Ditadura:
Justiça mantém condenação ao Estado brasileiro por violações ao povo Krenak
Depois
de décadas de impunidade por uma série de violações cometidas contra povos
indígenas durante a ditadura militar, a Justiça brasileira deu mais um passo
para que esses danos sejam, enfim, reparados. O Tribunal Regional Federal da 6ª
Região (TRF-6), com sede em Belo Horizonte, condenou, nesta terça-feira (8), o
Estado brasileiro por danos coletivos contra os Krenak.
“É uma
vitória muito significativa para o povo Krenak e, consequentemente, para todos
os povos indígenas no Brasil”, disse a liderança Douglas Krenak à Pública logo
após a decisão.
O
regime militar expulsou os Krenak de suas terras, em Minas Gerais, o que acabou
com o modo de vida tradicional e provocou a desestruturação social do povo.
Também torturou e prendeu indígenas, além de obrigá-los a realizar trabalhos
forçados.
A
decisão em segunda instância manteve todas as condenações que já tinham sido
definidas em primeira instância no julgamento de uma ação civil pública do
Ministério Público Federal. Em 2021, a 14ª Vara Federal Regional de Minas
Gerais determinou que a União, a Funai e o governo mineiro reconheçam as
violações cometidas em uma cerimônia pública e façam um pedido público de
desculpas ao povo Krenak – o que ainda não aconteceu.
Naquele
ano, a Justiça também condenou a Funai e o Estado de Minas Gerais a realizarem
ações para o registro e o ensino da língua Krenak. A Funai foi sentenciada,
ainda, a concluir a identificação e delimitação da Terra Indígena Sete Salões
em um prazo de seis meses. Essa etapa, no entanto, só foi realizada em 2023 – e
ainda restam outras para que o território seja oficialmente demarcado, como a
declaração pelo Ministério da Justiça.
Já a
reparação ambiental das terras degradadas no território Krenak, também
determinada à Funai, nem começou. Isso porque, na época da condenação em
primeira instância, o governo Bolsonaro recorreu da decisão. O governo Lula
manteve parte dos recursos, o que levou ao julgamento no TRF-6. Agora, com as
condenações mantidas, resta saber se a Advocacia Geral da União voltará a
recorrer da decisão.
No ano
passado, em processo paralelo, a Comissão de Anistia, órgão vinculado ao
Ministério dos Direitos Humanos que tem por objetivo reconhecer e reparar os
danos causados pela ditadura militar, concedeu anistia coletiva aos Krenak,
numa decisão histórica.
• Traumas da ditadura
A
história desse julgamento concluído nesta terça pelo TRF-6 tem início em 2015,
quando o Ministério Público Federal entrou com uma ação civil pública, na qual
expôs as violações cometidas contra os Krenak em três episódios produzidos pelo
regime militar.
O
primeiro deles foi a criação, em 1969, da Guarda Rural Indígena, um grupo
militarizado formado por indígenas de diferentes povos, obrigados a realizar o
policiamento ostensivo em seus próprios territórios, o que provocou vários
conflitos entre indígenas de um mesmo grupo. Em 1970, durante a formatura da
primeira turma da Guarda Rural Indígena, um indígena foi exibido para as
autoridades amarrado em um pau-de-arara, em uma cena explícita do tipo de
tortura sofrido por eles na época.
O
segundo foi a instalação, também em 1969, do Reformatório Krenak no território
tradicional do povo indígenak, à margem do rio Doce, no município de Resplendor
(MG). O reformatório era, na realidade, um presídio, onde foram mantidos pelo
menos 94 indígenas de 15 povos de todas as regiões do país.
O
regime justificava o confinamento por motivos como embriaguez, roubo,
homicídio, saída dos territórios sem autorização, “vadiagem”, entre outros. Na
prática, eram prisões arbitrárias e desproporcionais – indígenas chegaram a
denunciar que foram presos por falarem em suas próprias línguas ou por saírem
de suas aldeias para vender artesanato. Segundo a Comissão Nacional da Verdade,
o reformatório funcionava como um “campo de concentração”.
Por
fim, a ação civil pública destaca a expulsão dos Krenak de seu território
tradicional. Em 1972, a ditadura transferiu os indígenas à força para uma
fazenda no município de Carmésia, doada pela Polícia Militar para a Funai.
Depois da extinção do Reformatório Krenak, a fazenda também funcionou como um
centro de detenção arbitrária. No local, além de viverem confinados, os
indígenas eram obrigados a realizar trabalhos forçados.
Todas
essas violências seguem vivas na memória do povo Krenak, que, até hoje, luta
para recuperar suas terras ancestrais.
“O meu
pai sofreu muito na ditadura”, lembra Douglas. “Foi construída uma escola para
que o povo não falasse mais a nossa língua e aprendesse, forçado, a falar
português. Meu pai não gostava, ele gostava de fazer o que fazia antes, como
caçar e pescar. Um dia, ele não foi para a escola, um soldado descobriu, foi
atrás e encontrou meu pai pescando na beira do rio. Esse soldado pegou meu pai,
amarrou ele com um corda na cela do cavalo e arrastou ele, uma criança, para
toda a comunidade ver. Para servir de exemplo”, conta ele.
“São
coisas que ficam. Tem muito trauma no nosso território”, diz Douglas.
Foi
para enfrentar esses traumas que Douglas e seu pai, Valdemar Krenak, iniciaram
um trabalho de registro das memórias e reunião de documentos que, depois,
viriam a ser formalizados na ação civil pública.
“Quando
falamos para o MPF que queremos um pedido de desculpas, queremos que isso venha
com responsabilidades do Estado: demarcação do nosso território, políticas
públicas que atendam os danos psicossociais e todos os prejuízos que esse
Estado nos causou”, afirma Douglas.
A Terra
Indígena Krenak de Sete Salões fica no Vale do rio Doce e está em sua maior
parte sobreposta ao Parque Estadual Sete Salões – o nome faz referência a um
conjunto de grutas interligadas, um espaço sagrado para o povo Krenak. Segundo
Douglas, há no local mineradoras e fazendeiros que receberam títulos
indevidamente pelo Estado brasileiro, o que dificulta a finalização do processo
de demarcação.
Ainda
assim, com a condenação em segunda instância, os Krenak se sentem fortalecidos
para cobrar a regularização fundiária do território e as reparações
relacionadas à desestruturação da organização social e enfraquecimento da
cultura perpetrados pela União durante a ditadura militar.
• Lembrar para resistir
No
momento em que os Krenak saíam vitoriosos do tribunal em Belo Horizonte, a
vitória deles era anunciada para uma plateia de centenas de indígenas de todo o
país, reunidos em Brasília para a 21ª edição do Acampamento Terra Livre, a
maior mobilização nacional indígena.
“É
possível, sim, demarcar terras indígenas através da justiça de transição
[processo em que, após um período repressivo, o Estado adota medidas para
investigar e responsabilizar os envolvidos em crimes contra os direitos
humanos, além de garantir reparações às vítimas e criar mecanismos para evitar
a repetição dessas violações]. Os Krenak já colecionam duas vitórias, ou seja,
vamos aprender com os Krenak”, disse a advogada Maíra Pankararu, arrancando
aplausos da plateia.
Logo
depois, Itamar Krenak, outra liderança, subiu no palco para celebrar a decisão.
“O Estado brasileiro tem essa responsabilidade de nos proporcionar a vida, a
gente precisa do nosso território Sete Salões, que está em processo de
demarcação.”
As
declarações ocorreram durante uma sessão plenária que era realizada nesta
terça-feira justamente para discutir o direito à memória, a reparações e à
justiça de transição. No evento, lideranças das cinco regiões do país
compartilharam lembranças de violência na ditadura e falaram sobre como muitas
dessas violências continuam acontecendo no país e sobre a importância de
preservar a memória e lutar por uma reparação integral aos povos indígenas.
Celso
Jopoty, do povo Avá-Guarani, do Oeste do Paraná, falou sobre o impacto da
construção da usina hidrelétrica de Itaipu, que alagou boa parte do território
tradicional do povo, além de um cemitério. “Até agora a gente não teve nenhuma
reparação, mais de 40 anos sem território. Aquele cemitério que ficou debaixo
do lago, que tem os parentes alagados, a gente nunca vai conseguir reparar
aquilo. Reparar o sagrado vai ser difícil”, disse ele, lembrando que as
violências continuam – há meses os Avá-Guarani enfrentam uma série de ataques
de homens encapuzados e armados.
Os mega
empreendimentos da ditadura militar, caso da hidrelétrica de Itaipu, não só
expulsaram povos de seus territórios, como levaram doenças e todo o tipo de
violência para grupos que ainda não tinham tido muito contato com povos
não-indígenas, principalmente na região amazônica.
“Quantas
mulheres indígenas foram estupradas no processo de construção da
Transamazônica?”, questionou Braulina Baniwa. “A gente consegue quantificar
essas mulheres? Não temos esses dados”, disse ela.
“A
memória é fundamental para a gente resistir”, afirmou Eliel Benites, do povo
Guarani-Kayowá, do Mato Grosso do Sul. “Temos que pensar a memória como uma
estratégia de reconstrução dos territórios, como uma extensão do território.”
Essas
lideranças vêm atuando no projeto Justiça de Transição para Povos Indígenas,
uma iniciativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), do
Instituto de Políticas Relacionais e do Observatório dos Direitos e Políticas
Indigenistas da Universidade de Brasília.
O
projeto já disponibilizou mais de 2 milhões de páginas de documentos do período
militar no site Armazém Memória Viva. Também vem trabalhando para levantar, em
um processo de escuta nos territórios, sete casos de violações ocorridas na
ditadura. O objetivo é aprofundar a pesquisa sobre esses casos e entender como
cada povo quer trabalhar essas memórias e como gostariam de ser reparados.
Em
paralelo a esse trabalho, foi lançado, em setembro do ano passado, o fórum
“Memória, Verdade, Reparação Integral, Não Repetição e Justiça para os Povos
Indígenas”, coordenado pelo Ministério Público Federal, pela Apib e pelo
Observatório Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas da Universidade
de Brasília.
Um dos
objetivos do fórum é propor ao governo federal a criação de uma Comissão
Nacional Indígena da Verdade, o que, segundo o procurador regional da República
Marlon Alberto Weichert, que compõe o fórum, deve acontecer “em breve”.
“Trabalhamos
com uma Justiça de Transição feita pelos indígenas para os indígenas – mas
também para os não-indígenas, para que a sociedade como um todo possa
compreender o tamanho de sua dívida”, disse Weichert durante a sessão no ATL.
Como
resumiu Braulina Baniwa: “é preciso pensar na dor de ontem e de hoje para
pensar em um futuro sem dor”. Douglas faz coro: para ele, a garantia de um
futuro digno passa pela reparação das violações que foram cometidas. No caso
Krenak, trata-se até de recuperar a beleza de seu nome.
“Para
parentes mais velhos, de 80 anos, falar o nome Krenak era sinônimo de coisa
ruim, porque quando os parentes estavam resistindo em um território, por
exemplo quando a ditadura foi fazer a Transamazônica, eles falavam: ‘vocês vão
para o Krenak’, que era como eles chamavam o presídio”, conta Douglas. “Mas
Krenak é um nome muito diferente. Significa ‘cabeça na terra’, em sinal de
agradecimento, porque entendemos que a terra é um dos espíritos mais sagrados
que temos. A ditadura colocou nosso nome como sinônimo de coisa ruim.”
Já
nesta terça-feira (8), no que talvez seja uma reparação ainda pequena, o nome
Krenak foi sinônimo de justiça.
Fonte:
Por Isabel Seta, da Agencia Pública
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