O retorno do mercantilismo na América de
Donald Trump
A eleição de Donald Trump em 2016 marcou uma
inflexão na trajetória econômica e política dos Estados Unidos e do sistema
internacional. Sua proposta de “America First” reacendeu práticas e discursos
que muitos acreditavam superados. Ao resgatar o protecionismo como eixo central
de sua política econômica, a competição interestatal e uma lógica de soma zero,
Trump reeditou, sob novos contornos, um velho conhecido das teorias econômicas:
o mercantilismo. Em pleno século XXI, a maior economia do planeta reviveu um
modelo que se acreditava sepultado com o advento do capitalismo industrial e do
livre-comércio.
Este artigo propõe uma análise crítica e
heterodoxa da política econômica trumpista e suas relações com o mercantilismo,
entendendo que o fenômeno não se limita a uma simples regressão ideológica. Ao
contrário, o trumpismo econômico revela contradições profundas do capitalismo
contemporâneo e do sistema financeiro globalizado. Ele expõe as falhas do
neoliberalismo, mas oferece respostas que, sob o pretexto de proteger o
trabalhador americano, reforçam dinâmicas de exploração, exclusão e
desigualdade.
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O mercantilismo
reimaginado: comércio como competição e conflito
A historiografia tradicional, fundada na
crítica de Adam Smith, retrata o mercantilismo como uma doutrina obsoleta,
restrita a uma visão fixa da riqueza e a práticas de exploração comercial. No
entanto, como ressaltam Stern e Wennerlind (2013), o conceito de mercantilismo
precisa ser reavaliado, pois, mais do que uma teoria econômica, tratava-se de
uma prática de governança que integrava comércio, guerra e política como
dimensões indissociáveis de um mesmo projeto de poder.
John Shovlin (2013) argumenta que, no
contexto do mercantilismo clássico, o comércio internacional era visto não como
um instrumento de cooperação, mas como um campo de batalha. A competição entre
Estados pela primazia econômica estava diretamente relacionada à guerra e à
diplomacia. O comércio exterior era um mecanismo para acumular recursos e
financiar capacidades militares. Em sua análise, Shovlin propõe que a paz e o
comércio eram concebidos pelos contemporâneos não como esferas opostas, mas
como extensões das rivalidades geopolíticas.
Esta visão lança luz sobre o comportamento de
Donald Trump no cenário econômico internacional. Ao adotar uma retórica e uma
prática que trata as relações comerciais como conflitos a serem vencidos, Trump
revigorou a lógica da competição estatal, característica do mercantilismo, mas
aplicada a um mundo globalizado, interdependente e financeirizado.
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O retorno do Estado
intervencionista?
A primeira constatação que se impõe é o papel
proeminente do Estado nas ações econômicas de Trump. Apesar de discursar contra
o “big government”, sua administração intensificou o uso de tarifas
alfandegárias, subsídios seletivos e medidas coercitivas no comércio
internacional. Em 2018, impôs tarifas de 25% sobre o aço e 10% sobre o alumínio
importado, argumentando que a segurança nacional estava em risco. A guerra
comercial com a China, que resultou em centenas de bilhões de dólares em
tarifas, tornou-se o símbolo máximo desse neomercantilismo.
Ao priorizar a balança comercial como
indicador de sucesso, Trump resgatou um princípio central do mercantilismo
clássico: a ideia de que o enriquecimento nacional depende do acúmulo de
superávits comerciais. Heckscher (1935), em sua clássica obra Mercantilism,
lembra que essa doutrina via o comércio como um jogo de soma zero, onde o ganho
de um país era a perda de outro. Trump parece compartilhar dessa visão, ao
retratar a relação comercial com a China como uma “exploração” dos EUA e ao
exigir renegociações bilaterais como o USMCA (novo NAFTA), visando maior
“vantagem” para o lado americano.
Trata-se, novamente, de uma reedição do
unilateralismo mercantilista, no qual os Estados buscavam vantagens individuais
em detrimento de acordos de benefício mútuo. As guerras comerciais travadas
pela administração Trump não foram simples disputas econômicas; eram
compreendidas como batalhas estratégicas para restaurar a grandeza americana no
sistema internacional.
No entanto, a heterodoxia crítica deve
ressaltar que este retorno ao Estado intervencionista não visa um
desenvolvimento inclusivo ou sustentável, mas sim a defesa dos interesses de
segmentos específicos do capital industrial e financeiro. Não houve uma política
de reindustrialização robusta ou de fomento à inovação tecnológica com inclusão
social. O foco foi proteger setores tradicionais em declínio (como o aço e o
carvão), sem apresentar um projeto econômico de longo prazo.
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Mercantilismo,
nacionalismo econômico e a criação do “outro”
O mercantilismo sempre esteve associado à
construção do Estado-nação moderno. Ao adotar uma postura econômica
nacionalista, Trump reforçou a identidade americana como uma fortaleza sitiada
pelo “outro”: sejam os imigrantes, sejam os produtos chineses ou o petróleo do
Oriente Médio. A política de imigração restritiva, aliada ao protecionismo
comercial, compõe um discurso de autossuficiência que remete à lógica
autárquica dos Estados mercantilistas europeus dos séculos XVI e XVII.
Contudo, como Ellen Wood (2003) destaca em O
Espírito do Capitalismo, o mercantilismo não era apenas uma política econômica,
mas um projeto de dominação que misturava guerra, conquista colonial e
exploração. Trump, ao aumentar os orçamentos militares, ao pressionar aliados
da OTAN por maior contribuição financeira e ao instrumentalizar sanções
econômicas contra adversários (Irã, Venezuela, Rússia), reforçou essa
combinação de economia e força militar, atualizando a lógica mercantilista para
a era do império global.
Wood também observa que o mercantilismo
clássico foi crucial na formação do Estado-nação moderno, coordenando
interesses econômicos e políticos em projetos de longo prazo. Trump, no
entanto, instrumentalizou o protecionismo como ferramenta de discurso populista,
sem articular políticas industriais estruturais ou investimentos em inovação
que pudessem garantir a revitalização da economia americana.
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Neomercantilismo ou
capitalismo de Estado populista?
A doutrina econômica de Trump não se encaixa
perfeitamente nas categorias clássicas do mercantilismo. Sua versão é moldada
pelas contradições do capitalismo financeiro atual. Barry Eichengreen (2017)
descreve a política comercial de Trump como um “neomercantilismo improvisado”,
carente de uma estratégia coesa. Embora proteja determinados setores, não rompe
com a lógica especulativa do capital financeiro que domina a economia americana
desde os anos 1980.
A redução dos impostos corporativos (de 35%
para 21%) e a desregulamentação financeira beneficiaram principalmente o 1%
mais rico da população americana. A promessa de “trazer empregos de volta” para
a classe trabalhadora não se concretizou de forma substancial. A guerra
comercial com a China aumentou os custos de importação para empresas e
consumidores americanos, prejudicando a renda real das famílias trabalhadoras e
pequenas empresas.
Joseph Stiglitz (2018), crítico ferrenho das
políticas trumpistas, aponta que elas não enfrentaram o problema central do
capitalismo americano: a financeirização extrema e a captura do Estado pelos
interesses do grande capital. Ao priorizar a balança comercial em detrimento da
qualidade dos empregos e da distribuição de renda, o trumpismo produziu um
capitalismo de Estado populista, que usa medidas protecionistas como espetáculo
político, mas não altera as engrenagens fundamentais da desigualdade.
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O Limite Heterodoxo do
Modelo Trump
Do ponto de vista heterodoxo, a política
econômica de Trump falha em reconhecer que o protecionismo, por si só, não é
uma panaceia. O Estado pode e deve atuar como indutor do desenvolvimento, mas
isso exige políticas industriais consistentes, regulação financeira robusta e
compromisso com a redução das desigualdades. A simples imposição de tarifas ou
o fechamento de fronteiras não garantem crescimento econômico sustentável.
Como Fernando Novais (1979) observa em O
Capitalismo Comercial, o mercantilismo colonial português ilustra bem os
limites de um sistema que privilegia a acumulação primitiva sem construir bases
sólidas de desenvolvimento interno. A versão contemporânea do mercantilismo
trumpista repete esse erro: busca ganhos de curto prazo para setores
específicos, sem fomentar uma transformação estrutural que permita à economia
americana superar a crise de produtividade e inclusão social que a afeta há
décadas.
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Considerações finais: o
legado do neomercantilismo trumpista
O legado da política econômica de Donald
Trump é ambíguo. Se, por um lado, expôs as fragilidades e contradições da
globalização neoliberal, por outro, ofereceu respostas que reforçam o
autoritarismo, o nacionalismo xenófobo e a exclusão. Sua versão do mercantilismo
é, no fundo, uma tentativa de restaurar a hegemonia americana a partir de uma
lógica de confronto, em vez de cooperação.
Do ponto de vista heterodoxo, o desafio é
propor alternativas que resgatem a centralidade do Estado no planejamento
econômico, mas de forma democrática, inclusiva e sustentável. O protecionismo
vazio e o nacionalismo econômico exacerbado são atalhos perigosos que podem
agravar ainda mais as crises globais de desigualdade, clima e governança.
Trump não foi um visionário econômico, mas
sim um sintoma das crises estruturais do capitalismo global. Sua política
econômica reeditou a lógica mercantilista sem oferecer as soluções de longo
prazo que o próprio mercantilismo clássico buscava, ao menos teoricamente,
através do fortalecimento do Estado e da organização econômica nacional.
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Rachaduras no Velho
Mundo, vozes do Sul - nova ordem econômica surgirá no caos global? Por
Washington Araújo
Em 2 de abril de 2025, Donald Trump anunciou
tarifas de 10% a 47% sobre importações de 37 países, com alíquotas específicas:
34% para a China, 46% para o Vietnã, 24% para o Japão e 20% para a União
Europeia. A medida, justificada como "restauração da grandeza industrial
americana", entrou em vigor em 3 de abril.
Horas depois, a China retaliou com 34% sobre
US$ 144 bilhões em produtos dos EUA, incluindo aviões Boeing e soja. "É
uma resposta proporcional ao bullying econômico", declarou Lin Jian,
porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, em entrevista coletiva.
O impacto foi imediato.
O S&P 500 caiu 4,8% em um dia, apagando
US$ 2,4 trilhões em valor de mercado — o pior desempenho desde março de 2020. O
Nasdaq, índice de tecnologia, despencou 5,2%, com a Apple perdendo US$ 280
bilhões em valorização após alertas sobre o aumento do preço do iPhone para US$
1.450.
"Estamos diante de uma tempestade
perfeita: custos disparam, e os consumidores pagarão a conta", resumiu
Jamie Dimon, CEO do JPMorgan Chase, em comunicado aos acionistas. Depois o
próprio Dimon escreveria em suas redes sociais que “existem 65% de chances de
os Estados Unidos entrarem em recessão longa”.
- Retaliações
em cadeia: do Vietnã à Europa
A escalada não se limitou à China. O Vietnã,
taxado em 46% — a alíquota mais alta —, viu sua moeda, o dong, desvalorizar 3%
em 24 horas. "Essa é uma punição injusta a uma economia que emprega 2
milhões na indústria têxtil", protestou Pham Minh Chinh, primeiro-ministro
vietnamita, em discurso transmitido nacionalmente.
Na Europa, a UE reagiu com planos de impor
20% sobre US$ 200 bilhões em importações dos EUA, incluindo whisky bourbon e
motores Harley-Davidson. "É um ataque à ordem multilateral que construímos
desde 1945", criticou Ursula von der Leyen, presidente da Comissão
Europeia, durante sessão no Parlamento Europeu.
O Japão, por sua vez, ameaçou restringir
exportações de semicondutores essenciais para a indústria de defesa americana.
"Não seremos espectadores passivos", afirmou Fumio Kishida,
primeiro-ministro japonês, em conferência em Tóquio.
- BRICS:
protagonismo em tempos de mudança
Enquanto o Ocidente se fragmenta, os BRICS
(Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) capitalizam o vácuo. A China,
por exemplo, já redirecionou US$ 500 bilhões em exportações para o Sudeste
Asiático, segundo o China Customs Statistics.
Já a Índia atraiu US$ 30 bilhões em
investimentos de empresas como a Tesla, que transferiu parte da produção de
baterias para Hyderabad. "O protecionismo americano é nossa
oportunidade", declarou Nirmala Sitharaman, ministra das Finanças indiana,
em fórum empresarial.
O Brasil, sob presidência do bloco em 2025,
projeta ganhar US$ 80 bilhões com exportações de soja e carne bovina para a
China, substituindo fornecedores americanos. "Estamos reescrevendo as
regras do comércio global", disse Fernando Haddad, ministro da Fazenda,
durante a Cúpula dos BRICS em Brasília.
A Rússia, por sua vez, ampliou vendas de
petróleo para a China em US$ 250 bilhões, segundo a Agência Internacional de
Energia (IEA).
- O
preço humano: quando números têm rosto
As tarifas não são apenas estatísticas. Nos
EUA, 8 milhões de empregos estão em risco, segundo o Economic Policy Institute.
No Texas, a família Johnson, dona de uma pequena fazenda de soja, viu seu lucro
anual evaporar. "Vendemos 60% da colheita para a China. Agora, o grão
apodrece nos silos", desabafou Mary Johnson, em entrevista ao Washington
Post.
No Vietnã, 1,2 milhão de trabalhadores
têxteis enfrentam demissões em massa. Nguyen Thi Anh, costureira em Hanói,
contou à AFP: "trabalho 14 horas por dia há uma década. Agora, nem isso me
salvará".
Na África Subsaariana, o preço do trigo subiu
30%, ameaçando 50 milhões de pessoas com insegurança alimentar, segundo o
Programa Mundial de Alimentos (PMA).
- O
fantasma de 1930 volta a assombrar
As tarifas de Trump ecoam o Smoot-Hawley Act
de 1930, que ampliou a Grande Depressão ao reduzir o comércio global em 66%.
Hoje, o Peterson Institute estima perdas de
US$ 1,2 trilhão no comércio até 2025, e a OMC prevê queda de 2,5% no volume de
mercadorias. "Estamos repetindo os erros que juramos evitar",
lamentou Ngozi Okonjo-Iweala, diretora-geral da OMC, em discurso em Genebra.
Até líderes republicanos expressam
preocupação. Mitt Romney, senador por Utah, declarou ao Fox News: "Tarifas
são um imposto sobre os pobres. Trump está sacrificando o futuro por um
slogan".
Nos EUA, a inflação já pressiona preços de
carros usados (+22%) e aluguel (+15%), segundo o Bureau of Labor Statistics.
- A
encruzilhada da humanidade
Trump promete 'grandeza', mas entrega caos.
Enquanto o Nasdaq despenca e CEOs alertam para recessão, famílias no Iowa
enterram safras não vendidas, mães no Vietnã vendem sangue para comprar arroz,
e crianças no Níger morrem de fome em silêncio.
Os BRICS oferecem uma alternativa, mas não
são santos. Se o bloco ignorar os excluídos — os 3 bilhões sem saneamento, os
828 milhões com fome —, será apenas mais um capítulo na saga da insensatez com
altas doses de ganância.
A pergunta não é se venceremos esta guerra,
mas se haverá humanidade suficiente para reconstruir depois dela. Como escreveu
o poeta brasileiro Thiago de Mello: 'os estatísticos dirão que tudo está
perdido. Mas os loucos saberão que tudo está por fazer'. Saberão mesmo?
A conferir nas próximas semanas.
Fonte: Por Taís Alfredo, no Observatório da
Imprensa/Brasil 247

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