O
cotidiano de calor nas escolas brasileiras, onde grande parte das salas de aula
não têm ar-condicionado
O verão deste ano foi marcado por
sentimentos conflitantes para a menina Maria Lavinia Santos Costa, de 4 anos.
Moradora
de Praia Grande, cidade no litoral de São Paulo, ela adora
frequentar a praia, sempre na sua
companhia de sua mãe, a técnica de enfermagem Luana Costa.
Na
escola, no entanto, o calor não dá trégua.
Na sala
dela e em todas as outras das 78 unidades escolares municipais de
Praia Grande, não há ar-condicionado.
Mesmo
já no outono, Maria Lavinia e todos os 56 mil alunos da rede municipal devem
continuar sentindo o desconforto das altas temperaturas que, segundo as
previsões, devem continuar no Sudeste e Centro-Oeste.
Na sala
da menina, que estuda no turno da tarde na Escola Municipal Oswaldo Justo, há
apenas dois ventiladores.
"Ela
chega exausta e, em alguns dias, com brotoeja. Ela já me pediu para não ir à
escola", conta a mãe, que relata desconforto quando ela própria participou
de uma reunião de pais no local onde a filha estuda.
"Saí
de lá passando mal. Foram 40 minutos de terror ali."
Em
fevereiro, Luana criou um abaixo-assinado virtual cobrando da administração
municipal a instalação dos aparelhos. Até agora, já conseguiu mais de 18 mil
assinaturas.
No dia
17 daquele mês, a sensação térmica na Baixada Santista chegou a 50 ºC,
segundo o site de meteorologia Climatempo.
A
Prefeitura de Praia Grande admite o problema e diz que, em janeiro, foi
determinada a elaboração de um estudo de viabilidade técnica e financeira para
a climatização das salas de aula — mas não apontou prazo para isso.
A
administração municipal destacou também que todas as escolas contam com
ventiladores e bebedouros com água gelada.
Mas o
problema vai muito além de Praia Grande: apenas 34% das salas de aula em
escolas públicas brasileiras (municipais, estaduais e federais) e 47% das salas
em escolas particulares têm climatização, segundo um estudo do Centro de
Inovação para a Excelência das Políticas Públicas (CIEPP).
A pesquisa se baseia em
dados de 2023 do Censo Escolar.
A
climatização inclui ar-condicionado, aquecedor ou climatizador.
E o
estado de São Paulo, o mais populoso e rico do país, é o que aparece com o
menor percentual de climatização em sua rede: 2,7% das salas nas escolas
estaduais paulistas tinham climatização naquele ano.
Considerando
apenas as escolas municipais paulistas, o percentual foi de 12,1% — o segundo
menor no país, atrás apenas de Minas Gerais (9,9%).
Para o
advogado Ariel de Castro Alves, ex-secretário nacional dos Direitos da Criança
e do Adolescente, essa omissão do poder público viola o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA).
"O
estatuto garante que nenhuma criança seja objeto de
violação à integração física e psicológica. E isso está sendo ferido, com a
exposição ao calor excessivo", diz Alves, que também presidiu o Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
"O
próprio direito à educação é
desrespeitado."
Ainda
segundo ele, governadores, prefeitos e secretários de Educação — municipais e
estaduais — podem ser responsabilizados por isso.
"As
famílias precisam denunciar esses agentes no Ministério Público e nos conselhos
tutelares", aponta o advogado.
A
educação infantil costuma ser responsabilidade dos municípios; o fundamental,
tanto de municípios quanto de estados (embora as prefeituras detenham a maioria
das unidades); e o ensino médio, dos estados.
Existem
também escolas federais, mas elas são minoritárias, como colégios militares e
centros federais de educação tecnológica (Cefet).
O
Ministério da Educação (MEC) afirmou em nota que dá assistência técnica e
financeira para que os municípios e estados implementem ventiladores e
aparelhos de ar-condicionado nas escolas.
Governos
locais interessados nisso devem cadastrar sua demanda no Plano de Ações
Articuladas (PAR) — uma vez aprovadas, as solicitações são financiadas por
emendas parlamentares ou pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE), vinculado ao MEC.
"A
atual gestão tem buscado retomar as atas de registro de preços do FNDE que
oferecem ganhos de escala, produtos padronizados e de qualidade aos entes
federados, que ficam desobrigados a realizar processos licitatórios
próprios", afirmou o ministério à BBC News Brasil.
Já o
governo estadual de São Paulo, cuja rede teve o menor percentual na pesquisa do
CIEPP, afirmou ter como meta atingir a climatização de 60% das unidades até o
início do ano letivo de 2027.
A
Secretaria de Educação do estado destacou que, para tal, é preciso adaptar a
infraestrutura elétrica das escolas, instalar os aparelhos e fazer com que as
concessionárias façam a ligação da energia.
"Já
foram investidos aproximadamente R$ 350 milhões apenas na primeira etapa do
programa de climatização das escolas, que abrange 1.056 unidades
escolares. Até o início de 2026, mais mil escolas estarão contempladas com o
sistema de climatização", afirmou o governo paulista, acrescentando que
vem priorizando a instalação nas regiões mais quentes do estado.
- Calor mesmo no
outono
O
quadro se agrava com a perspectiva das mudanças climáticas. De acordo com o
serviço climático europeu Copernicus, 2024 foi o ano mais quente já
registrado no planeta.
Segundo
registros da Climatempo, somente em 2025 o Brasil já enfrentou cinco ondas de calor.
Para
configurar uma onda de calor, a temperatura deve ficar pelo menos 5 ºC acima da
média para uma região por um período de cinco dias ou mais. Em 2024, foram
registradas nove ondas de calor.
Fevereiro
deste ano foi marcado pelo forte calor no Sul e Sudeste e período de chuvas
acima da média no Norte e Nordeste.
As três
capitais que registraram temperaturas mais altas foram Rio de Janeiro (41,3
ºC), Porto Alegre (39,8 ºC) e Florianópolis (37,5 ºC).
Mesmo
com a entrada do outono em 20 de março, o calor deve
continuar em abril em algumas partes do país.
"O
desconforto térmico vai permanecer. É claro que não teremos índices como o de
fevereiro, mas a população de boa parte do Sudeste e Centro-Oeste não deve
contar com um outono fresco em abril", diz Josélia Pegorim, meteorologista
da Climatempo.
Norte e
Nordeste, no geral, já enfrentam altas temperaturas praticamente o ano todo — e
com isso, não são impactados pelos sistemas de alta pressão atmosférica que
geram as ondas de calor nas outras regiões, acrescenta Pegorim.
Segundo
a especialista, o calor só não será ainda mais forte em abril em parte do país
porque, entre os dias mais quentes, haverá curtos períodos de frente fria, o
que vai amenizar o calor.
"Elas
[as frentes frias] vão interromper um pouco a alta da temperatura, mas não vão
durar mais do que dois dias."
A
meteorologista aponta também que, a partir de setembro, as regiões Sul, Sudeste
Centro-Oeste devem voltar a sofrer ondas de calor.
- Problemas para a
saúde dos alunos
Das 151
escolas municipais da cidade da Baixada Fluminense, 82 estão climatizadas.
Uma das
unidades que não tem climatização é o Centro Integrado de Educação Pública
(Ciep) 187 Benedito Laranjeiras, onde a professora Gláucia de Souza Dias dá
aulas e onde seu filho, Yann Carlos Dias Monteiro, de 13 anos, estuda.
"É
estranho porque, até 2018, quando era uma escola estadual, tinha
ar-condicionado. Quando foi municipalizado, os aparelhos foram retirados. E as
crianças sofrem com o enorme calor", diz Gláucia.
Segundo
ela, só há refrigeração na diretoria e na sala dos professores, o que causa uma
situação constrangedora.
"Eu
fico envergonhada, porque os alunos batem lá para falar com a gente e sentem o
ar geladinho. Eles ficam muito chateados. Isso não é justo", afirma a
professora.
Para o
advogado Ariel de Castro Alves, essa diferença no tratamento fere o ECA, cujo
artigo 4 diz que crianças e adolescentes possuem prioridade absoluta na
preservação de seus direitos em qualquer tipo de atendimento público.
"No
lugar de instalar ar-condicionado nas diretorias, a prioridade é garantir que
esses alunos não sejam expostos a intenso sofrimento físico, ocasionado por
essas ondas de calor e falta de condições ideias nas salas de aula",
argumenta Alves.
A
professora Gláucia percebe esse sofrimento físico em seu filho, cuja turma tem
cerca de 40 estudantes.
"Ele
reclama muito e com frequência diz que não quer ir. Sei que é verdade porque
muitos alunos meus passam mal", relata Dias.
A
Prefeitura de Nova Iguaçu afirma que há 61 escolas com aparelhos instalados,
mas ainda não funcionando porque aguardam o aumento da carga elétrica pela
concessionária — sem dizer quando isso irá acontecer.
A
administração municipal também afirmou que o Ciep 187 Benedito Laranjeiras
receberá climatização até o fim de abril.
No
estado do Rio, 72,9% das salas em escolas estaduais e 46,7% nas municipais são
climatizadas, de acordo com o levantamento do CIEPP.
Deixar
uma criança em ambiente fechado por pelo menos quatro horas, com outros alunos
e sem refrigeração adequada pode gerar problemas de saúde, principalmente no
sistema respiratório, segundo a médica Vera Rullo.
"Quando
há aumento excessivo de temperatura, há mais partículas que ficam no ambiente.
Isso entra pelas vias aéreas e causa uma série de problemas na função
pulmonar", diz Rullo, presidente do departamento de alergia e imunologia
da Sociedade de Pediatria de São Paulo.
Isso
aumenta a procura por atendimento médico para crises asmáticas.
Segundo
a profissional, que trabalha em uma unidade pública de saúde na cidade de
Santos (SP), houve um acréscimo de 20% neste ano no volume de crianças com
problemas respiratórios no local onde ela atende, decorrentes do calor dentro
da sala de aula.
A
médica também afirma que o calor nas escolas acarreta mais problemas de pele,
como alergias e irritações.
Ela
recomenda que, se possível, o aluno aumente o consumo de água e faça hidratação
nasal com soro fisiológico.
Além da
saúde, o aprendizado é duramente atingido pela falta de um ambiente adequado.
Um estudo realizado pela Universidade de
Harvard mostra
que, em Nova York, as perdas de aprendizado aumentaram em até 50% em dias
letivos com temperaturas acima de 38 graus.
- Além do
ar-condicionado
No
Brasil, um estudo do Instituto Alana, em parceria com o projeto MapBiomas, dá
um passo além e traça caminhos para amenizar o sofrimento da comunidade escolar
com o calor.
Segundo
o levantamento, divulgado no fim do
ano passado, cerca de um terço das escolas (públicas e privadas) das capitais
do país não possuem áreas verdes em seus terrenos.
Na
prática, isso gera ilhas de calor, com temperaturas nas salas de aula 3,57 ºC
acima da temperatura média da cidade. Normalmente, isso coincide com regiões
mais periféricas.
Maria
Isabel Barros, especialista em infâncias e natureza do Instituto Alana, afirma
que a infraestrutura das escolas "não foi pensada para essa emergência
climática".
"O
impacto dessas mudanças climáticas na educação e esses eventos têm se tornado
mais frequentes e mais graves. Todos sofremos, e as escolas não são exceção.
Justamente porque não estamos preparados", afirma a especialista.
"As
famílias dependem das escolas, porque os pais precisam trabalhar. A gente não
pode normalizar que o impacto [do calor] poderia resultar em suspensão de
aulas, por exemplo."
Barros
defende que as escolas tenham mais arborização e ventilação natural.
"A
primeira medida que a gente pensa, quando se fala em adaptação, é a
climatização. Mas não deve ser a única. É preciso pensar em longo prazo, em
algo que não dependa da matriz energética", argumenta Barros.
Fonte:
BBC News Brasil
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