sábado, 5 de abril de 2025

Ciência e políticas públicas para o desenvolvimento de Uma Só Saúde

No campo das políticas públicas há um amplo debate sobre a dificuldade de se promover mudanças, especialmente naquelas mais consolidadas. Esse debate reconhece que processos de mudanças em políticas públicas são complexos, confusos e imprevistos, envolvendo distintos atores e interesses. O mesmo pode ser dito sobre mudanças nos diferentes campos científicos. Práticas estabelecidas nas distintas áreas do conhecimento, processos de avaliação da produção científica, estruturas institucionais departamentalizadas e divisão disciplinar de recursos para financiamento à pesquisa são processos que possuem lógicas próprias e muito consolidadas, tornando as mudanças lentas e incrementais.

Essa dificuldade de mudanças para a integração de conhecimentos também se verifica na abordagem de Uma Só Saúde, que reconhece a interconexão entre a saúde humana, animal e ambiental, mas enfrenta dificuldades para ser colocada em prática. No âmbito científico, a fragmentação do conhecimento em disciplinas especializadas torna complexo o diálogo entre as três áreas. Por sua vez, no campo das políticas públicas, a falta de coordenação entre setores governamentais dificulta a formulação e implementação de estratégias integradoras, capazes de enfrentar problemas complexos, como as pandemias ou as mudanças climáticas.

Para discutirmos como podemos avançar no desenvolvimento de uma ciência e de políticas públicas integradoras, precisamos compreender a evolução do conceito de One Health para, a partir disso, pensarmos em como superar a disciplinaridade ou a setorialidade. Este é o caminho seguido neste texto.

  • O surgimento da abordagem “uma só saúde”

Apesar de a ideia de ‘uma só saúde’ ter se difundido mundialmente a partir dos anos 2000, sua gênese e prática iniciam-se com figuras históricas específicas, cujas obras podem ser vistas como fundadoras do estudo das relações entre saúde e meio ambiente. O tratado sobre o ar, as águas e os lugares (‘Aere, Aquis et Locis’), um argumento baseado na observação atenta das características locais, parte da premissa de que a doença é um produto de locais específicos, de autoria de Hipócrates, talvez seja a primeira manifestação sobre a interdependência entre saúde e meio ambiente. Os escritos prolíficos deste médico grego tornaram-se fundamentais para as eras posteriores. A seguir, podemos citar a grande contribuição de Aristóteles, que introduziu o conceito de medicina comparativa por meio de seu estudo das características comuns entre diferentes espécies, incluindo seres humanos e outros mamíferos. A abordagem integrada e unificadora, considerando a interconexão entre a saúde humana e a saúde ambiental, foi se tornando cada vez mais evidente.

No século XIX, a preponderância da preocupação com os miasmas na análise da salubridade de uma localidade começou a ser colocada em xeque pelas estatísticas da primeira geração de sanitaristas franceses, entre eles Louis René Villermé e Alexandre Parent du-Châtelet, que mais tarde foram responsáveis pela criação da primeira especialidade veterinária de higiene pública na França. A origem do termo zoonose é atribuída ao alemão Rudolf Virchow, em 1855, ao tratar das “Infectionen durch contagiöse Thiergifte (Zoonosen)” – infecções por toxinas animais contagiosas (zoonoses) –, como também é dele o seguinte pensamento: “Entre medicamentos animais e humanos não há linhas divisórias – nem deveria haver. O objeto é diferente, mas a experiência obtida constitui a base de toda medicina”. Podemos concluir que, nesse período, os cientistas já percebiam as relações e semelhanças dos processos saúde-doença entre seres humanos, animais e ambiente, mesmo que frequentemente tratados de forma individualizada.

Já no século XX, Calvin Schwabe, no seu livro, Veterinary Medicine and Human Health, publicado em 1976, propõe a terminologia One Medicine, evidenciando a necessidade de ação conjunta e integrativa entre a medicina humana e a veterinária para curar, prevenir e controlar doenças que afetam humanos e animais.

Outros conceitos foram surgindo ao longo dos anos, todos com uma visão da saúde múltipla e global. Nesse contexto podemos acrescentar mais dois conceitos importantes: EcoHealth e Planetary Health. O primeiro compreende uma proposta para a saúde humana, dos animais e dos ecossistemas, sob bases de sustentabilidade ambiental e estabilidade socioeconômica, prevendo a integração da saúde, do bem-estar humano e animal em ecossistemas saudáveis. Planetary Health é um conceito proposto pela Rockefeller Foundation – Lancet Commission para abordar a saúde planetária como uma alternativa à One Health e à EcoHealth, porém com foco mais direcionado à saúde humana, embora também considere o meio ambiente.

O termo One Health começou a ganhar reconhecimento global no início dos anos 2000, impulsionado por desafios sanitários emergentes e a preocupação com surtos de doenças zoonóticas crescentes, como a encefalopatia espongiforme bovina (doença da vaca louca) e a gripe aviária, que evidenciaram a necessidade de abordagens interdisciplinares. Cerca de 75% das doenças emergentes em humanos têm origem animal e podemos exemplificar com a Aids, o Ebola e a Covid-19. Outro fato preocupante, e relacionado, é o uso excessivo de antibióticos na medicina e na agropecuária, favorecendo o surgimento de superbactérias. Podemos ainda acrescentar à lista de preocupações as mudanças climáticas, que alteram a dinâmica de transmissão de doenças, impactando ecossistemas e vetores como mosquitos. Finalizando a lista, acrescentamos o crescimento populacional e a urbanização, já que, com o aumento populacional e a ocupação de espaços antes ocupados apenas por animais, a expansão humana amplia o contato com animais silvestres e ambientes naturais, elevando o risco de novas doenças.

Em 2004, a Wildlife Conservation Society sediou uma conferência de especialistas internacionais em múltiplas disciplinas, com o objetivo de discutir e responder aos movimentos relatados e potenciais de doenças entre populações humanas, animais domésticos e vida selvagem. Esta resultou na publicação dos “Princípios de Manhattan”, que foram seguidos por movimentos internacionais. Em 2008, um acordo tripartite foi firmado para abordar a interface animal, humana e ecossistemíca, reunindo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância e da Coordenação do Sistema de Influenza das Nações Unidas. Em junho de 2012, o Banco Mundial publicou uma avaliação dos benefícios econômicos da Uma Só Saúde. Na última década, vários encontros, simpósios, publicações, programas universitários, medidas de gestão de saúde e projetos de pesquisa internacionais, serviram para criar uma comunidade de prática em constante expansão. Esta comunidade vem promovendo de forma crescente o uso do termo, dos princípios e das doutrinas capturados pela One Health. Assim, podemos considerar o enfoque de Uma Só Saúde (ou Saúde Única) um sucesso político que vêm buscando, sobretudo nos últimos 20 anos, estabelecer uma relação estreita entre ambiente, saúde humana e animal no plano internacional.

  • A importância da abordagem “uma só saúde global” para enfrentamento de novas pandemias

Um Memorandum of Understanding (MoU) – memorando de entendimento – assinado em março de 2022 fortaleceu a cooperação, equilibrou e otimizou de forma sustentável a saúde de humanos, animais, plantas e do meio ambiente, determinando, assim, uma nova era de colaboração para uma ‘Uma Só Saúde’ Global. O grupo, anteriormente denominado Tripartite, incorporou o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), passando a se chamar Quadripartite, e essa aliança recém-expandida elaborou o Plano de Ação Conjunto em ‘Uma Só Saúde’ (em inglês, a sigla é OH JPA). Nesse plano, são descritas iniciativas importantes, tais como reduzir os riscos de epidemias e pandemias zoonóticas emergentes ou ressurgidas, demonstrando a clara preocupação mundial com novas pandemias. É preciso lembrar que, nos primeiros 23 anos do século XXI, já vivenciamos pelo menos oito grandes surtos virais, incluindo o Nilo Ocidental, a SARS-CoV, a H1N1, o MERS-CoV, o Zika, o Ebola, a SARS-CoV-2 e a Mpox. Destes, três eram novos vírus e dois resultaram em pandemias. Neste cenário, os vírus se destacam como ameaças potenciais.

Não podemos esquecer que a chamada “peste negra” foi uma das pandemias mais devastadoras registadas na história humana, causada pela bactéria Yersinia pestis. Quando ocorreu a pandemia de influenza de 1918, não havia vacinas, medicamentos antivirais ou oxigênio suplementar. A única terapia específica era o soro convalescente, cuja análise retrospectiva sugeriu redução da mortalidade em aproximadamente 20%. A pandemia de HIV envolveu um retrovírus não conhecido anteriormente pela área médica. No início da década de 1980, avanços na biologia molecular permitiram a identificação do vírus três anos após a detecção dos primeiros casos, e a terapia antiviral estava disponível mais tarde, de modo que a doença resultante, a síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), passou de uniformemente letal para uma doença controlável, se tratada adequadamente.

Analisando a história verificamos que toda pandemia causa danos incalculáveis não só aos afetados, mas à população geral. Porém, não podemos ignorar que também há um grande aprendizado seguido por progressos científicos. Durante e após a pandemia da COVID-19, várias ações internacionais foram desenvolvidas, dentre elas o estabelecimento do Órgão Intergovernamental de Negociação, para elaborar e negociar acordos sobre prevenção, preparação e resposta a pandemias.

  • Promovendo mudanças no sentido de uma abordagem integradora

A história do conceito de Uma Só Saúde destaca a crescente compreensão da interconexão entre saúde humana, animal e ambiental. Embora essa abordagem integrada seja bastante reconhecida, a implementação de políticas públicas que reflitam essa visão ainda enfrenta obstáculos significativos.

Estudos de políticas públicas demonstram que há uma enorme dificuldade para implementação de políticas que rompam dinâmicas e práticas estabelecidas e profundamente enraizadas. Mudanças incrementais são mais frequentes e fáceis de acontecer do que mudanças grandes ou revolucionárias. Isso porque as políticas públicas e suas instituições desenvolvem mecanismos de resistência à mudança, criando verdadeiras barreiras institucionais que dificultam a implementação de novos modelos ou abordagens. Os atores envolvidos – sejam eles gestores públicos ou grupos de interesse – tendem a defender o status quo, pois já conhecem as regras e dinâmicas existentes, temem que transformações possam ameaçar posições ou interesses estabelecidos, ou ainda têm dificuldade de compreender a importância das mudanças propostas.

Todavia, cada vez mais os governos lidam com os chamados problemas “complexos” ou “perversos” (wicked problems). Estes envolvem múltiplas dimensões interligadas e não apresentam soluções fáceis, pois envolvem interesses conflitantes. O termo, cunhado em 1973 por Horst Rittel e Melvin Webber no contexto do planejamento urbano, vem sendo cada vez mais mobilizado pelos estudos de políticas públicas, dada a natureza complexa de problemas como mudanças climáticas, pandemias, integração de imigrantes ou insegurança alimentar. Para solucioná-los, vem ganhando espaço uma discussão sobre “pequenas vitórias” (small wins), que reforça a ideia de mudanças incrementais. Reconhece-se que mudanças incrementais e constantes são essenciais para o avanço em políticas públicas, e deve ser um caminho para a ampliação da intersetorialidade nas políticas e para avançarmos no sentido de Uma Só Saúde.

Podemos citar aqui a urgência de um maior diálogo entre as áreas de saúde e meio ambiente para o enfrentamento dos efeitos das mudanças climáticas. Estas afetam a saúde da população, impactando sobretudo a população mais carente, que está mais exposta aos riscos decorrentes de eventos climáticos extremos, como ondas de calor, inundações e secas. O Plano Setorial da Saúde para Mitigação e Adaptação à Mudança do Clima (PSMC), por exemplo, busca integrar ações de mitigação e adaptação no Sistema Único de Saúde (SUS) e é parte da Política Nacional sobre Mudança do Clima. Avançar em estratégias como esta, intersetoriais, é essencial. No entanto, é preciso também garantir que tais planos saiam do papel, tornando-se ações concretas.

Da mesma maneira, precisamos ampliar a geração de conhecimentos interdisciplinares. Historicamente, a divisão das áreas científicas tem dificultado a realização de pesquisas integradas, resultando em um número reduzido de recomendações e documentos aplicáveis que possam guiar ações concretas (como recomendações ou policy briefs).

A mesma inércia verificada na política acontece no campo da ciência, que também precisa passar por uma transformação radical em suas práticas para produzir novos conhecimentos para o enfrentamento dos desafios de Uma Só Saúde. Pesquisadores, assim como gestores públicos, tendem a perpetuar práticas e paradigmas estabelecidos, dificultando a interdisciplinaridade e a adoção de abordagens inovadoras. Ao mesmo tempo, os sistemas de avaliação favorecem a continuidade e a especialização em detrimento da ruptura paradigmática.

Enfim, apesar do amplo reconhecimento, pelas comunidades científicas e pelos governos, da importância de um olhar integrado para as questões de saúde humana, animal e Ambiental; o avanço desse diálogo interdisciplinar tem sido lento. Para que a ideia de “uma só saúde” se transforme em ação efetiva, no Brasil e no mundo, há ainda um longo caminho a ser percorrido. É essencial, nesse processo, favorecer práticas cooperativas, superando barreiras disciplinares ou institucionais, permitindo assim a criação de soluções mais integradas e consistentes para enfrentamento dos problemas complexos que já afetam as sociedades e o planeta.

 

Fonte: Por Vanessa Elias de Oliveira, Vânia Mattaraia e Rui Curi, no Le Monde

 

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