Ciência e políticas públicas para o
desenvolvimento de Uma Só Saúde
No
campo das políticas públicas há um amplo debate sobre a dificuldade de se
promover mudanças, especialmente naquelas mais consolidadas. Esse debate reconhece que processos de mudanças em
políticas públicas são complexos, confusos e imprevistos, envolvendo
distintos atores e interesses. O mesmo pode ser dito sobre mudanças nos
diferentes campos científicos. Práticas estabelecidas nas distintas áreas do
conhecimento, processos de avaliação da produção científica, estruturas
institucionais departamentalizadas e divisão disciplinar de recursos para
financiamento à pesquisa são processos que possuem lógicas próprias e muito
consolidadas, tornando as mudanças lentas e incrementais.
Essa
dificuldade de mudanças para a integração de conhecimentos também se verifica
na abordagem de Uma Só Saúde, que reconhece a interconexão entre a saúde
humana, animal e ambiental, mas enfrenta dificuldades para ser colocada em
prática. No âmbito científico, a fragmentação do conhecimento em disciplinas
especializadas torna complexo o diálogo entre as três áreas. Por sua vez, no
campo das políticas públicas, a falta de coordenação entre setores
governamentais dificulta a formulação e implementação de estratégias
integradoras, capazes de enfrentar problemas complexos, como as pandemias ou as
mudanças climáticas.
Para
discutirmos como podemos avançar no desenvolvimento de uma ciência e de
políticas públicas integradoras, precisamos compreender a evolução do conceito
de One Health para, a partir disso, pensarmos em como superar
a disciplinaridade ou a setorialidade. Este é o caminho seguido neste texto.
- O surgimento da
abordagem “uma só saúde”
Apesar
de a ideia de ‘uma só saúde’ ter se difundido mundialmente a partir dos anos
2000, sua gênese e prática iniciam-se com figuras históricas específicas, cujas
obras podem ser vistas como fundadoras do estudo das relações entre saúde e
meio ambiente. O tratado sobre o ar, as águas e os lugares (‘Aere, Aquis et
Locis’), um argumento baseado na observação atenta das características locais,
parte da premissa de que a doença é um produto de locais específicos, de
autoria de Hipócrates, talvez seja a primeira manifestação sobre a
interdependência entre saúde e meio ambiente. Os escritos prolíficos deste
médico grego tornaram-se fundamentais para as eras posteriores. A seguir,
podemos citar a grande contribuição de Aristóteles, que introduziu o conceito
de medicina comparativa por meio de seu estudo das características comuns entre
diferentes espécies, incluindo seres humanos e outros mamíferos. A abordagem
integrada e unificadora, considerando a interconexão entre a saúde humana e a
saúde ambiental, foi se tornando cada vez mais evidente.
No
século XIX, a preponderância da preocupação com os miasmas na análise da
salubridade de uma localidade começou a ser colocada em xeque pelas
estatísticas da primeira geração de sanitaristas franceses, entre eles Louis
René Villermé e Alexandre Parent du-Châtelet, que mais tarde foram responsáveis
pela criação da primeira especialidade veterinária de higiene pública na
França. A origem do termo zoonose é atribuída ao alemão Rudolf Virchow, em
1855, ao tratar das “Infectionen durch contagiöse Thiergifte (Zoonosen)”
– infecções por toxinas animais contagiosas (zoonoses) –, como também é dele o
seguinte pensamento: “Entre medicamentos animais e humanos não há linhas
divisórias – nem deveria haver. O objeto é diferente, mas a experiência obtida
constitui a base de toda medicina”. Podemos concluir que, nesse período, os
cientistas já percebiam as relações e semelhanças dos processos saúde-doença
entre seres humanos, animais e ambiente, mesmo que frequentemente tratados de
forma individualizada.
Já no
século XX, Calvin Schwabe, no seu livro, Veterinary Medicine and Human
Health, publicado em 1976, propõe a terminologia One Medicine,
evidenciando a necessidade de ação conjunta e integrativa entre a medicina
humana e a veterinária para curar, prevenir e controlar doenças que afetam humanos e animais.
Outros
conceitos foram surgindo ao longo dos anos, todos com uma visão da saúde
múltipla e global. Nesse contexto podemos acrescentar mais dois conceitos
importantes: EcoHealth e Planetary Health. O
primeiro compreende uma proposta para a saúde humana, dos animais e dos
ecossistemas, sob bases de sustentabilidade ambiental e estabilidade
socioeconômica, prevendo a integração da saúde, do bem-estar humano e animal em
ecossistemas saudáveis. Planetary Health é um conceito
proposto pela Rockefeller Foundation – Lancet Commission para abordar a saúde
planetária como uma alternativa à One Health e à EcoHealth,
porém com foco mais direcionado à saúde humana, embora também considere o meio
ambiente.
O
termo One Health começou a ganhar reconhecimento global no
início dos anos 2000, impulsionado por desafios sanitários emergentes e a
preocupação com surtos de doenças zoonóticas crescentes, como a encefalopatia
espongiforme bovina (doença da vaca louca) e a gripe aviária, que evidenciaram
a necessidade de abordagens interdisciplinares. Cerca de 75% das doenças
emergentes em humanos têm origem animal e podemos exemplificar com a Aids, o
Ebola e a Covid-19. Outro fato preocupante, e relacionado, é o uso excessivo de
antibióticos na medicina e na agropecuária, favorecendo o surgimento de
superbactérias. Podemos ainda acrescentar à lista de preocupações as mudanças
climáticas, que alteram a dinâmica de transmissão de doenças, impactando
ecossistemas e vetores como mosquitos. Finalizando a lista, acrescentamos o
crescimento populacional e a urbanização, já que, com o aumento populacional e
a ocupação de espaços antes ocupados apenas por animais, a expansão humana
amplia o contato com animais silvestres e ambientes naturais, elevando o risco
de novas doenças.
Em
2004, a Wildlife Conservation Society sediou uma conferência de especialistas
internacionais em múltiplas disciplinas, com o objetivo de discutir e responder
aos movimentos relatados e potenciais de doenças entre populações humanas,
animais domésticos e vida selvagem. Esta resultou na publicação dos “Princípios
de Manhattan”, que foram seguidos por movimentos internacionais. Em 2008, um
acordo tripartite foi firmado para abordar a interface animal, humana e
ecossistemíca, reunindo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização
Mundial de Saúde Animal (OIE) e a Organização das Nações Unidas para
Alimentação e Agricultura (FAO), com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a
Infância e da Coordenação do Sistema de Influenza das Nações Unidas. Em junho
de 2012, o Banco Mundial publicou uma avaliação dos benefícios econômicos da
Uma Só Saúde. Na última década, vários encontros, simpósios, publicações,
programas universitários, medidas de gestão de saúde e projetos de pesquisa
internacionais, serviram para criar uma comunidade de prática em constante
expansão. Esta comunidade vem promovendo de forma crescente o uso do termo, dos
princípios e das doutrinas capturados pela One Health. Assim,
podemos considerar o enfoque de Uma Só Saúde (ou Saúde Única) um sucesso
político que vêm buscando, sobretudo nos últimos 20 anos, estabelecer uma
relação estreita entre ambiente, saúde humana e animal no plano internacional.
- A importância da
abordagem “uma só saúde global” para enfrentamento de novas pandemias
Um
Memorandum of Understanding (MoU) – memorando de entendimento – assinado em
março de 2022 fortaleceu a cooperação, equilibrou e otimizou de forma
sustentável a saúde de humanos, animais, plantas e do meio ambiente,
determinando, assim, uma nova era de colaboração para uma ‘Uma Só Saúde’
Global. O grupo, anteriormente denominado Tripartite, incorporou o Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), passando a se chamar Quadripartite,
e essa aliança recém-expandida elaborou o Plano de Ação Conjunto em ‘Uma Só
Saúde’ (em inglês, a sigla é OH JPA). Nesse plano, são descritas iniciativas
importantes, tais como reduzir os riscos de epidemias e pandemias zoonóticas
emergentes ou ressurgidas, demonstrando a clara preocupação mundial com novas
pandemias. É preciso lembrar que, nos primeiros 23 anos do século XXI, já
vivenciamos pelo menos oito grandes surtos virais, incluindo o Nilo Ocidental,
a SARS-CoV, a H1N1, o MERS-CoV, o Zika, o Ebola, a SARS-CoV-2 e a Mpox. Destes,
três eram novos vírus e dois resultaram em pandemias. Neste cenário, os vírus
se destacam como ameaças potenciais.
Não
podemos esquecer que a chamada “peste negra” foi uma das pandemias mais
devastadoras registadas na história humana, causada pela bactéria Yersinia pestis. Quando ocorreu a pandemia de
influenza de 1918, não havia vacinas, medicamentos antivirais ou oxigênio
suplementar. A única terapia específica era o soro convalescente, cuja análise
retrospectiva sugeriu redução da mortalidade em aproximadamente 20%. A pandemia
de HIV envolveu um retrovírus não conhecido anteriormente pela área médica. No
início da década de 1980, avanços na biologia molecular permitiram a
identificação do vírus três anos após a detecção dos primeiros casos, e a
terapia antiviral estava disponível mais tarde, de modo que a doença
resultante, a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), passou de
uniformemente letal para uma doença controlável, se tratada adequadamente.
Analisando
a história verificamos que toda pandemia causa danos incalculáveis não só aos
afetados, mas à população geral. Porém, não podemos ignorar que também há um
grande aprendizado seguido por progressos científicos. Durante e após a
pandemia da COVID-19, várias ações internacionais foram desenvolvidas, dentre
elas o estabelecimento do Órgão Intergovernamental de Negociação, para elaborar
e negociar acordos sobre prevenção, preparação e resposta a pandemias.
- Promovendo
mudanças no sentido de uma abordagem integradora
A
história do conceito de Uma Só Saúde destaca a crescente compreensão da
interconexão entre saúde humana, animal e ambiental. Embora essa abordagem
integrada seja bastante reconhecida, a implementação de políticas públicas que
reflitam essa visão ainda enfrenta obstáculos significativos.
Estudos
de políticas públicas demonstram que há uma enorme dificuldade para
implementação de políticas que rompam dinâmicas e práticas estabelecidas e
profundamente enraizadas. Mudanças incrementais são mais frequentes e fáceis de
acontecer do que mudanças grandes ou revolucionárias. Isso porque as políticas
públicas e suas instituições desenvolvem mecanismos de resistência à mudança,
criando verdadeiras barreiras institucionais que dificultam a implementação de
novos modelos ou abordagens. Os atores envolvidos – sejam eles gestores
públicos ou grupos de interesse – tendem a defender o status quo,
pois já conhecem as regras e dinâmicas existentes, temem que transformações
possam ameaçar posições ou interesses estabelecidos, ou ainda têm dificuldade
de compreender a importância das mudanças propostas.
Todavia,
cada vez mais os governos lidam com os chamados problemas “complexos” ou
“perversos” (wicked problems). Estes envolvem múltiplas dimensões
interligadas e não apresentam soluções fáceis, pois envolvem interesses
conflitantes. O termo, cunhado em 1973 por Horst Rittel e Melvin Webber no
contexto do planejamento urbano, vem sendo cada vez mais mobilizado pelos
estudos de políticas públicas, dada a natureza complexa de problemas como
mudanças climáticas, pandemias, integração de imigrantes ou insegurança
alimentar. Para solucioná-los, vem ganhando espaço uma discussão sobre
“pequenas vitórias” (small wins),
que reforça a ideia de mudanças incrementais. Reconhece-se que mudanças
incrementais e constantes são essenciais para o avanço em políticas públicas, e
deve ser um caminho para a ampliação da intersetorialidade nas políticas e para
avançarmos no sentido de Uma Só Saúde.
Podemos
citar aqui a urgência de um maior diálogo entre as áreas de saúde e meio
ambiente para o enfrentamento dos efeitos das mudanças climáticas. Estas afetam
a saúde da população, impactando sobretudo a população mais carente, que está
mais exposta aos riscos decorrentes de eventos climáticos extremos, como ondas
de calor, inundações e secas. O Plano Setorial da Saúde para Mitigação e
Adaptação à Mudança do Clima (PSMC), por exemplo, busca integrar ações de
mitigação e adaptação no Sistema Único de Saúde (SUS) e é parte da Política
Nacional sobre Mudança do Clima. Avançar em estratégias como esta,
intersetoriais, é essencial. No entanto, é preciso também garantir que tais
planos saiam do papel, tornando-se ações concretas.
Da
mesma maneira, precisamos ampliar a geração de conhecimentos
interdisciplinares. Historicamente, a divisão das áreas científicas tem
dificultado a realização de pesquisas integradas, resultando em um número
reduzido de recomendações e documentos aplicáveis que possam guiar ações
concretas (como recomendações ou policy briefs).
A mesma
inércia verificada na política acontece no campo da ciência, que também precisa
passar por uma transformação radical em suas práticas para produzir novos
conhecimentos para o enfrentamento dos desafios de Uma Só Saúde. Pesquisadores,
assim como gestores públicos, tendem a perpetuar práticas e paradigmas
estabelecidos, dificultando a interdisciplinaridade e a adoção de abordagens
inovadoras. Ao mesmo tempo, os sistemas de avaliação favorecem a continuidade e
a especialização em detrimento da ruptura paradigmática.
Enfim,
apesar do amplo reconhecimento, pelas comunidades científicas e pelos governos,
da importância de um olhar integrado para as questões de saúde humana, animal e
Ambiental; o avanço desse diálogo interdisciplinar tem sido lento. Para que a
ideia de “uma só saúde” se transforme em ação efetiva, no Brasil e no mundo, há
ainda um longo caminho a ser percorrido. É essencial, nesse processo, favorecer
práticas cooperativas, superando barreiras disciplinares ou institucionais,
permitindo assim a criação de soluções mais integradas e consistentes para
enfrentamento dos problemas complexos que já afetam as sociedades e o planeta.
Fonte:
Por Vanessa Elias de Oliveira, Vânia Mattaraia e Rui Curi, no Le Monde
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