Terrorismo de Estado - O Golpe de 1976 e a
Guerra Suja na Argentina
em 24 de março de 1976, a presidente
argentina Isabelita Perón era derrubada por um golpe militar. A quartelada
inaugurou o chamado “Processo de Reorganização Nacional” — a ditadura mais
sangrenta da história da Argentina.
O regime militar argentino foi responsável
por uma série de atrocidades, incluindo o aprofundamento da “Guerra Suja” — a
política de repressão sistemática à esquerda e aos opositores da ditadura,
responsável por prender, torturar e assassinar milhares de pessoas.
Perpetrada com apoio dos Estados Unidos e das
demais ditaduras sul-americanas, a “Guerra Suja” evoluiu para um processo
genocida. Estima-se que até 30.000 pessoas foram assassinadas pelo governo
argentino ao longo de sete anos. Após a redemocratização, vários oficiais
argentinos foram julgados e condenados por crimes contra a humanidade.
- O
fenômeno do peronismo
Poucas figuras tiveram uma influência tão
expressiva e duradoura na trajetória política de uma nação quanto Juan Domingo
Perón. Alçado aos holofotes pela “Revolução de 1943”, o líder argentino
angariou enorme apoio da classe trabalhadora ao encampar uma agenda de
ampliação dos salários, dos benefícios sociais e dos direitos trabalhistas.
Eleito presidente em 1946 e reeleito em 1951,
Perón buscou promover a doutrina justicialista — movimento que aliava dirigismo
econômico, justiça social e soberania política, descrito por Perón como uma
“terceira via” entre o capitalismo e o socialismo.
Embora contemplasse alianças com amplos
setores da burguesia argentina, o peronismo sofreu crescente oposição das
forças conservadoras — em especial os militares e a Igreja Católica. Em 1955,
Perón foi derrubado por um golpe militar e forçado a se exilar na Espanha por
18 anos.
Os militares cassaram o registro do Partido
Justicialista, mas o peronismo se manteve como a mais poderosa força política
da Argentina nas décadas seguintes. A disputa pelo legado peronista fez com que
o movimento influenciasse organizações de todos os espectros políticos, da
extrema-esquerda à extrema-direita.
A crise política argentina se acentuou no
início dos anos 70, com a eclosão de conflitos armados envolvendo os movimentos
revolucionários de esquerda e os grupos paramilitares de direita. Com o país à
beira da convulsão social, os militares chegaram à conclusão de que somente o
retorno de Perón poderia acalmar as massas.
Perón retornou à Argentina em 1973, após
ajudar a viabilizar a eleição de Héctor Cámpora. Seu retorno deveria ser
celebrado por um grande evento nos arredores do Aeroporto de Ezeiza. Durante a
confraternização, entretanto, paramilitares da direita peronista abriram fogo
contra os peronistas de esquerda, matando 13 pessoas e deixando centenas de
feridos.
Em uma clara indicação de que pretendia se
perfilar com os setores conservadores, Perón responsabilizou a esquerda pela
matança. O Massacre de Ezeiza dividiu o movimento peronista, marcando o
rompimento entre Perón e a esquerda radical.
- A
terceira Presidência de Perón
Em setembro de 1973, atendendo ao pedido de
Perón, Cámpora renunciou à Presidência, abrindo caminho para novas eleições.
Perón lançou-se como candidato pelo Partido Justicialista. Sua esposa,
Isabelita Perón, integrava a chapa como candidata a vice.
A chapa Perón-Perón foi eleita com mais de
60% dos votos. O terceiro mandato de Perón foi marcado por uma tentativa de
retomar o dirigismo dos anos 40. Perón nacionalizou bancos e indústrias,
regulou o setor agrícola, tributou as terras improdutivas e impôs fortes
restrições ao capital estrangeiro. Também acenou para a classe operária,
instituindo novos direitos trabalhistas e fomentando a criação de cooperativas.
A cisão com a esquerda, entretanto, se
aprofundaria. Perón apoiou iniciativas de criminalização dos Montoneros e
outros grupos da esquerda revolucionária, o que levou à renúncia de ministros e
parlamentares de seu partido. O presidente argentino também não fez quaisquer
tentativas de restaurar os mandatos dos governadores da esquerda peronista
entre 1973 e 1974.
Foi ainda sob a gestão de Perón que o governo
argentino passou a financiar as atividades da Aliança Anticomunista Argentina
(Triplo A) — organização paramilitar de extrema-direita que seria responsável
por cometer atentados terroristas e assassinar centenas de sindicalistas,
militantes e líderes políticos de esquerda.
O governo de Juan Domingo Perón seria curto. Sofrendo de uma doença
circulatória, o líder argentino faleceu em julho de 1974, vitimado por uma
parada cardíaca. Ele foi sucedido no cargo pela vice-presidente Isabelita
Perón, sua terceira esposa.
- Isabelita
Perón
Isabelita Perón foi a primeira mulher do
continente americano a se tornar chefe de governo. Sua Presidência transcorreu
em um cenário bastante difícil, marcado por uma grave crise econômica,
instabilidade política e aumento da violência.
Sem experiência política, Isabelita se apoiou
sobretudo nos conselhos de seu Ministro do Bem-Estar Social, José López Rega.
Líder da Aliança Anticomunista Argentina, Rega se tornaria uma espécie de
“primeiro-ministro informal”, conduzindo efetivamente os rumos do governo e
fomentando sua militarização.
López Rega incitou a ação da Aliança
Anticomunista Argentina, estimulando ainda mais a violência política. Ele
também implementou uma série de medidas centralizadoras e autoritárias,
reforçando o controle sobre a imprensa, intervindo nas universidades e organizações
da sociedade civil.
Na área econômica, a Argentina sentia
fortemente os efeitos da crise do petróleo, enfrentando uma inflação galopante
e o aumento do desemprego. Em junho de 1975, Celestino Rodrigo, o Ministro da
Economia, implementou um pacote de medidas que visava “corrigir
desequilíbrios”. Entre as medidas estavam a desvalorização da moeda, o aumento
de 100% nas tarifas dos serviços públicos e o reajuste de 180% no preço do
combustível.
O resultado foi desastroso. O pacote
impulsionou a inflação, ao mesmo tempo em que causou enorme descontentamento
popular. Sindicatos e organizações do movimento trabalhista romperam com o
governo convocaram protestos e paralisações. Pela primeira vez na história, um
governo peronista foi confrontado por uma greve geral. A reação foi tão
vigorosa que Isabelita viu-se forçada a retirar López Rega de seu governo.
A gestão de Isabelita Perón também foi
responsável por lançar a “Operação Independência”, uma ofensiva das Forças
Armadas argentinas que visava aniquilar o Exército Revolucionário do Povo — uma
guerrilha guevarista que operava na província de Tucumán. A operação
estabeleceu uma violenta política de repressão à esquerda argentina, com uso
abundante de detenções arbitrárias, torturas e execuções extrajudiciais,
tornando-se o marco inicial da “Guerra Suja”.
Em setembro de 1975, Isabelita se licenciou
temporariamente da Presidência por motivos médicos, entregando a chefia do
governo a Ítalo Luder, presidente do Senado. Luder seria responsável por
ampliar a tutela militar sobre o governo civil, dividindo o país em regiões
militarizadas e entregando o comando do Conselho de Defesa Nacional e das
forças de segurança das províncias para as Forças Armadas.
- O
golpe de 1976
Isabelita retornou ao governo em outubro de
1975, mas enfrentava uma pressão cada vez maior para renunciar. A despeito das
inúmeras concessões feitas aos setores reacionários, a presidente argentina era
acusada de ser inepta e de operar a “sovietização” do país. Empresários,
latifundiários e líderes religiosos se uniram aos oficiais que exigiam a
instalação de um regime militar no país.
A conspiração golpista recebeu forte respaldo
do governo dos Estados Unidos. Henry Kissinger, então Secretário de Estado da
Casa Branca, encontrou-se em inúmeras ocasiões com os oficiais argentinos e
ofereceu apoio para viabilizar a mudança de regime.
A primeira tentativa de golpe ocorreu em
dezembro de 1975, sob a liderança do brigadeiro Orlando Cappellini. O golpe foi
frustrado graças à resistência do Héctor Fautario, o comandante da aeronáutica
que permaneceu leal a Isabelita. Fautario, entretanto, seria removido do cargo
numa tentativa de acalmar os generais.
Em 24 de março de 1976, Isabelita Perón foi
deposta por um golpe liderado pelos três comandantes das Forças Armadas. A
quartelada foi justificada como necessária para pacificar o país, combater a
“corrupção”, a “demagogia” e a “subversão” e inserir a Argentina no “mundo
ocidental e cristão”. A presidente seria posta sob prisão domiciliar e
posteriormente processada por desvio de verbas do erário.
Uma junta militar formada pelo general Jorge
Rafael Videla, pelo almirante Emilio Massera e pelo brigadeiro Orlando Agosti
assumiu o governo argentino. Os golpistas batizaram seu regime como “Processo
de Reorganização Nacional”. O Congresso foi dissolvido, a Constituição foi
suspensa e os partidos políticos foram banidos. O regime instituiu uma rígida
censura da imprensa, interveio nos sindicatos e criminalizou os movimentos de
oposição.
Vários empresários e organizações que
apoiaram o golpe foram beneficiados com o controle de pastas na nova gestão. O
Ministério da Economia, por exemplo, foi entregue a José Alfredo Martínez de
Hoz, presidente do Conselho Empresarial Argentino. Já o Banco Central passou à
gestão de Adolfo Diz, diretor-executivo do FMI e representante da Associação de
Bancos Privados.
- A
Guerra Suja
O regime instituído após o golpe de 1976
converteu-se na ditadura mais sangrenta da história da Argentina. Os militares
instituíram uma política de terrorismo de Estado, cometendo o extermínio de
opositores em larga escala. A “Guerra Suja”, a princípio limitada a aniquilar
os movimentos da esquerda radical em Tucumán, tornou-se generalizada.
A política de repressão da ditadura argentina
esteve intimamente vinculada ao Plano Condor — uma operação clandestina de
cooperação entre as ditaduras militares da América do Sul, visando o extermínio
de opositores. O Plano Condor foi elaborado, financiado e coordenado pelo
governo dos Estados Unidos, como parte de sua “doutrina de segurança nacional”,
que visava eliminar os movimentos populares e os partidos de esquerda durante a
Guerra Fria.
O regime argentino instalou centros
clandestinos de operação por todo o país, onde os presos políticos eram
submetidos a espancamentos, torturas, abusos sexuais e execuções sumárias.
Entre os métodos frequentemente utilizados pelo regime estavam os “voos da
morte”, em que prisioneiros eram drogados e atirados ao mar a partir de aviões
militares.
O assassinato de opositores foi tão
generalizado que se converteu em um processo genocida. Estima-se que 30.000
pessoas foram assassinadas pelos militares argentinos durante a “Guerra suja”.
A maioria das vítimas eram estudantes, sindicalistas, militantes de esquerda,
professores e ativistas de movimentos sociais.
A ditadura argentina também cometeu sequestro
sistemático de bebês. Mulheres grávidas presas pelo regime eram forçadas a dar
à luz em cativeiro. Após o parto, as mães eram assassinadas e os bebês eram
entregues para serem criados por famílias vinculadas ao regime. Esse episódio
motivou a luta das Avós da Praça de Maio, movimento que busca localizar e
identificar as crianças que foram sequestradas.
- Outras
medidas da ditadura
O modelo econômico adotado pelo regime
argentino foi fortemente influenciado pelos preceitos liberais da Escola de
Chicago, centrando-se na desregulação dos mercados e nas políticas de livre
comércio. A ditadura privatizou diversas estatais e promoveu corte de gastos
com programas sociais. Também eliminou a política de controle de preços, o
regime de controle cambial e as tarifas de importação e exportação.
As medidas econômicas geraram
desindustrialização e o aumento expressivo da inflação e da dívida externa. O
poder de compra dos trabalhadores despencou para o nível mais baixo desde a
década de 1930. Os salários reais sofreram perdas de 40% em relação ao último
governo de Perón. A concentração de renda e a pobreza cresceram de forma
acelerada. A quantidade de argentinos vivendo abaixo da linha da miséria passou
de 4,6% em 1974 para 21% em 1982.
A ditadura argentina também promoveu enormes
retrocessos no sistema educacional do país. O modelo de “escola única” foi
abolido em favor de um sistema excludente e elitizado, que precarizou a
qualidade do ensino ofertado às classes populares. Esse processo atingiu
sobretudo as províncias mais pobres, que sofreram com o corte de recursos.
Na área cultural, a ditadura instituiu
políticas de censura prévia e de perseguição aos opositores. Foram cridas
amplas listas de artistas e intelectuais considerados “subversivos”. Os alvos
eram proibidos de exercer atividades na Argentina e suas obras eram banidas ou
tiradas de circulação. Os militares também promoveram a queima de livros,
destruindo mais de 1,5 milhão de volumes.
- O
fim do regime
O péssimo desempenho econômico da ditadura
militar e as medidas impopulares geraram o descontentamento generalizado da
população. Em uma tentativa de recuperar apoio popular, os militares decidiram
invadir as Ilhas Malvinas — território historicamente reivindicado pela
Argentina, mas sob domínio do Reino Unido desde o século XIX.
A derrota da Argentina na Guerra das Malvinas
tornou a situação dos militares insustentável. Sob crescente pressão interna e
externa, os oficiais se viram forçados a convocar novas eleições. Em dezembro
de 1983, Raúl Alfonsín foi empossado como presidente, encerrando formalmente o
regime ditatorial.
Em 1985, a Argentina deu início ao julgamento
das Juntas Militares, que resultou na condenação de vários líderes do regime.
Entre os condenados estavam Jorge Rafael Videla e Emilio Massera, que receberam
penas de prisão perpétua. Também foram condenados à prisão o general Roberto
Viola (17 anos), o almirante Armando Lambruschini (8 anos) e o general Orlando
Agosti (4 anos e meio).
Cerca de 600 militares foram denunciados, mas
conseguiram escapar da punição graças à Lei do Ponto Final — instituída por
pressão do oficialato, que ameaçou concretizar um novo golpe de Estado. Os
militares argentinos pressionaram fortemente pela concessão de anistia. A
partir de 1990, o presidente Carlos Menem iniciou a concessão de indultos aos
golpistas condenados.
Em 2003, durante o governo de Néstor
Kirchner, a Lei do Ponto Final foi revogada, o que permitiu a retomada dos
julgamentos dos militares golpistas. Até hoje, a Argentina é o único país
latino-americano a ter instituído um processo permanente de responsabilização
dos militares golpistas da Guerra Fria.
Fonte: Por Estevam Silva, em Opera Mundi

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