As freiras que ajudaram a desvendar alguns
dos maiores mistérios sobre o Alzheimer
O ano era 1986. O epidemiologista e professor
de neurologia David A. Snowdon começava a investir num projeto inusitado:
acompanhar centenas de freiras para entender os fatores por trás do
envelhecimento e do desenvolvimento de diversos tipos de demência, como o
Alzheimer.
Passadas quase quatro décadas, o chamado Nun
Study (ou "Estudo das Freiras", em tradução livre) ajudou a desvendar
alguns dos principais mecanismos por trás das falhas de memória e do raciocínio
— e é celebrado como um "divisor de águas" por especialistas da área.
Essa pesquisa permitiu entender, por exemplo,
o papel da reserva cognitiva — e da educação — na prevenção da demência. Ela
também ajudou a identificar genes que aumentam o risco de Alzheimer. E ainda
descobriu que várias doenças simultâneas podem levar ao apagamento das
lembranças no cérebro.
Mas o trabalho não acabou: graças aos avanços
na digitalização de documentos e à inteligência artificial, os responsáveis
pelo projeto apostam que o Estudo das Freiras ainda vai responder mais
perguntas sobre essa enfermidade, que já afeta 55 milhões de pessoas ao redor
do mundo.
Conheça a seguir por que esse trabalho
prestes a completar 40 anos é tão celebrado por cientistas — e os detalhes do
que ele ajudou a entender sobre o Alzheimer.
• Condições
únicas e riqueza de detalhes
Snowdon, que hoje está aposentado, conseguiu
uma coisa rara: ele convenceu um grupo de freiras católicas enclausuradas da
ordem das Irmãs Escolares de Nossa Senhora a participar de um estudo
científico.
Mas ele estabeleceu algumas condições para
que elas fossem aceitas como voluntárias, como conta um artigo recém-publicado
sobre o tema.
A primeira era que as irmãs deveriam fazer
exames anuais, para avaliar como estava o estado cognitivo e físico. A segunda
era que elas deveriam compartilhar o histórico médico e outros documentos
relevantes, como diários ou cartas que escreveram assim que entraram no
convento. O terceiro e último ponto: todas deveriam concordar em doar o cérebro
após a morte.
No total, 678 freiras toparam o desafio. No
início da pesquisa, em 1991, todas estavam com mais de 75 anos e moravam em
diferentes conventos da ordem religiosa espalhados por sete cidades dos Estados
Unidos. Todas elas já faleceram.
O estudo começou a ser conduzido na
Universidade de Minnesota. Depois, foi transferido para a Universidade do
Kentucky. Após a aposentadoria de Snowdon, o trabalho voltou à Universidade de
Minnesota, passou pela Universidade de Northwestern e agora é realizado no
Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Texas em San Antonio (UT Health
San Antonio).
Mas por que avaliar um grupo como esse pode
ser tão valioso?
"Esse estudo é um divisor de águas
porque ele avalia uma população muito homogênea", responde a médica Sonia
Brucki, coordenadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do
Hospital das Clínicas de São Paulo.
Ou seja: o Estudo das Freiras reuniu um grupo
de mulheres cujo estilo de vida era muito similar.
Todas elas entraram para o convento ainda
jovens, entre o fim da adolescência e o início da vida adulta. Além disso, não
bebiam, tinham uma dieta parecida, um mesmo nível socioeconômico, um padrão
comparável de atividade física e intelectual, acesso aos serviços de saúde…
"Com isso, fica mais fácil evitar
possíveis fatores de confusão e ver o impacto de alguns elementos específicos
no desenvolvimento da demência, como a educação e o estímulo cognitivo em
diferentes fases da vida", complementa Brucki.
• A
importância de uma 'poupança' cerebral
Os especialistas consultados pela BBC News
Brasil foram unânimes em afirmar que a maior contribuição do Estudo das Freiras
está relacionada ao conceito de reserva cognitiva e resiliência.
Lembra que as freiras toparam doar diários e
cartas que escreveram?
Um dos requisitos que todas cumpriram ao
entrar na ordem religiosa, quando tinham aproximadamente entre 18 e 22 anos,
era a de redigir uma redação, em que contavam um pouco da própria história e
das motivações que as levaram a adotar o hábito.
Ao analisar esses materiais, os pesquisadores
observaram uma relação entre a complexidade das cartas escritas na juventude
com a probabilidade de desenvolver demência décadas depois.
Em outras palavras, as autoras de textos mais
rebuscados e profundos, com um vocabulário mais extenso e variado — sinais de
uma maior habilidade linguística e um nível educacional avançado —,
apresentaram um menor risco de Alzheimer na velhice.
Já aquelas que escreveram cartas mais simples
e menos densas, com um menor léxico ou ideias mais superficiais, tinham maior
probabilidade de sofrer com a doença que afeta a memória e o raciocínio.
Esses achados ajudaram a sedimentar a ideia
de reserva cognitiva — uma espécie de "poupança" cerebral que
construímos ao longo da vida toda vez que nos engajamos numa atividade que
estimula a mente, como ir para a escola, fazer um curso, ler um livro e
aprender um novo idioma.
A neurologista Elisa Resende compara esse
mecanismo que atua sobre o cérebro ao efeito dos treinos de academia sobre os
músculos.
Isso porque as atividades cognitivas
fortalecem e criam novas conexões entre os neurônios, conhecidas como sinapses.
Vamos pensar no caso de uma pessoa que fez
muita "musculação cerebral" durante a vida e, por isso, construiu ou
fortaleceu muitas dessas sinapses entre os neurônios.
"Se ela tiver uma demência, pode até
perder algumas dessas conexões e vias, mas ainda terá outros caminhos para
fazer tarefas cognitivas relacionadas à memória e ao raciocínio", explica
Resende, que é professora da Universidade Federal de Minas Gerais.
"Agora, caso o indivíduo tenha uma baixa
reserva cognitiva, ao perder as poucas conexões disponíveis, ele já começa a
sentir os efeitos da doença", compara ela, que também atua na Faculdade de
Ciências Médicas de Minas Gerais.
A diferença aqui está no momento de
aparecimento dos sintomas.
Por exemplo: uma pessoa com uma reserva cognitiva
grande pode até ter as alterações cerebrais típicas de um quadro demencial a
partir dos 60 anos. Mas ela só vai começar a sentir alguma diferença prática,
no dia a dia, com o aparecimento de incômodos, uma ou duas décadas mais para
frente.
Já um indivíduo com pouca "poupança
cerebral" pode ter as mesmas transformações patológicas aos 60 anos. No
entanto, sinais como os esquecimentos frequentes vão aparecer mais cedo, em
três ou cinco anos.
Em entrevista à BBC News Brasil, a
neuropatologista irlandesa Margaret Flanagan apresenta outro conceito
importante aqui: a resiliência.
"Normalmente, pessoas com a doença de
Alzheimer apresentam o acúmulo das proteínas beta-amiloide e Tau. Diferentes
pesquisas mostram que, quando você tem uma certa quantidade dessas substâncias
no seu cérebro, há o aparecimento de problemas de memória e demência",
contextualiza a especialista, que é a atual responsável pelo Estudo das Freiras
na UT Health San Antonio.
"Mas há um grupo específico de pessoas,
incluindo algumas das freiras, cuja autópsia cerebral pós-morte revelou muitas
placas e emaranhados de beta-amiloide e Tau que são compatíveis com a demência.
No entanto, elas tinham a memória intacta, sem nenhum prejuízo cognitivo",
conta ela.
Os pesquisadores querem entender se há algum
outro fator, além do nível educacional, que ajuda a explicar esses cérebros
mais resilientes aos efeitos da demência.
• O
papel da genética e a demência 'mista'
Cientistas apontam que o Estudo das Freiras
também ajudou a entender mais a fundo a influência do DNA no aparecimento do
Alzheimer.
A contribuição foi especialmente relevante
para o conhecimento sobre o gene APOE4, que é considerado hoje o fator de risco
genético mais importante neste tipo de demência.
"Quem apresenta uma cópia do APOE4 tem
um risco até dez vezes maior de desenvolver o Alzheimer. Com duas cópias, esse
risco sobe para 15 vezes", estima Resende.
"E o Estudo das Freiras foi muito
importante para compreender isso, porque a presença do APOE4 nessas mulheres
esteve relacionado ao desenvolvimento de demência nas primeiras avaliações ou
durante o acompanhamento", resume Flanagan.
A análise do cérebro após a morte das
voluntárias também permitiu saber que o apagamento das memórias e as
dificuldades de raciocínio são ainda mais complexos do que o imaginado.
Isso porque muitos dos casos de demência não
eram causados por um Alzheimer "puro" — ou seja, marcado
exclusivamente pelo acúmulo das proteínas beta-amiloide e Tau.
A maioria das freiras apresentou uma
patologia mista: os cérebros delas tinham sinais de Alzheimer, mas também de
outros tipos da doença, como a demência vascular (marcada pelo fechamento de
vasos sanguíneos que irrigam determinadas regiões do sistema nervoso), a
demência frontotemporal, a demência por corpos de Lewy, entre outras.
"Hoje nós sabemos que, quanto mais idoso
o paciente, ou mais tardia a manifestação da demência, maior a presença de
diversas patologias, que se agregam no cérebro", diz Brucki.
Detalhar essa mistura de diferentes tipos de
demência é muito importante, avaliam especialistas, até para pensar em novos
métodos de diagnóstico e tratamentos mais efetivos, que considerem essas
múltiplas manifestações e alterações que acontecem na cabeça.
"Talvez precisaremos combinar diferentes
remédios para tratar esses pacientes", especula Flanagan.
• Os
próximos passos
Apesar de o Estudo das Freiras já estar quase
com 40 anos de existência, ele parece longe de terminar.
Flanagan destaca que os cientistas trabalham
agora para digitalizar "caixas e mais caixas" do acervo de cartas,
exames, lâminas de autópsias e fichas médicas de todas as voluntárias.
"Com isso, seremos capazes de usar
ferramentas de patologia mais sofisticadas, inclusive com o auxílio da
inteligência artificial", vislumbra ela.
A esperança é que essas tecnologias permitam
encontrar novas informações e descobertas sobre o Alzheimer a partir desse
enorme banco de dados.
Para Brucki, uma das grandes perguntas que
carece de respostas tem a ver com o início da demência.
"Por que acontece o depósito de
proteínas, como a beta-amiloide e a Tau? Não sabemos como esse processo
começa", lembra ela.
Já Resende tem curiosidade de entender a
fundo o mecanismo preciso por trás da reserva cognitiva.
"Como isso se traduz em termos
biológicos? O que a educação faz no cérebro ao criar essas conexões entre os
neurônios? Como isso acontece? E para que?", questiona ela.
Enquanto as respostas para esses e outros
mistérios da demência não são conhecidas, Flanagan destaca outra descoberta
singela — e um tanto inspiradora — do Estudo das Freiras.
Lembra que quando as irmãs entraram para o
convento elas precisavam escrever uma redação autobiográfica?
"Análises observaram que as freiras que
adotaram um tom mais otimista, ou seja, olhavam o mundo sob a perspectiva do
'copo meio cheio', desenvolveram menos demência em relação àquelas que tinham
uma perspectiva mais negativa ou pessimista", diz a pesquisadora.
"E essas são descobertas muito
fascinantes", conclui ela.
Fonte: BBC News Brasil
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