A história do primeiro brasileiro eleito para
governar o país, há 190 anos
Era um Brasil de cerca de 5 milhões de pessoas aquele de 190 anos
atrás. Destas, apenas 6 mil tinham direito a voto — a elite era quem elegia
deputados e senadores naquele excludente e censitário regime imperial.
Em 7 de abril de 1835, pela primeira vez, o
país elegia alguém como governante. Era a primeira vez, aliás, que o poder
ficaria nas mãos não de um português, mas de alguém nascido em solo brasileiro.
Tratava-se de um sacerdote católico chamado Diogo Antônio Feijó (1784-1843), padre
paulista que havia construído uma sólida carreira política.
Mas um governante eleito dentro de um regime
monárquico? Pois é. Houve uma espécie de hiato entre os dois imperadores
brasileiros, Pedro I e Pedro II. Tudo porque o primeiro abdicou do trono
quando o herdeiro ainda era uma criança.
Feijó se tornaria regente do império,
assumindo o posto em 12 de outubro de 1835 até sua renúncia, em 19 de setembro
de 1837.
Para entender como isso foi possível é
preciso primeiro recordar o momento histórico em que aquele Brasil de poucos
anos após a independência de
Portugal vivia.
- Abdicação
e regência
Em 1831, Pedro I (1798-1834), o primeiro
imperador do Brasil, deixou para trás o Brasil para lutar pela coroa
portuguesa. Ficou seu filho homônimo como herdeiro. Mas Pedro II (1825-1891)
era uma criança de apenas cinco anos.
A renúncia abrupta do imperador fez com que a
jovem nação brasileira experimentasse um período político turbulento. Como
previa a Constituição de 1824, formou-se um governo provisório com três
senadores: a chamada Regência Trina. Alguns meses depois, a Assembleia Geral
Legislativa elegeu três outros nomes que formariam a Regência Trina Permanente.
"Foi no susto", comenta à BBC News
Brasil Paulo Rezzutti, biógrafo de diversas personalidades do período imperial
e autor de, entre outros livro, 'D. Pedro II: A História Não Contada', cuja
reedição revista e atualizada chegou às livrarias no mês passado. "A ideia
de três governantes era para tentar equilibrar as forças políticas para
conseguir um certo equilíbrio entre os grupos diferentes da sociedade.
"O contexto era de incerteza, de riscos
e de indefinição. A abdicação do Imperador Pedro I abriu a temporada de caça ao
poder, aos recursos econômicos e financeiros nas províncias dos Império",
diz à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na
Universidade Estadual Paulista (Unesp).
"A forma assumida pela regência foi
resultado da reacomodação política e da concentração de poder decisório e de
autoridade forte diante de uma realidade social em decomposição e que
enfrentava rápidas transformações na dinâmica econômica, cultural e das
relações internacionais", analisa o professor.
"Era tripla para evitar uma usurpação do
poder político. Os três regentes se controlavam mutuamente", explica à BBC
News Brasil o cientista político Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação
Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
A ideia era que o triunvirato permanecesse no
poder até que Pedro II se tornasse maior de idade. Mas o que se viu foi uma
grave instabilidade que colocava em risco até mesmo a unidade territorial do
país. De um lado, os cofres públicos enfrentavam escassez. De outro, revoltas
pipocavam de norte a sul, geralmente insufladas por oligarquias regionais que
queriam autonomia.
"A questão central é que a abdicação, a
eleição e o governo da regência permanente eram resultados de conflitos sociais
e políticos que vinham desde a Independência e antagonizavam diferentes grupos
de poder, especialmente os setores mais poderosos, associados ao tráfico de
escravizados, ao açúcar e ao café, que haviam apoiado o governo de Pedro I, e
os setores que, desde 1808, tinham aproveitado as condições abertas com a
presença da corte portuguesa, com a abertura comercial e a inserção internacional
da produção brasileira para incrementar seus negócios que estavam vinculados,
em grande parte, ao mercado interno", contextualiza à BBC News Brasil a a
historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira, professora na Universidade de
São Paulo (USP) e autora do livro Ideias em Confronto − Embates pelo Poder na
Independência do Brasil.
"As iniciativas governamentais mais
expressivas do momento […] indicavam a elevação da temperatura política e
social dos conflitos e da disputa pelo controle e a condução do Estado e das
instâncias de governo nacional, provincial e local", comenta Martinez.
Nesse contexto o padre Diogo Feijó foi
apresentado como um nome de pulso firme que poderia ajudar a controlar os
ânimos. A regência o nomeou Ministro da Justiça. Sua passagem pela pasta foi
marcada por rigor e eficiência. Mas sua tendência liberal e, em alguns
momentos, flertando com o abolicionismo, fez com que ele não tivesse apoio dos
aristocratas que eram a maior parte dos deputados.
Em julho de 1832, logo após completar um ano
no cargo, Feijó apresentou carta de renúncia. Era mais um ingrediente para
tumultuar o ambiente político.
- Participação
popular muito restrita
O pesquisador Rezzutti conta que o processo
eleitoral era realizado em dois níveis. Os eleitores paroquiais escolhiam os
eleitores provinciais. E estes podiam votar para postos de relevância nacional
— como deputados e senadores. E foi este o modelo seguido para a eleição do
regente. "Para ser eleitor paroquial era preciso ter certos rendimentos.
Para ser provincial, era preciso rendimentos ainda maiores", comenta.
Apesar de ter sido, portanto, uma
participação popular bastante elitista e limitada, é preciso ressaltar que foi
um primeiro momento de uma certa "democracia" no Brasil que havia se
tornado país independente 13 anos antes.
"Houve uma eleição e isso foi um grande
diferencial. Ainda que tenha sido muito restrita, foi de certa forma
participativa. Foi o primeiro momento de participação eleitoral que não fosse
para escolher somente os deputados", afirma à BBC News Brasil o
historiador Victor Missiato, pesquisador no Instituto Mackenzie.
"Feijó era a encarnação do simbolismo
histórico da monarquia portuguesa e da colonização iniciada no século XVI, a
cruz e a coroa, a religião e a monarquia", sintetiza Martinez. "A
legitimidade e a autoridade de ambas as instituições estavam ancoradas na fé e
na crença da infalibilidade de seus dirigentes supremos, a vontade divina e a
ação de seu representante: o monarca."
"A eleição de Feijó partiu de um corpo
eleitoral integrado por representantes das províncias, constituído com a
finalidade de designar o futuro Regente. Era expressão das províncias mais
afinadas com o projeto político de 1822 e autonomia do Brasil", completa o
historiador.
O nome de Feijó fazia sentido para aquele
contexto político. "Os grupos que obrigaram Pedro I a abdicar estavam
ligados a esses novos segmentos emergentes que queriam não só poder político,
mas leis e apoio institucional para ampliar seus negócios dentro e fora do
país. Feijó estava ligado a eles. Eram conhecidos como 'liberais
moderados'", conta a historiadora Oliveira. "O problema é que essa
sigla reunia gente de vários matizes e várias condições, entre eles
cafeicultores e produtores de açúcar, assim como produtores de gêneros de
abastecimento e gado, com ampla rede de contatos no interior do país."
Ela lembra que, quando Ministro da Justiça,
Feijó havia buscado atuar para "refrear conflitos armados, revoltas
militares e manifestações populares que defendiam pautas como a
descentralização do poder, a ampliação do poder dos governos locais, a ampliação
do direito de cidadania, entre outras".
A eleição foi em 7 de abril de 1835, mas a
posse mesmo só ocorreria em 12 de outubro.
"As datas nos remetem ao ciclo da
formação do próprio Império: o 7 de abril, era o marco do novo começo, a
abdicação de Pedro I; o 12 de outubro, a sua reafirmação, foi a data de
aclamação do príncipe regente dom Pedro e, logo, Imperador do Brasil, em 1822.
Significava: rei morto, rei posto. A continuidade da tradição política e a
perpetuação da ordem social", analisa Martinez.
Oliveira pontua ainda que essa demora entre
eleição e posse indicavam que Feijó "estava indeciso", pois
"conhecia os enormes obstáculos que seu governo enfrentaria".
Seu curto governo foi marcado por uma intensa
tentativa de garantir a unidade nacional. "Feijó havia se destacado como
parlamentar e ministro da Justiça, mas sua regência foi bastante contestada e
ele enfrentou oposições de antigos apoiadores", diz a historiadora.
"Foram os últimos suspiros do reformismo
de inspiração ilustrada, nascido no século XVIII, […] a tentativa de afirmação
de um governo forte e seguro na condução das ações do Estado", diz
Martinez. "Não por acaso, Feijó foi celebrado durante a ditadura do Estado
Novo, no centenário de sua morte. A mensagem: depois de mim, o caos, o fim das
reformas e a perpetuação da instabilidade política e da insegurança
econômica."
Rezzutti diz que Feijó "era muito
autoritário" e tentou "colocar ordem na casa". "Com isso,
criou muitos inimigos. Mas buscou fortalecer o poder central em um cenário de
várias revoltas nas províncias", pontua.
"Ele tentou sedimentar um Estado mais
uno e coeso. O Estado que Pedro II recebeu quando assumiu o trono foi fruto
dessa tentativa de unificação do Brasil em torno de um poder
centralizado", analisa o biógrafo.
"Seu governo foi marcado como uma
tentativa de conter as rebeliões separatistas que eram contestatórias em
relação à centralização do poder político", afirma Ramirez.
- Pedro
II
Enquanto isso tudo acontecia, o menino Pedro
II era uma figura simbólica e meramente decorativa, "sem poder decisório
algum", como enfatiza o historiador Martinez. "Era apenas um símbolo
ostentado pelos monarquistas, uma espécie de fundo de reserva político da
dinastia, da centralização política e do próprio regime monárquico",
prossegue.
"Um elo entre o passado e o futuro, da
perpetuação do escravismo, da concentração da terra e do mandonismo senhorial
como pilares do Estado nacional e fundamentos da Nação. A promessa da origem e
do vínculo com a civilização europeia nos trópicos."
"Nessa época ele era uma peça de
enfeite", resume o biógrafo Rezzutti. "Era um símbolo nacional e
vinha sendo tratado como tal, mas sem nenhuma função executiva nem mesmo
consultiva."
Mas, evidentemente, ele recebia uma educação
própria para em algum momento assumir o império. "Ele estava no gabinete
de instrução e vinha sendo preparado para se tornar o futuro imperador",
diz Missiato.
- De
'enjeitado' a primeiro governante eleito
Feijó teve uma infância difícil. Foi o que se
costumava chamar de "enjeitado", ou seja, filho provavelmente tido em
situação fora do casamento que acabou abandonado criança na casa de um padre.
Este o batizou e o criou como padrinho.
Acabou recebendo sólida formação e sendo
ordenado ele também sacerdote. Foi professor de gramática e escreveu ele
próprio um compêndio de gramática latina. Quando tinha 29 anos vivia em São
Carlos, onde começava a ser bem-sucedido. Segundo registros do recenseamento da
época, chegou a ter no município paulista uma propriedade rural com 13
escravizados que produziam açúcar, cachaça, milho, feijão e arroz.
De lá, mudou-se para Itu onde, autorizado
pelo bispo, dava aulas particulares de filosofia. Foi ali que ele começou a se
imiscuir no meio político, passando a integrar a chamada junta eleitoral da
cidade — que congregava os poucos e abastados eleitores.
Seu primeiro cargo eletivo foi como deputado
enviado às cortes gerais e extraordinárias de Lisboa, naquele Brasil ainda
parte do Reino de Portugal.
Após a Independência, foi deputado por São
Paulo em duas legislaturas. Mais tarde seria também senador.
Seus últimos anos de vida foram marcados por
problemas de saúde. Ele teve um acidente vascular cerebral e acabou
hemiplégico, chegando a usar com frequência uma cadeira de rodas.
Quando ele tinha 59 anos e enfrentava uma
crise nervosa, decidiu sair para caminhar, caiu e bateu a cabeça em uma pedra.
No hospital, acabou morrendo de parada cardiorrespiratória em 10 de novembro de
1843.
Fonte: BBC News Brasil
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