Cursos de medicina se tornaram um negócio no
Brasil?
A
crítica de que a medicina se tornou um "negócio" é antiga, mas a
grande expansão de cursos da área no Brasil nos últimos anos tem gerado
preocupação entre especialistas e reguladores, que temem que a qualidade
do ensino possa ser
comprometida.
Desde
1990, a quantidade de faculdades de medicina no país
quintuplicou, grande parte dessa ampliação ocorre no setor privado. Atualmente,
há 390 faculdades de medicina no Brasil. Hoje, mais de 80% do ensino na área é
privado, com vagas nos cursos avaliadas em milhões diante das altas
mensalidades.
Em
2013, buscando ampliar a proporção de profissionais de saúde na população, o
governo federal lançou o Mais Médicos, que tinha como um
dos componentes incentivos para a abertura de vagas em instituições de ensino
de medicina. O programa estimulou ainda mais o setor.
A forte
concorrência para o ingresso nas faculdades públicas fez com que a demanda por
vagas nas faculdades privadas fosse significativa. Atualmente, 175 mil
estudantes estão matriculados em cursos particulares, que movimentam cerca de
R$ 26,4 bilhões por ano, o equivalente a 40% do mercado de ensino superior.
Em
relatório a clientes, os analistas do BTG Pactual Samuel Alves, Yan Cesquim e
Marcel Zambello apontam que, historicamente, cada vaga aberta nestes cursos
esteve avaliada entre R$ 2 e 3 milhões para o mercado, com a média das
mensalidades cobradas dos alunos em R$ 10 mil.
- Gigantes do
setor
As
somas abriram espaço para o surgimento e a expansão de gigantes do setor como
Ânima, YDUQS e Afya. A última, criada no Tocantins em 1997, abriu capital na
bolsa nova-iorquina Nasdaq em 2019, e, desde então, fez aportes bilionários.
Nos três anos seguintes, a companhia, hoje controlada pelo grupo alemão
Bertelsmann, investiu R$ 3,2 bilhões na compra de dez faculdades de medicina,
se consolidando como a maior do Brasil no ramo.
Enquanto
outras áreas sofreram nos últimos anos com uma queda na demanda por cursos
superiores, a medicina se manteve com forte procura. Na visão de Bruno Luciano
de Oliveira, pesquisador da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e autor de
uma série de estudos no tema, o status conferido pelo curso, um mercado de
trabalho menos competitivo e a maior possibilidade de escolher seus rendimentos
após a formação, ajudam a explicar o apelo.
- Restrição e
judicialização do ensino
Em
2018, o Ministério da Educação (MEC) suspendeu a publicação de novos editais
para criação de cursos de medicina durante cinco anos e o pedido de aumento de
vagas em cursos já existentes, argumentando que as metas para expansão já
haviam sido atingidas. Além disso, o governo afirmou que a iniciativa visava
garantir a qualidade do ensino.
Desde
então, parte importante das decisões sobre a operação das faculdades passou ao
âmbito judicial. Sem a autorização do Ministério, muitas instituições
recorreram a tribunais para oferecer seus cursos, com liminares permitindo a
atuação em uma série de casos.
Em
2024, o MEC chegou a notificar seis universidades pela oferta de cursos sem
autorização, com as faculdades realizando vestibulares com base em decisões
judiciais provisórias. No ano passado, 6,3 mil vagas foram criadas no país,
sendo 3,5 mil por meio de liminares.
Mario
Roberto Dal Poz, professor no Instituto de Medicina Social da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), crítica a instância judicial como forma de
determinar quais instituições podem operar. "Quando o tema chega à
justiça, muitas vezes se acaba permitindo a abertura", aponta, sem que
necessariamente os melhores critérios para a qualidade do ensino sejam
observados.
Procurado,
o Conselho Federal de Medicina (CFM) não se manifestou sobre o tema. Já a
Associação Nacional das Universidades Particulares (ANUP) preferiu não se
pronunciar devido ao fato de o julgamento da questão ainda estar em aberto.
- Busca por
melhores critérios
A
expansão na rede privada no setor foi uma realidade nos últimos anos ao redor
do mundo, ainda que em ritmo reduzido, apontam especialistas. A cobrança no
caso brasileiro é por maior verificação na qualidade, afirma Oliveira.
"Não é uma política contra o mercado, e sim por uma boa definição de
critérios. Inclusive, há boas experiências na iniciativa privada no país",
pontua.
A forma
pela qual a operação nas faculdades é aprovada no país é fonte de grandes
críticas no setor. "Falta transparência no caso do Brasil. Muitas vezes
nos processos não se sabe muito sobre as tomadas de decisões", afirma Dal
Poz.
Na
última semana, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep) informou que pretende mudar a forma como os cursos da área da
saúde serão avaliados in loco. As primeiras propostas já foram finalizadas e
incluem visitação de universidades por avaliadores para analisar as práticas de
formação dos estudantes.
Atualmente,
parte relevante da avaliação nos cursos é baseada no Exame Nacional de
Desempenho de Estudantes (Enade), feito após o final da graduação.
Especialistas avaliam que o ideal seria um acompanhamento por etapas, o que
facilitaria eventuais correções durante o ensino.
Uma
proposta frequente é a de que os formados no curso tenham que prestar uma
espécie de exame de ordem para exercer a profissão, assim como ocorre no caso
do direito com a prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Por sua vez, Dal
Poz vê a possibilidade como "muito limitante" para os que não
conseguirem a aprovação.
- Excesso de
oferta?
O
suposto excesso de oferta é uma questão que tem causado preocupação entre
potenciais alunos e investidores do setor nos últimos anos.
Entre
os futuros estudantes, a possibilidade de fazer um alto investimento, que com
frequência ultrapassa os R$ 500 mil, e ter dificuldades de conseguir uma
remuneração compatível vem fazendo muitos ponderarem. Em sites sobre o tema e
no Youtube, há uma série de conteúdos respondendo se "ainda vale a pena
fazer medicina".
Oliveira
lembra que, muitas das vezes, os estudantes terminam o curso com dívidas
consideráveis, algo que levanta ainda mais preocupação em um cenário de altas
taxas de juros. Ele lembra que é possível que a "grande expansão na mão de
obra interfira nas remunerações", algo que aconteceu em outros cursos
superiores nos últimos anos.
No
relatório do BTG Pactual, produzido no final de 2024, o tema já aparecia como
uma potencial razão para investidores não se sentirem otimistas com o setor.
Segundo a publicação, as vagas poderiam cair a uma valorização entre R$ 1 e 2
milhões, justamente com um possível aumento da oferta. No conteúdo, os autores
citam as faculdades que estavam cobrando mensalidades de R$ 7 mil, uma queda em
relação aos períodos anteriores, o que acende o alerta para a continuidade da
expansão do negócio.
Fonte:
DW Brasil
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