Quem ainda está aqui?
O premiado filme Ainda estou aqui –
dirigido por Walter Salles Jr., com o protagonismo de Fernanda Torres e de
Selton Mello – é uma adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva que
recupera a luta de sua mãe, Eunice Paiva, e familiares pelo reconhecimento e
responsabilização sobre a prisão, assassinato e desaparecimento de seu pai pela
ditadura empresarial militar[i] (1964-1985): o deputado Rubens Paiva.
Mas quem foi Rubens Paiva? Segundo o Dossiê
dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964: “Participou de todos os
grandes momentos da vida nacional. Quando universitário, foi Vice-Presidente da
União Estadual de Estudantes e depois Engenheiro e Deputado Federal [1962],
sendo eleito Presidente da Comissão de Transportes, Comunicação e Obras da
Câmara Federal. Foi vice-líder do PTB na Câmara. Foi vice-presidente da CPI do
IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), além de suas atividades jornalísticas.
Ativo deputado federal, defensor das bandeiras nacionalistas desde a luta pela
criação da Petrobrás, Rubens Paiva foi cassado pelo Ato Institucional n° 1 em
1964, em decorrência de sua participação na Comissão Parlamentar de Inquérito
do IBAD, que apurou o recebimento, pelos generais comprometidos com o golpe
militar, de dólares provenientes dos Estados Unidos, em 1963. No dia 20 de
janeiro de 1971, depois de receber um telefonema de uma pessoa que queria lhe
entregar correspondência do Chile, sua casa em Ipanema foi invadida, vasculhada
e ele levado, em seu próprio carro, para o Quartel da 3ª Zona Aérea e depois
para o DOI-CODI/RJ [Destacamento de Operações de Informações – Centro de
Operações de Defesa Interna]. Sua casa ficou ocupada e, no dia seguinte, Eunice
Paiva, sua mulher, e Eliane, sua filha de apenas 15 anos, foram também levadas
ao DOI-CODI/RJ, onde ficaram sem conseguir avistar-se com ele, apesar da
confirmação dos agentes do DOI de que ele se encontrava lá. Interrogadas várias
vezes, sua filha foi libertada 24 horas depois e sua esposa somente 12 dias
após. A acusação que pesava sobre Rubens Paiva era a de manter correspondência
com brasileiros exilados no Chile. O Exército, para justificar o
desaparecimento de Rubens, divulgou nota à imprensa informando que ele teria
sido resgatado por seus companheiros “terroristas” ao ser transportado pelos
agentes do DOI/CODI, em 28 de janeiro de 1971”. (Dossiê, 1995, p. 296).
Neste artigo, o objetivo é recuperar a
atuação de outras “Eunices” no enfrentamento à ditadura, ampliando a
compreensão de como os mecanismos de violência política da ditadura atingiram e
continuam alcançando os segmentos populares, sobretudo negros, negras e não
brancos.
Logo, é imperativo recuperar como outras
famílias e outras “Eunices” vivenciaram e resistiram ao terror da ditadura.
A trajetória da família de Virgílio Gomes da
Silva é uma delas. Virgílio comandou a captura do embaixador dos Estados
Unidos, uma ação política ocorrida entre os dias 4 e 7 de setembro de 1969,
organizada por um comando revolucionário da ALN juntamente com integrantes da
Dissidência Comunista da Guanabara (DI-GB), uma cisão do PCB. O embaixador foi
trocado por 15 prisioneiros políticos de várias organizações de resistência à
ditadura, que foi obrigada a publicar um manifesto elaborado pelos autores da ação
– em cadeia de rádio, TV e jornais impressos – que denunciava os crimes
cometidos pelo regime.
Virgilio Gomes da Silva utilizava o nome de
guerra “Jonas”. Foi preso no dia 29 de setembro de 1969 e levado ao DOI-CODI da
rua Tutóia, um dos principais órgãos da repressão daquele período. Resistiu
bravamente à prisão, mas não suportou às torturas e espancamentos que lhe foram
covardemente infringidos pelos agentes da Operação Bandeirantes (OBAN). É o
primeiro desaparecido político pela ditadura.
Hilda Gomes da Silva e três dos seus quatro
filhos – Wlademir, Virgílio e Isabel – foram detidos um dia após o assassinato
de “Jonas”. Separados da mãe, as crianças se mantiveram unidas; a caçula Isabel
tinha 4 meses de vida. Posteriormente, foram devolvidos à família. Quatro meses
depois de presa, Hilda Gomes da Silva foi libertada e rumou com a família para
o exílio, primeiro no Chile e depois em Cuba.
Retornaram ao Brasil em meados da década de
1990. Wlademir, o filho mais velho, dá o tom das marcas desse passado. Virgílio
tinha o costume de assobiar quando estava chegando em casa, e seu filho mais
velho escutou esse assobio ainda por muito tempo, já em Cuba, e chegou a ficar
certo período com problemas de nervos (Lima e Silva Júnior, 2009).[ii] Hilda Gomes da Silva foi fundamental na condução da
família em sua reconstrução no exílio e no retorno ao país. Eles estão aqui
lutando pela memória de Virgílio Gomes da Silva.
Em 2006, foi lançado o filme Zuzu
Angel sob a direção do cineasta Sérgio Rezende. Retoma as trajetórias
de Zuleika Angel Jones, ou Zuzu Angel, e seu filho, Stuart Edgar Angel Jones.
Este era estudante de economia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
e integrava a equipe de remadores do Clube de Regatas do Flamengo (CRF).
Na militância política, integrou o Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Foi preso no dia 14 de maio de 1971, nas imediações
do bairro Grajaú com a Avenida 28 de setembro, na cidade do Rio de Janeiro e
levado para o CISA na base aérea do Galeão, da III Zona Aérea, que estava sob o
comando do brigadeiro João Paulo Burnier; sendo barbaramente torturado e
assassinado no dia 16 de maio de 1971, integrando a lista dos desaparecidos da
ditadura, tal como Rubens Paiva.
Segundo relatório da Comissão Nacional da
Verdade: “Supõe-se que as prisões de Stuart Angel e de outros integrantes do
MR-8 e da VPR [Vanguarda Popular Revolucionária] estivessem ligadas ao fato de
Carlos Lamarca,[iii] em abril de 1971, ter deixado a VPR e ingressado no
MR-8. No início de maio de 1971, o CISA já sabia que Carlos Lamarca tinha ido
para o MR-8 e queria capturá-lo de qualquer maneira (…). Relatos do próprio
[Alex] Polari e de Maria Cristina de Oliveira Ferreira dão conta de que Stuart
foi barbaramente torturado até a morte pelos agentes do CISA, para que
revelasse o paradeiro de Carlos Lamarca – o que não fez” (CNV, 2014, p. 571 e
572).
Após o assassinato do filho, a renomada
estilista utilizou seus desfiles como forma de denunciar e reivindicar justiça:
“As denúncias do desaparecimento de Stuart foram possíveis, ainda no
transcorrer da ditadura militar, em função da atuação de sua mãe, a estilista
Zuzu Angel. A busca incessante de Zuzu por seu filho levou o caso a ser
conhecido internacionalmente, o que gerou grande incômodo aos comandos
militares. Zuzu Angel, porém, jamais parou de denunciar o crime contra seu
filho e calou-se apenas com sua morte, em 13 de abril de 1976, em acidente de
carro no Rio de Janeiro” (CNV, 2014, p. 576).
A disposição de Zuzu Angel fez com que – em
novembro de 1971 – o ministro da Aeronáutica, brigadeiro Márcio de Souza e
Mello, fosse demitido; os chefes de comando do CISA, os brigadeiros Carlos
Affonso Dellamora e João Paulo Moreira Burnier, foram exonerados.
Porém, ela foi assassinada pela ditadura numa
farsa que simulou um acidente de trânsito, em 1976: “O envolvimento direto de
agentes da repressão na morte de Zuzu Angel foi confirmado à CNV[Comissão
Nacional da Verdade] pelo ex-delegado do DOPS/ES, Cláudio Antônio Guerra. Ele
apontou o então major Freddie Perdigão Pereira, lotado na agência Rio de
Janeiro do SNI, como o responsável pelo atentado que matou a estilista. Guerra,
que trabalhou em várias ações clandestinas sob o comando de Perdigão, confidenciou
ter ficado preocupado, pois havia sido fotografado na cena do crime” (CNV,
2014, p. 658).
Só em 2019, o Estado brasileiro emitiu um
atestado de óbito que reconheceu o assassinato de Sutart Angel Jones. Mas seus
assassinos ainda estão por aí, como os assassinos de Rubens Paiva.
Contra essa continuidade, ainda está entre
nós a líder camponesa Elizabeth Altino Teixeira, que completou 100 anos em 13
de fevereiro de 2025. Elisabeth Teixeira, como é mais conhecida, é viúva de
João Pedro Teixeira. Ambos atuavam na liderança das mobilizações de
trabalhadores rurais que desembocaram nas Ligas Camponesas que sacudiram o
país, em meados da década de 1950 e 1960.
Em 1964, o cineasta Eduardo Coutinho
gravava Cabra marcado para morrer, em Vitória de Santa Antão, em
Pernambuco, sobre a vida e a atuação política de João Pedro, que foi
assassinado no dia 2 de abril de 1962 numa emboscada preparada pelo latifúndio
daquela região. Com o golpe militar, o filme sofreu intervenção da ditadura, a
região foi sitiada e Elizabeth Teixeira foi presa por oito meses. Saindo da
prisão, ela foi obrigada a viver clandestina, se afastando de parte de seus 11
filhos (uma se suicidou por não aceitar a perda do pai e dois filhos foram
assassinados); migrou para o estado da Paraíba, atuou como alfabetizadora e
lavadeira. Enfim, reconstruiu a vida e manteve a chama da luta camponesa.
Em 1984, Eduardo Coutinho reconstrói Cabra
marcado para morrer e Elizabeth conseguiu reencontrar sua família. O
centenário de Elizabeth Teixeira foi comemorado em evento realizado no Memorial
das Ligas e Lutas Camponesas, localizado na comunidade tradicional Barra de
Antas, em Sapé (PB). No local, foi inaugurada uma exposição fotográfica
intitulada “As 100 faces de uma mulher marcada para viver”. O ato político
contou com a presença de muitos familiares da líder camponesa.
Sua filha, Maria José mandou o papo: “A
ditadura deixou marcas profundas na nossa família, nunca mais queremos uma
ditadura em nossas vidas. A ditadura quase acabou com nossas vidas. Passamos
por todo tipo de dificuldade que vocês podem imaginar e causou à nossa família
muito sofrimento. Ditadura, nunca mais!”, enfatizou, em alto e bom som”
(Ferreira, 2025).
Quem também continua por aqui é Clarice
Herzog. Recentemente, a jornalista Míriam Leitão informou que: “A justiça
concedeu pensão vitalícia a Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir
Herzog, assassinado pela ditadura em 25 de outubro de 1975. Quase 50 anos
depois da tortura e morte do seu marido nas dependências do II Exército, ela
teve essa vitória” (Leitão, 2025, p.10). A vitória de Clarice não se resume a
uma pensão. A sua obstinação, tal como Eunice Paiva, tem mais sentido. Vladimir
Herzog, o Vlado como era mais conhecido, já tinha conhecimento da possibilidade
de prisão naquela fatídica semana de outubro de 1975.
Paulo Markun descreve: “Não tendo sido
procurado até a manhã de sexta-feira, dia 24, combinou com a mulher, Clarice, e
os filhos Ivo, 9 anos, e André, de 7, uma viagem ao sítio do casal em Bragança
Paulista. “Quero passar um fim de semana idílico com a família”, confessou aos
amigos. Isso não foi possível. Pouco antes das 21h30, chegaram na TV [Cultura]
dois agentes de segurança, dizendo ter ordens de levá-lo ao Destacamento de
Operações Internas do II Exército. Por Interferência de diretores da empresa e
de colegas de trabalho, entretanto, ele pode passar em casa a que seria a sua
última noite” (Markun, 1985, p.21).
Vladimir Herzog se apresentou no dia
seguinte, voluntariamente. Foi assassinado sob torturas. A versão falaciosa da
ditadura é que cometeu suicídio, enforcando-se com as mãos amarradas. Dessa vez
não conseguiram sumir com o corpo. Um ato ecumênico realizado na Catedral da
Sé, em São Paulo, no dia 31 de outubro, reuniu aproximadamente 10 mil pessoas:
flagrante derrota da ditadura. No início de 1976, com a comprovação das mortes
sob tortura do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho no CODI-DOI
de São Paulo, durante o governo do ex-presidente Geisel, o general Ednardo
D’Ávila Melo foi substituído no comando do II Exército pelo general Dilermando
Gomes Monteiro.
Clarice Herzog insistiu e conseguiu o
reconhecimento da morte de seu companheiro: “Vinte de abril de 1976. Clarice
Herzog e seus filhos, Ivo e André, entram com uma ação declaratória contra a
União pela prisão arbitrária do jornalista, pelas torturas a que foi submetido
e por sua morte. Vinte e cinco de outubro de 1978. O juiz Márcio José de Moraes
assina a sentença que declara a União responsável pela prisão, tortura e morte
do jornalista Vladimir Herzog” (Idem, p. 237).
O julgamento daqueles que assassinaram
Vladimir Herzog ainda é uma lacuna. Em 2018, o Brasil foi condenado pela Corte
Internacional dos Direitos Humanos com recomendação para a condenação dos
responsáveis. Clarice ainda está aqui e os assassinos estão impunes.
Maria Eunice Paiva, Zuzu Angel, Hilda Gomes,
Elizabeth Teixeira e Clarice Herzog – por vias e movimentos diferenciados –
conquistaram vitórias que podem e devem nos motivar e inspirar para enfrentar a
narrativa atual que tenta capturar religião, pátria e família fundamentadas
numa concepção ultraconservadora, hipócrita e moralista. Essas mulheres lutaram
e lutam de forma impecável diante da tirania. A resistência à ditadura contou
também com suas ações, que muitas vezes são silenciadas. Não resta a menor dúvida
de que permanecerão entre nós também como fonte de inspiração diante das
ameaças à democracia e às violações de direitos.
Uma constatação que talvez não seja
explicitada no filme Ainda estou aqui é a necessidade de se
compreender que a ditadura não atingiu apenas às camadas médias
intelectualizadas e muito menos que foi apenas esse setor que se mobilizou
contra o regime de exceção. Um debate minimamente honesto deve incluir os
setores sociais atingidos pelas violações cometidas pelo Estado, seus agentes e
aliados do capital urbano e agrário.
Bem como ampliar o perfil e a forma de
atuação dos que resistiram à ditadura. Isso implica compreender que a ditadura
não é privilégio de bairros e moradores dos “territórios nobres”. “A chapa
esquentou” e muito nos territórios periféricos das grandes, médias e pequenas
cidades, tendo como alvo principal a população negra e não branca; como também
“esquentou” nos quilombos, nas comunidades de povos indígenas, nas lutas
camponesas, nos territórios da população ribeirinha e em outros espaços; às
vezes fica parecendo que a luta pela memória é capturada por uma parcela
privilegiada da sociedade.
Para além da necessidade de responsabilização
jurídica e criminal do Estado e dos agentes que assassinaram Rubens Paiva, a
luta de Eunice Paiva evidencia a necessidade da sociedade brasileira enfrentar
de uma vez por todas a impunidade que foi regulamentada pela Lei 6.683/79, mais
conhecida como Lei de Anistia. Em breve, a referida lei será objeto de análise
e parecer do Supremo Tribunal Federal (STF): talvez seja uma boa oportunidade
para que possamos confrontar um dos maiores traumas da nossa sociedade, é
imperativo que os agentes que violaram os direitos humanos sejam
responsabilizados criminalmente.
Mas não só esses agentes: empresas,
empresários, autoridades protagonistas do regime, enfim, a banda empresarial
militar do golpe e da ditadura. E não há nenhum sentimento de revanche ou
vingança nessa reparação, mas sim de justiça. A reparação só com a memória e a
verdade dos fatos, sem a justiça, reforça uma característica mais abjeta deste
período analisado: a vitimização de quem resistiu à ditadura. Por mais que
tenham sido supliciados e violentados, aqueles e aquelas que deram suas vidas e
suas mortes pela democracia, aqueles e aquelas que atuaram em ações de apoio,
em ações de grande impacto ou num simples gesto, merecem o nosso reconhecimento
como cidadãos e cidadãs de luta, nunca como vítimas.
Por fim, considerando as recentes ameaças à
democracia brasileira: não há a menor possibilidade de anistia aos fascistas
que tentaram o golpe de 2023. E não é apenas um ajudante de ordens que deve ser
responsabilizado criminalmente: mas sim quem deu as ordens, quem financiou e
quem estruturou uma rede golpista que felizmente fracassou. Portanto, sem
anistia para quem matou, torturou e ocultou os corpos dos que lutaram contra à
ditadura, como também sem anistia aos golpistas do presente.
Fonte: Por Edson Teixeira da Silva Júnior, em
A Terra é Redonda

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