Feminismos contra o fascismo
Por que tão poucas mulheres participam dos
cargos políticos? Por que as que ousam entrar nessa arena são violentadas,
agredidas moralmente, têm suas vidas ameaçadas? O que e quem impede as mulheres
de exercerem a plena cidadania consagrada na Constituição de 1988?
Para analisar essas questões, fui convidada a
participar da 1ª Audiência Pública Mulheres e cidadania, organizada pela Escola
Judiciária Eleitoral do Tribunal Eleitoral da Bahia, cujo corajoso objetivo era
diagnosticar a violência política de gênero e ampliar a participação política
das mulheres.
Foi a primeira vez que se propôs uma
audiência pública por iniciativa de importantes autoridades da Escola
Judiciária: os desembargadores Abelardo Paulo da Matta Neto e Moacyr Pitta Lima
Filho, além de uma ativa equipe de profissionais – homens e mulheres. Destaco
que, pela primeira vez ao longo de minha longa participação pública, presenciei
um evento cujos proponentes – homens e desembargadores – permanecerem do começo
ao fim, até a leitura da Carta de Salvador, apontando os problemas e soluções
propostos pela audiência.
Mas façamos algumas reflexões sobre a
presença/ausência das mulheres na formação sociopolítica brasileira recente.
Desde os primeiros dias do século XXI
enfrentamos crises, golpes, notícias falsas, governos de tom liberal e outros
que flertam com o fascismo. Esse cenário sintetiza a herança do passado
recente, as consequências de duas guerras mundiais, o esfacelamento do
comunismo e a diversificação do capitalismo.
Herdamos mudanças nas relações sociais de
gênero, pois as guerras forçaram as mulheres a ocupar atividades econômicas
antes desempenhadas pelos homens deslocados para atividades bélicas, das quais,
aliás, nunca se livraram. Findos os conflitos, independentemente de quem
tivesse sido o vencedor, as mulheres foram obrigadas (mesmo que à revelia) a
voltar para as atividades domésticas.
O retorno não foi pacífico, provocou mudanças
estruturais e econômicas, estimulando a abertura de alternativas profissionais,
educacionais e econômicas para as mulheres. Ampliou-se o trabalho
extradomiciliar, elevou-se o nível educacional das mulheres, reduziu-se o
número de filhos. Concomitantemente, as cidades cresceram de maneira
desorganizada, elevou-se parcamente a profissionalização masculina e feminina,
o mercado de trabalho não acompanhou o crescimento populacional.
As novas tecnologias, como a internet e a
inteligência artificial, foram ocupadas por poucos, embora a criatividade da
população tenha superado a carência educacional. Romperam-se as fronteiras
nacionais. Se na linguagem dos economistas passamos da polarização para a
globalização, do ponto de vista sociológico e empírico os papéis sociais – as
relações sociais de gênero – perderam tradicionais padrões.
Confrontando a ditadura de 1964-1985, os
movimentos feministas ocuparam as ruas (antecedendo o Occupy), denunciavam o
feminicídio e a carência de instrumentos para enfrentar a violência contra a
mulher e a menina. Na redemocratização, propostas da população resultaram em
algumas soluções adotadas pelo Estado: os Conselhos da Condição Feminina, as
Delegacias da Mulher, a Casa da Mulher Brasileira e o importantíssimo SOS
telefônico.
Essas medidas foram aprimoradas com
treinamento de professoras nas escolas, na universidade, entre os funcionários
da polícia (delegados, atendentes etc.), com médicos nos postos de saúde e uma
clara atuação sobre os direitos reprodutivos para evitar mortes por abortos
inadequados.
Foram muitos anos para desenvolver e
implantar essas políticas. Mas bastou um governo obscurantista e retrógrado,
desumano, autoritário, para destruir essas políticas. Ataques a gênero, aos
grupos LGBTQI+, retorno a um essencialismo identitário (homem veste azul,
mulheres rosa), retorno de uma divisão radical dos papéis sociais, diabolização
dos transgênero, estimularam contradições nos valores e comportamentos
alterando as relações entre os membros das famílias.
A herança patriarcal fragilizou-se, mas não
se extingue: o patriarcado enraizado na sociedade brasileira resiste, embora
mais de 50% das famílias sejam hoje sustentadas por mulheres. O poder continua
com homens socializados em padrões conservadores e que circulam absurdamente
armados. Em São Paulo, por exemplo, diminuíram os roubos nos últimos 10 anos,
mas aumentaram estupros e assassinatos de mulheres. Entramos no século XXI com
o aumento dos feminicídios.
O governador de São Paulo, estado
economicamente mais avançado do País, adota uma política educacional
profundamente autoritária: implanta escolas militarizadas, exclui do currículo
escolar matérias que estimulem o senso crítico, substituindo-as pela ordem e
obediência. Jovens crescem sem nenhum conhecimento sobre sexualidade, são
induzidos a um tipo de patriarcado em que prospera a antiga noção de que a
mulher é propriedade do homem, com quem ele pode fazer o que quiser: bater,
estuprar e matar.
Simultaneamente exalta-se a vida doméstica, a
mulher dona de casa, submissa e obediente. E mesmo aquelas que se voltam para
atividades políticas (houve ligeiro aumento de deputadas federais) adotam uma
ideologia de direita. Justificam-se como Mães da Pátria, no Congresso. As
parlamentares que entram para o campo político das propostas progressistas,
para o bem coletivo, são agredidas. Exatamente como no nazismo: exaltam-se as
mães da pátria, mulheres que reproduzem via maternidade mais mão de obra, caladas,
submissas, defensoras de um líder supremo! Essa vertente congrega os
antifeministas.
Os movimentos feministas são revolucionários.
Comportam variações, mas, em geral, buscam a igualdade de gênero. Igualdade
entre as mulheres, igualdade entre mulheres e homens, igualdade entre todas as
pessoas incluindo cor, etnia, aptidões, e demais variações. Mas sempre a
igualdade. Igualdade também significa dividir o poder. Em oposição avança o
antifeminismo, doutrina do autoritarismo. O antifeminismo significa retornar ao
fascismo, garantir a submissão das mulheres e demais minorias a um líder brutal.
Essa história é nossa conhecida. Este é o
momento de decidir de que lado estamos.
Fonte: Por Eva Alterman Blay, em A Terra é
Redonda

Nenhum comentário:
Postar um comentário