Dores insuportáveis: A batalha judicial de
mulher que ficou 5 anos com compressa na barriga
Uma isquemia intestinal, uma massa de
gordura, tumor. Nos últimos cinco anos, diversos foram os diagnósticos que a
cabeleireira Tatiane Freitas dos Santos, de 42 anos, recebeu sobre um caroço
pulsando na barriga que fez com que ela sentisse dores agudas e não fosse a mãe
que gostaria de ser.
O mistério foi desvendado em 18 de março: era
uma compressa cirúrgica – uma espécie de gaze, só que maior, com cerca de 15
centímetros, do tamanho de um celular –, deixada em seu abdômen em janeiro de
2020, durante a cesárea do nascimento de seu filho, no Hospital da Luz, da rede
Amil, na Vila Mariana, Zona Sul de São Paulo.
Tatiane identificou o problema após passar
por mais de quatro médicos ao longo dos anos e, após a descoberta, teve
dificuldades para marcar a cirurgia de retirada, que só conseguiu realizar após
mover uma ação contra o plano de saúde.
➡️ Segundo o Código de Defesa do Consumidor, nestes casos
em que o paciente se queixa de um erro na prestação de serviço de saúde, a
responsabilidade é compartilhada entre todos os fornecedores: profissionais,
estabelecimento onde o procedimento foi realizado e o plano.
Procurada pelo g1, a Amil respondeu com a
seguinte nota, na íntegra: “O Hospital da Luz informa que solicitou perícia
médica à Justiça e que não houve, até o momento, decisão de mérito no processo
judicial que está em curso. O hospital reitera que está à disposição da Justiça
para os esclarecimentos necessários”.
• ‘Mãezinha,
é normal’
O Hospital da Luz havia sido recomendado pela
obstetra da cabeleireira como referência em maternidade, o que era essencial
para Tatiane devido à sua gravidez de risco, após três abortos anteriores.
Ainda no hospital após o nascimento do filho,
Tatiane sentia fortes dores na região do abdômen. "A todo momento eu
reclamava e as enfermeiras falavam: 'mãezinha, é normal, são os órgãos voltando
para o lugar'."
Após a alta, em casa, a cabeleireira não
conseguia suportar o peso do pequeno recém-nascido sobre a barriga. Então, para
amamentar, Tatiane punha um travesseiro entre ela e o bebê.
Depois do período de recuperação da cesárea,
Tatiane continuava sentindo dores. No entanto, era começo de 2020. Veio a
Covid-19, que lotou hospitais e afastou das unidades de saúde os tratamentos
que não eram de urgência.
"Naquele momento, quem era eu para
reclamar? Tanta gente morreu, né. A gente estava vivendo a época da pandemia,
então eu fui convivendo com isso."
Dois anos depois, quando a situação começou a
se normalizar, a cabeleireira iniciou sua saga em busca de um diagnóstico.
“Quando eu ficava deitada, eu sentia ele pulsando.”
• Cabeleireira
‘urrava de dor’ em exercício de ioga
Em 2022, um médico suspeitou de isquemia
intestinal, uma espécie de acidente vascular no intestino, mas descartou a
hipótese após um ultrassom. Com a incerteza, a angústia aumentava. "A todo
momento, Deus me livre, mas nessa hora eu achava que era um câncer, que era uma
coisa pior", relembra.
Em 2023, outro médico diagnosticou um lipoma,
um tumor benigno que surge pelo crescimento desordenado de células de gordura.
No entanto, ele desaconselhou a cirurgia para removê-lo, pois era muito
pequeno.
Em paralelo, um terceiro médico investigava a
possibilidade de fibromialgia, doença que causa dores crônicas nos músculos.
Até que, em agosto de 2024, ao tentar fazer
uma postura da ioga que concentra a pressão no abdômen, ela sentiu uma dor
aguda. “Eu urrava de dor, não aguentei de tanta dor. Falei, não é normal, está
acontecendo alguma coisa. Não é normal.”
Mais um médico, mais um pedido de socorro.
"Falei para o doutor, olha, já passei [no médico] em 2022, passei em 2023,
alguma coisa não está certa, e eu preciso investigar." O profissional
solicitou então um ultrassom, exame que ela já tinha realizado outras vezes.
• ‘Corpo
estranho’ e cápsula protetora
No entanto, somente após este ultrassom, de
setembro de 2024, uma médica afirmou que Tatiane tinha um “corpo estranho” no
organismo e questionou se a cabeleireira tinha passado por alguma cirurgia.
Tatiane só tinha realizado a cesárea em 2020.
A especialista explicou ainda que o corpo
dela criou uma cápsula protetora em volta do objeto, como defesa. Para tentar
identificar com mais detalhes o que era o corpo estranho, a médica solicitou
uma tomografia e a encaminhou para um cirurgião, que pediu uma ressonância.
Tatiane conta que marcou a ressonância no
Hospital da Luz – o mesmo onde tinha realizado o parto do filho. Após contar o
motivo do exame, ela percebeu uma movimentação de funcionários, que iam e
vinham, além de perguntas de quem era o médico que tinha realizado a cesárea.
No laudo da ressonância, houve uma mudança em
relação ao ultrassom: agora, apontavam um “possível corpo estranho”, sem
confirmar a presença do objeto.
Com o resultado dos exames, ela tentou marcar
consulta com um cirurgião, mas não havia disponibilidade de agenda, segundo
Tatiane e precisou entrar em contato com o Serviço de Atendimento ao Consumidor
(SAC) do hospital, que pediu um relato por e-mail.
Diante da lentidão para conseguir avançar na
tentativa de retirar o corpo estranho, Tatiane contratou um advogado, que
entrou com uma ação contra a Amil e o Hospital da Luz com os seguintes pedidos:
• Uma
tutela de urgência, solicitando uma intervenção médica urgente para a remoção
do objeto.
• Cobertura
de custos, para que a Amil cobrisse todos os custos relacionados ao tratamento,
incluindo consultas, exames e cirurgia.
• Indenização
por danos morais e materiais.
“O problema não é o erro, o problema é como o
erro é retratado. Eu não tive esse respaldo em nenhum momento. Eu escutava
coisas que só me deixavam cada vez mais revoltada, porque eu falava, ‘pô, eles
que erraram e eu que tenho que aguentar tudo isso?’."
Na ação, Tatiane pediu que a cirurgia fosse
realizada em outro hospital, o Santa Catarina, devido à quebra de confiança com
o local onde foi feita a cesárea.
➡️ A Justiça concedeu uma liminar autorizando a intervenção
médica para a retirada do material em 20 de dezembro de 2024. A cabeleireira
aguarda ainda a decisão sobre os pedidos por danos morais e materiais.
Na decisão, o Tribunal de Justiça afirma que
se observa "a presença da urgência diante do quadro de saúde retratado no
laudo médico” e que "a demora no início do tratamento pode dificultar, ou
comprometer, a qualidade de vida da autora".
Justiça concedeu uma liminar autorizando a
intervenção médica para a retirada do material esquecido na cesárea de Tatiane.
— Foto: Arquivo pessoal
No entanto, o que parecia ser a resolução do
problema tornou-se mais uma etapa de persistência da cabeleireira.
Tatiane conta que ligou diversas vezes para o
hospital e para o plano de saúde, registrou reclamação na Ouvidoria, mas, mesmo
com a liminar em mãos, ouvia que ainda não havia respostas do jurídico ou que
ela não tinha o pedido médico de cirurgia.
Ela registrou então uma reclamação na Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS) no dia 31 de janeiro. “Quando fiz essa
reclamação, não demorou dois dias para a Amil me mandar um WhatsApp”. A partir
daí, relata Tatiane, o desfecho do pesadelo começou finalmente a se desenrolar.
• De
quem é a culpa?
Primeiro, vale destacar que, há dois anos, o
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) eliminou a categoria “erro médico” do
sistema de classificação dos processos. Eles foram reclassificados como “danos
morais e/ou materiais decorrentes da prestação de serviços de saúde”.
“Quando se fala em erro médico, personifica e
individualiza a responsabilidade. Só que esses danos derivam de uma cadeia de
erros em toda a assistência”, explica Silvio Guidi, professor da Faculdade de
Medicina da USP e consultor jurídico da ONA (Organização Nacional de
Acreditação), entidade não governamental que certifica a qualidade de serviços
de saúde.
Nestes casos, o Código de Defesa do
Consumidor prevê o que chama de “responsabilidade solidária”. A
responsabilidade é dividida entre toda a cadeia de fornecedores: profissionais
de saúde, estabelecimento de saúde onde o procedimento foi realizado e o plano
de saúde.
Dados do CNJ mostram ainda que, desde 2020, o
número de novos processos por danos morais e/ou materiais decorrentes da
prestação de serviços de saúde vem aumentando ano a ano. Em 2020, foram 29,2
mil. Em 2024, 75,3 mil, um aumento de 157%.
Para Guidi, o aumento da judicialização é
decorrente de uma série de fatores, como a ampliação do acesso aos serviços de
saúde (público e privado) e o aumento do acesso à Justiça.
• 'Não
fui a mãe que gostaria de ter sido'
Em 18 de março de 2025, mais de três meses
após a liminar que autorizava a cirurgia e mais de cinco anos depois de sua
cesárea, Tatiane retirou a compressa cirúrgica esquecida no nascimento de seu
filho.
Os anos de incerteza e dores fizeram com que
Tatiane não conseguisse ser a mãe que pretendia ser neste período.
“Se eu disser que tive uma maternidade onde
pude dar o meu melhor para ele, não é verdade, porque, com dores, às vezes
impaciente, preocupada, pensando, o que será esse caroço?”
Agora, o processo de recuperação também afeta
outro sonho, o do segundo filho, já que, por recomendação médica, ela terá que
esperar ao menos um ano para avaliar a possibilidade de uma nova gravidez.
Fonte: g1
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