quarta-feira, 9 de abril de 2025

O plano de rearmamento da Europa

Gianni Alioti, ex-sindicalista da FIM-CISL no setor industrial de armas e sistemas de armamentos – agora ativista do TheWeaponWatch – responde às nossas perguntas sobre o “plano de rearmamento” da Europa, do qual deriva a tão discutida votação em Estrasburgo no último 12 de março.

<><> Eis a entrevista.

·        Caro Gianni, o que exatamente prevê o plano ReArm Europe aprovado pelo Parlamento Europeu?

Na verdade, o Parlamento Europeu não pôde – e não poderá – aprovar o plano ReArm Europe. Ursula von der Leyen recorreu ao art. 122 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Dessa forma, o plano foi apresentado diretamente ao Conselho Europeu – formado pelos governos dos 27 Estados-membros – excluindo o Parlamento do processo decisório. Em Estrasburgo, votou-se apenas a favor ou contra uma resolução de apoio ou de oposição ao Livro Branco sobre a Defesa Europeia, que contém o plano ReArm Europe, rebatizado, de forma um tanto hipócrita, como Readiness 30, ou seja, Preparados para 2030.

O plano ReArm Europe prevê, portanto, um gasto adicional ao atual de mais de 800 bilhões de euros, estruturado em torno de três eixos:

  1. Desbloqueio do uso de financiamentos públicos, até um total de 650 bilhões de euros em nível da UE, para investimentos em defesa a nível nacional. O objetivo é permitir que os Estados aumentem seus gastos militares entre 2025 e 2028, fora das restrições do Pacto de Estabilidade e Crescimento da UE.
  2. Um novo instrumento específico chamado SAFE: a Comissão Europeia levantará até 150 bilhões de euros nos mercados de capitais, a serem concedidos como empréstimos aos Estados-membros para aumentar os investimentos na indústria europeia de defesa, incluindo a ucraniana, por meio de contratos públicos comuns. Os empréstimos serão garantidos pelo orçamento comum da UE.
  3. Aumento do financiamento do Banco Europeu de Investimentos (BEI) para as indústrias de produção militar, até agora excluídas por razões éticas, e mobilização de capitais privados – sobretudo poupança das famílias e fundos de pensão – por meio da criação da União da Poupança e dos Investimentos. O objetivo é colocar em circulação mais de 10 trilhões de euros depositados em contas bancárias, transformando-os em capital de risco e investimentos em apoio à indústria europeia e ao rearmamento.

·        Quais são os próximos passos – europeus e nacionais – para a implementação do plano?

O plano ReArm Europe foi formalmente aprovado na reunião do Conselho Europeu de 20 e 21 de março de 2025, em Bruxelas.

Para colocá-lo em prática, os Estados-membros deverão apresentar até abril seus pedidos e ativar a cláusula de salvaguarda nacional para utilizar os financiamentos públicos destinados a investimentos em defesa, fora do pacto de estabilidade da UE. No início de abril, haverá uma reunião informal dos Ministérios da Defesa dos 27 Estados-membros. As solicitações serão coordenadas pelo Conselho Europeu e avaliadas pela Comissão Europeia, sendo então reapresentadas ao Conselho, com recomendações, na reunião prevista para os dias 26 e 27 de junho de 2025, após a cúpula da OTAN em Haia, de 24 a 26 de junho de 2025.

Com relação aos eixos 2 e 3 do plano ReArm Europe, o regulamento para a criação do SAFE já foi aprovado e as barreiras aos financiamentos do BEI para a indústria de defesa foram, de fato, superadas.

·        É correto falar em rearmamento, como se estivéssemos desarmados?

Poderia responder com uma piada. Se a Europa e a Itália não estivessem suficientemente armadas, não se entenderia por que as indústrias europeias de defesa continuam exportando 70% de suas produções, em vez de abastecerem nossas Forças Armadas. Se os armamentos não servem para defesa, então servem para guerras. E as indústrias europeias, inclusive a italiana Leonardo, contribuem exportando seus sistemas de armas para alimentar a "terceira guerra mundial em pedaços", como diz o Papa Francisco, e para sustentar regimes militares e autocracias que não respeitam os direitos humanos fundamentais.

Tampouco são claros os critérios utilizados: não é correto falar de “rearmamento” nos países da UE, quando os dados oficiais do Conselho Europeu demonstram que os países da UE e da OTAN já vêm se rearmando continuamente desde 2014 – nem mesmo durante os dois anos de pandemia (2020-2021) isso parou.

Ainda ecoam as palavras do Papa: “É uma vergonha o aumento dos gastos com armas.” Os gastos militares nesse período mais do que dobraram (+121%) e os específicos com armamentos quadruplicaram (+325%). Nada de desarmamento!

Diante desses dados, seria mais honesto falar de escalada armamentista: uma nova e mais ampla fase de rearmamento para estarmos “preparados” para uma guerra, evidentemente contra a Rússia.

·        De quais armas ou sistemas de armas – europeus – estamos falando?

Não me parece que estejamos caminhando para uma Defesa Comum Europeia. Como foi dito, serão os próprios Estados-membros da UE que decidirão o nível de gasto militar e, sobretudo, o tipo e o número dos novos sistemas de armas a adquirir.

A única ação gerida em nível da UE será a dos empréstimos para apoiar contratos públicos comuns de defesa. Nesse caso, além das ações de apoio à Ucrânia, fala-se de áreas consideradas críticas: munições e mísseis, sistemas de artilharia, espaço, inteligência artificial e ciberdefesa.

No plano estritamente militar – já que tudo gira em torno da suposta ameaça russa – não se deveria ignorar o controle e o monitoramento dos principais armamentos convencionais disponíveis.

O International Institute for Strategic Studies – instituto anglo-saxão de prestígio mundial em segurança global, risco político e conflitos militares, com sedes em Londres, Washington, Berlim e Singapura – publica anualmente o relatório The Military Balance.

O mais recente, publicado no início de 2025, demonstra a superioridade dos países europeus da OTAN, mesmo sem os EUA, em relação à Rússia e Belarus, em todos os principais sistemas de armamento analisados: tanques, veículos blindados, artilharia pesada, aviões de combate, helicópteros de ataque.

Não é, portanto, sério descrever os países europeus da OTAN como desarmados e em inferioridade frente à Rússia para justificar a transferência de grandes recursos públicos do bem-estar social para a economia de guerra, e para convencer os cidadãos da UE a financiar com suas poupanças o rearmamento, especialmente quando quem nos dá lições constantes sobre “fazer mais pela defesa da Europa” é alguém como o atual secretário-geral da OTAN, Mark Rutte: nos Países Baixos – paraíso fiscal e societário onde todas as multinacionais abrem sede, e onde Rutte foi primeiro-ministro de outubro de 2010 a julho de 2024 – o número de tanques para defender a Europa é ZERO!

·        Essas armas seriam produzidas/compradas na Itália, na Europa ou onde? Quem vai lucrar com isso?

Falando dos armamentos comprados pelos Estados, além da retórica do “produzido na Europa”, não haverá nenhuma obrigação nesse sentido.

Por exemplo – com exceção de Portugal, que decidiu não comprar mais os F-35, e da Alemanha, que manifestou intenção de romper o contrato com os EUA para aquisição de 35 caças F-35 – não parece haver outros arrependimentos. Ao contrário, o Parlamento italiano será chamado em breve a decidir sobre a compra de mais 25 F-35, além dos 90 já contratados, por 7 bilhões de euros.

O SIPRI – Instituto Internacional de Pesquisas para a Paz, com sede em Estocolmo – calculou recentemente que, nos últimos cinco anos (2020-2024), 64% dos gastos com novos sistemas de armas pelos países europeus da OTAN foram para as indústrias americanas, em comparação com 52% no período anterior (2015-2019).

O certo é que lucrarão tanto as empresas americanas quanto as europeias, cada vez mais entrelaçadas via gigantes financeiros dos EUA como Capital Group, BlackRock, Vanguard, Goldman Sachs, Fidelity, Wellington Management, Invesco, etc., principais acionistas das maiores empresas de armamentos dos EUA, mas também da alemã Rheinmetall, da britânica BAE Systems, da italiana Leonardo, da trans-europeia Airbus, da ucraniana Ukrainian Defense Industry e outras.

A indústria europeia de defesa, com subsídios crescentes e contratos bilionários garantidos pelos Estados – como os 23 bilhões de euros para Leonardo e Rheinmetall por 1.000 veículos blindados e 280 tanques para o Exército Italiano –, com os preços dos sistemas de armas subindo infinitamente (veja o caso do F-35) e altos lucros, está hoje mais próspera do que nunca.

Os mercados financeiros estão apostando no rearmamento e na guerra. Basta observar a valorização das ações na bolsa entre fevereiro de 2022 e março de 2025: +790% para a britânica Rolls Royce, +695% para a alemã Rheinmetall, +496% para a italiana Leonardo, +413% para a norueguesa Kongsberg, +150% para a italiana Iveco.

·        Imagino que um plano sensato entre países europeus pressupõe ao menos algum tipo de coordenação. O que se observa?

A lógica indicaria isso. Mas, na UE, a coordenação no plano do rearmamento diz respeito unicamente à indústria europeia de defesa, por meio do Conselho e do Comissário Europeu para a Defesa e o Espaço. Essa função é atualmente ocupada pelo lituano Andrius Kubilius.

As políticas de defesa e o comando das Forças Armadas continuam sendo prerrogativas dos Estados-membros da UE sob o guarda-chuva da OTAN, pelo menos para os 23 países da UE que pertencem à Aliança Atlântica. No horizonte, não há sinal de nenhuma decisão institucional que aponte para uma Defesa Comum Europeia ou mesmo um coordenamento sério.

¨      MODO DE GUERRA SE TORNA REALIDADE NA EUROPA

invasão russa da Ucrânia em 2022 mudou o curso da União Europeia, um clube nascido das sementes de uma aliança econômica e para curar feridas do pós-guerra, mas que tem sido o maior experimento de paz em um continente até então acostumado a conflitos armados periódicos. Após quase 80 anos de paz, os europeus estavam despertando de seu sono e percebendo que a ameaça estava à porta e que a expansão contínua dos aliados na Rússia não passaria mais sem ser desafiada por Vladimir Putin. Os líderes da UE então mudaram para uma retórica bélica que é compreendida nos países do leste, mas é mais difícil de aceitar no flanco sul.

A União Europeia vem superando tabus desde que Putin lançou uma ofensiva em larga escala contra a Ucrânia, principalmente alocando fundos dos contribuintes europeus para compras de armas. Primeiro era material defensivo para enviar àquele país, para que pudesse repelir ataques. A guerra não terminou em tempo recorde, como se pensava inicialmente, e vendo que Kiev era capaz de resistir, as telas continuaram a ser ultrapassadas. O financiamento para Volodymyr Zelensky se multiplicou por bilhões, e até mesmo foi dada autorização para o uso de armas para atacar alvos em solo russo, o que foi inicialmente percebido como uma escalada do conflito que poderia se agravar globalmente.

Mas o "modo de guerra" se tornou uma realidade em paralelo ao retorno de Donald Trump à Casa Branca. As questões que têm sido as forças motrizes do clube comunitário até agora, como direitos, liberdades e o estado de direito, quase não são mais discutidas. Agora falamos sobre mísseis, drones, artilharia, munição, caças e tanques.

A mensagem que permeia praticamente tudo é que a ameaça de Putin representa um risco ao projeto europeu tal como foi concebido. Informações de inteligência de alguns países, incluindo a Alemanha, apontam para a possibilidade de a Rússia atacar um membro da OTAN antes do final desta década.

E assim, imitando o que aconteceu no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, a Comissão Europeia, com os aplausos dos países nórdicos e do Leste Europeu, apelou à necessidade de rearmamento na Europa. A economia de guerra à qual os líderes europeus, especialmente Josep Borrell e o ex-delegado do Mercado Interno Therry Breton — agora fora do governo da UE — vêm se referindo há dois anos agora toma forma: medidas e planos concretos. Um deles é o "plano de rearmamento" apresentado por Ursula Von der Leyen, que permitiria aos países europeus aumentar seus gastos militares em 800 bilhões de euros graças ao relaxamento das regras de disciplina fiscal e empréstimos vantajosos.

Outro é o Livro Branco sobre a Defesa Europeia: o roteiro através do qual a UE pretende desenvolver sua indústria de defesa, que, apesar dos investimentos multibilionários que implica, tem sido negligenciado pelo executivo da UE durante décadas. A intenção é aumentar a coordenação militar dentro do clube da UE — um relatório recente do Tribunal de Contas Europeu alertou que a rápida mobilização de exércitos não poderia ser garantida, mesmo devido à falta de regras de trânsito harmonizadas no que diz respeito à permissão da mobilidade de tanques — mas, acima de tudo, aumentar as capacidades, ou seja, ter mais armas e equipamentos.

O ponto de partida tem amplo apoio nos 27, mas muitos países, principalmente no Leste, acreditam que ele é insuficiente e que mais precisa ser feito, especialmente em termos de financiamento. As próximas batalhas ocorrerão nas negociações do próximo orçamento europeu para o período 2028-2034 e tendo em vista a possibilidade de a UE adotar os chamados Eurobonds não reembolsáveis, ou seja, ajudas diretas e transferências para defesa.

A desconexão de Trump da segurança europeia precipitou eventos. Os Estados Unidos, que têm sido o guarda-chuva da segurança europeia por décadas, com todas as desvantagens que isso acarreta, já alertaram seus parceiros europeus de que se concentrarão no Indo-Pacífico devido à ameaça representada pela China na região. Apesar dessa ameaça, a Comissão Europeia sustenta que a OTAN "continua sendo a pedra angular da defesa coletiva de seus membros na Europa", de acordo com o Livro Branco da Defesa.

No entanto, vários países europeus levaram o desafio a sério e estão preparando um plano de cinco a dez anos para substituir os EUA na OTAN. O objetivo, de acordo com o Financial Times, é desenvolver um plano para transferir o fardo financeiro e militar para as capitais europeias e apresentá-lo a Washington antes da cúpula anual dos líderes da OTAN em junho. Entre os países que participam das negociações informais estão o Reino Unido, a França, a Alemanha e os países nórdicos.

A pressão sobre a UE vem da própria organização militar, que quer que o Canadá e os membros europeus aumentem seus estoques de armas e equipamentos em 30% nos próximos anos, de acordo com a Bloomberg. E uma das exigências de Trump é exceder a meta atual de 2% do PIB em gastos com defesa. A aposta dele é que chegue a 5%. Esse limite é praticamente inatingível para a maioria dos aliados, mas o que está claro é que a meta será aumentada na próxima cúpula da OTAN, pelo menos para 3%.

Esta reunião, que será realizada em Haia no final de junho, será difícil para países como Espanha, Bélgica e Itália, que estão longe da meta inicial de 2%. Sánchez foi forçado a propor uma aceleração dos aumentos dos gastos com defesa, apesar das complicações que isso cria dentro de sua própria coalizão de governo.

A principal luta liderada por Sánchez e outros países do sul, como Itália e Eslovênia, é garantir que os gastos com defesa sejam considerados em um sentido amplo, incluindo itens de segurança como proteção de fronteiras, combate ao terrorismo e até mesmo preparação para emergências decorrentes das mudanças climáticas. "As ameaças que o sul da Europa enfrenta são um pouco diferentes daquelas que o leste da Europa enfrenta", reiterou Sánchez em Bruxelas.

E, embora Sánchez e a líder de extrema direita italiana Giorgia Meloni tenham reclamado da narrativa belicista, e a Comissão Europeia tenha reconhecido que há diferentes "sensibilidades" que os levarão a mudar sua comunicação falando sobre "Preparação 2030", a verdade é que o "modo de guerra" não é mais apenas retórica.

 

Fonte: Entrevista com Gianni Alioti, no Settimana News/El Diário

 

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