, com direito a cometimento de dano qualificado e deterioração do patrimônio
tombado.
Mas, afinal, o que é a anistia? Anistia, que
para uns significa perdão e para outros, esquecimento, é uma possibilidade
prevista por um ordenamento jurídico de excluir a punibilidade de certos crimes
por razão de utilidade social. A anistia política, aplicada especificamente a
crimes desta natureza, visa selar a paz interna, beneficiando quem, por alguma
razão, esteja sofrendo uma opressão indevida. Este precioso e excepcional
instituto, exatamente por lidar com crimes de natureza política, deve decorrer
de uma pactuação ampla, chancelada por todos os Poderes, mediante uma hígida
concertação social.
No Brasil, a adoção da anistia está prevista
no art. 48, VIII, da Constituição, como competência do Congresso, sujeita à
sanção do Presidente da República. Ela é vedada para os crimes de tortura,
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e crimes hediondos
(art. 5º, XLIII). Assim, é possível conceder-se no país anistia para crimes
políticos... desde que haja pactuação social. Esta exigência de concertação
ampla não está expressa na Constituição, mas nem seria necessário, afinal,
trata-se de imperativo ético. Sem ajuste amplo, convencimento adequado, paz
nenhuma seria alcançada. Exercício hermenêutico simples basta para concluir que
esse é o entendimento da Carta de 1988.
Sobre os delitos do 8 de janeiro,
pergunta-se: quais foram os condenados pelos crimes havidos naquele dia
injustamente oprimidos? Alguém não contou com o amplo direito de defesa? Alguém
preso não deveria ter sido encarcerado? À parte a gravidade colossal de tramar
e atentar contra o Estado e a democracia, desde quando deterioração de
patrimônio público tombado, depredação, emprego de violência em associação
criminosa são crimes políticos? Há consenso social, pactuação entre Poderes,
sobre a ideia de anistia política atualmente debatida no Congresso? Não.
Portanto, não pode haver anistia.
Além disso, a anistia é impossível quando
visa desobedecer decisão do Judiciário. Advogar por isso é defender o ataque de
um Poder sobre outro, algo que a Constituição refuta, sendo capital sublinhar
que, no caso em espécie, tal ofensa parlamentar seria contra um Judiciário que
agiu como agiu para defender o Estado Democrático de Direito. A impossibilidade
de anistia política com este condão não seria nem é uma especulação filosófica,
é um precedente já consolidado pelo STF na ADPF 964, que afastou a graça concedida
pelo ex-presidente (hoje réu) Bolsonaro ao ex-deputado condenado Daniel
Silveira.
Assim, uma eventual aprovação parlamentar de
anistia política nos termos do ora pretendido pelos simpatizantes dos
condenados no 8 de janeiro de 2023 seria inconstitucional. Tranquilizem-se os
que a pedem, porque os criminosos hoje condenados serão soltos tão logo cumpram
suas penas. De mais a mais, que fique o alerta de que atentar contra a
democracia, fazendo uso ou não da violência, é algo repelido pela Constituição,
pelas instituições e pelo povo brasileiro. A dura realidade que a experiência
pátria comprovou é que o golpista que pede anistia é o mesmo que busca a
impunidade para tentar novo golpe adiante. Com efeito, anistia nunca para os
condenados do 8 de janeiro!
Fonte: Por Zeca de Dirceu, no Le Monde/Fórum/Brasil
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