quarta-feira, 9 de abril de 2025

Quem ainda está aqui?

O premiado filme Ainda estou aqui – dirigido por Walter Salles Jr., com o protagonismo de Fernanda Torres e de Selton Mello – é uma adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva que recupera a luta de sua mãe, Eunice Paiva, e familiares pelo reconhecimento e responsabilização sobre a prisão, assassinato e desaparecimento de seu pai pela ditadura empresarial militar[i] (1964-1985): o deputado Rubens Paiva.

Mas quem foi Rubens Paiva? Segundo o Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964: “Participou de todos os grandes momentos da vida nacional. Quando universitário, foi Vice-Presidente da União Estadual de Estudantes e depois Engenheiro e Deputado Federal [1962], sendo eleito Presidente da Comissão de Transportes, Comunicação e Obras da Câmara Federal. Foi vice-líder do PTB na Câmara. Foi vice-presidente da CPI do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), além de suas atividades jornalísticas. Ativo deputado federal, defensor das bandeiras nacionalistas desde a luta pela criação da Petrobrás, Rubens Paiva foi cassado pelo Ato Institucional n° 1 em 1964, em decorrência de sua participação na Comissão Parlamentar de Inquérito do IBAD, que apurou o recebimento, pelos generais comprometidos com o golpe militar, de dólares provenientes dos Estados Unidos, em 1963. No dia 20 de janeiro de 1971, depois de receber um telefonema de uma pessoa que queria lhe entregar correspondência do Chile, sua casa em Ipanema foi invadida, vasculhada e ele levado, em seu próprio carro, para o Quartel da 3ª Zona Aérea e depois para o DOI-CODI/RJ [Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna]. Sua casa ficou ocupada e, no dia seguinte, Eunice Paiva, sua mulher, e Eliane, sua filha de apenas 15 anos, foram também levadas ao DOI-CODI/RJ, onde ficaram sem conseguir avistar-se com ele, apesar da confirmação dos agentes do DOI de que ele se encontrava lá. Interrogadas várias vezes, sua filha foi libertada 24 horas depois e sua esposa somente 12 dias após. A acusação que pesava sobre Rubens Paiva era a de manter correspondência com brasileiros exilados no Chile. O Exército, para justificar o desaparecimento de Rubens, divulgou nota à imprensa informando que ele teria sido resgatado por seus companheiros “terroristas” ao ser transportado pelos agentes do DOI/CODI, em 28 de janeiro de 1971”. (Dossiê, 1995, p. 296).

Neste artigo, o objetivo é recuperar a atuação de outras “Eunices” no enfrentamento à ditadura, ampliando a compreensão de como os mecanismos de violência política da ditadura atingiram e continuam alcançando os segmentos populares, sobretudo negros, negras e não brancos.

Logo, é imperativo recuperar como outras famílias e outras “Eunices” vivenciaram e resistiram ao terror da ditadura.

A trajetória da família de Virgílio Gomes da Silva é uma delas. Virgílio comandou a captura do embaixador dos Estados Unidos, uma ação política ocorrida entre os dias 4 e 7 de setembro de 1969, organizada por um comando revolucionário da ALN juntamente com integrantes da Dissidência Comunista da Guanabara (DI-GB), uma cisão do PCB. O embaixador foi trocado por 15 prisioneiros políticos de várias organizações de resistência à ditadura, que foi obrigada a publicar um manifesto elaborado pelos autores da ação – em cadeia de rádio, TV e jornais impressos – que denunciava os crimes cometidos pelo regime.

Virgilio Gomes da Silva utilizava o nome de guerra “Jonas”. Foi preso no dia 29 de setembro de 1969 e levado ao DOI-CODI da rua Tutóia, um dos principais órgãos da repressão daquele período. Resistiu bravamente à prisão, mas não suportou às torturas e espancamentos que lhe foram covardemente infringidos pelos agentes da Operação Bandeirantes (OBAN). É o primeiro desaparecido político pela ditadura.

Hilda Gomes da Silva e três dos seus quatro filhos – Wlademir, Virgílio e Isabel – foram detidos um dia após o assassinato de “Jonas”. Separados da mãe, as crianças se mantiveram unidas; a caçula Isabel tinha 4 meses de vida. Posteriormente, foram devolvidos à família. Quatro meses depois de presa, Hilda Gomes da Silva foi libertada e rumou com a família para o exílio, primeiro no Chile e depois em Cuba.

Retornaram ao Brasil em meados da década de 1990. Wlademir, o filho mais velho, dá o tom das marcas desse passado. Virgílio tinha o costume de assobiar quando estava chegando em casa, e seu filho mais velho escutou esse assobio ainda por muito tempo, já em Cuba, e chegou a ficar certo período com problemas de nervos (Lima e Silva Júnior, 2009).[ii] Hilda Gomes da Silva foi fundamental na condução da família em sua reconstrução no exílio e no retorno ao país. Eles estão aqui lutando pela memória de Virgílio Gomes da Silva.

Em 2006, foi lançado o filme Zuzu Angel sob a direção do cineasta Sérgio Rezende. Retoma as trajetórias de Zuleika Angel Jones, ou Zuzu Angel, e seu filho, Stuart Edgar Angel Jones. Este era estudante de economia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e integrava a equipe de remadores do Clube de Regatas do Flamengo (CRF).

Na militância política, integrou o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Foi preso no dia 14 de maio de 1971, nas imediações do bairro Grajaú com a Avenida 28 de setembro, na cidade do Rio de Janeiro e levado para o CISA na base aérea do Galeão, da III Zona Aérea, que estava sob o comando do brigadeiro João Paulo Burnier; sendo barbaramente torturado e assassinado no dia 16 de maio de 1971, integrando a lista dos desaparecidos da ditadura, tal como Rubens Paiva.

Segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade: “Supõe-se que as prisões de Stuart Angel e de outros integrantes do MR-8 e da VPR [Vanguarda Popular Revolucionária] estivessem ligadas ao fato de Carlos Lamarca,[iii] em abril de 1971, ter deixado a VPR e ingressado no MR-8. No início de maio de 1971, o CISA já sabia que Carlos Lamarca tinha ido para o MR-8 e queria capturá-lo de qualquer maneira (…). Relatos do próprio [Alex] Polari e de Maria Cristina de Oliveira Ferreira dão conta de que Stuart foi barbaramente torturado até a morte pelos agentes do CISA, para que revelasse o paradeiro de Carlos Lamarca – o que não fez” (CNV, 2014, p. 571 e 572).

Após o assassinato do filho, a renomada estilista utilizou seus desfiles como forma de denunciar e reivindicar justiça: “As denúncias do desaparecimento de Stuart foram possíveis, ainda no transcorrer da ditadura militar, em função da atuação de sua mãe, a estilista Zuzu Angel. A busca incessante de Zuzu por seu filho levou o caso a ser conhecido internacionalmente, o que gerou grande incômodo aos comandos militares. Zuzu Angel, porém, jamais parou de denunciar o crime contra seu filho e calou-se apenas com sua morte, em 13 de abril de 1976, em acidente de carro no Rio de Janeiro” (CNV, 2014, p. 576).

A disposição de Zuzu Angel fez com que – em novembro de 1971 – o ministro da Aeronáutica, brigadeiro Márcio de Souza e Mello, fosse demitido; os chefes de comando do CISA, os brigadeiros Carlos Affonso Dellamora e João Paulo Moreira Burnier, foram exonerados.

Porém, ela foi assassinada pela ditadura numa farsa que simulou um acidente de trânsito, em 1976: “O envolvimento direto de agentes da repressão na morte de Zuzu Angel foi confirmado à CNV[Comissão Nacional da Verdade] pelo ex-delegado do DOPS/ES, Cláudio Antônio Guerra. Ele apontou o então major Freddie Perdigão Pereira, lotado na agência Rio de Janeiro do SNI, como o responsável pelo atentado que matou a estilista. Guerra, que trabalhou em várias ações clandestinas sob o comando de Perdigão, confidenciou ter ficado preocupado, pois havia sido fotografado na cena do crime” (CNV, 2014, p. 658).

Só em 2019, o Estado brasileiro emitiu um atestado de óbito que reconheceu o assassinato de Sutart Angel Jones. Mas seus assassinos ainda estão por aí, como os assassinos de Rubens Paiva.

Contra essa continuidade, ainda está entre nós a líder camponesa Elizabeth Altino Teixeira, que completou 100 anos em 13 de fevereiro de 2025. Elisabeth Teixeira, como é mais conhecida, é viúva de João Pedro Teixeira. Ambos atuavam na liderança das mobilizações de trabalhadores rurais que desembocaram nas Ligas Camponesas que sacudiram o país, em meados da década de 1950 e 1960.

Em 1964, o cineasta Eduardo Coutinho gravava Cabra marcado para morrer, em Vitória de Santa Antão, em Pernambuco, sobre a vida e a atuação política de João Pedro, que foi assassinado no dia 2 de abril de 1962 numa emboscada preparada pelo latifúndio daquela região. Com o golpe militar, o filme sofreu intervenção da ditadura, a região foi sitiada e Elizabeth Teixeira foi presa por oito meses. Saindo da prisão, ela foi obrigada a viver clandestina, se afastando de parte de seus 11 filhos (uma se suicidou por não aceitar a perda do pai e dois filhos foram assassinados); migrou para o estado da Paraíba, atuou como alfabetizadora e lavadeira. Enfim, reconstruiu a vida e manteve a chama da luta camponesa.

Em 1984, Eduardo Coutinho reconstrói Cabra marcado para morrer e Elizabeth conseguiu reencontrar sua família. O centenário de Elizabeth Teixeira foi comemorado em evento realizado no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, localizado na comunidade tradicional Barra de Antas, em Sapé (PB). No local, foi inaugurada uma exposição fotográfica intitulada “As 100 faces de uma mulher marcada para viver”. O ato político contou com a presença de muitos familiares da líder camponesa.

Sua filha, Maria José mandou o papo: “A ditadura deixou marcas profundas na nossa família, nunca mais queremos uma ditadura em nossas vidas. A ditadura quase acabou com nossas vidas. Passamos por todo tipo de dificuldade que vocês podem imaginar e causou à nossa família muito sofrimento. Ditadura, nunca mais!”, enfatizou, em alto e bom som” (Ferreira, 2025).

Quem também continua por aqui é Clarice Herzog. Recentemente, a jornalista Míriam Leitão informou que: “A justiça concedeu pensão vitalícia a Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura em 25 de outubro de 1975. Quase 50 anos depois da tortura e morte do seu marido nas dependências do II Exército, ela teve essa vitória” (Leitão, 2025, p.10). A vitória de Clarice não se resume a uma pensão. A sua obstinação, tal como Eunice Paiva, tem mais sentido. Vladimir Herzog, o Vlado como era mais conhecido, já tinha conhecimento da possibilidade de prisão naquela fatídica semana de outubro de 1975.

Paulo Markun descreve: “Não tendo sido procurado até a manhã de sexta-feira, dia 24, combinou com a mulher, Clarice, e os filhos Ivo, 9 anos, e André, de 7, uma viagem ao sítio do casal em Bragança Paulista. “Quero passar um fim de semana idílico com a família”, confessou aos amigos. Isso não foi possível. Pouco antes das 21h30, chegaram na TV [Cultura] dois agentes de segurança, dizendo ter ordens de levá-lo ao Destacamento de Operações Internas do II Exército. Por Interferência de diretores da empresa e de colegas de trabalho, entretanto, ele pode passar em casa a que seria a sua última noite” (Markun, 1985, p.21).

Vladimir Herzog se apresentou no dia seguinte, voluntariamente. Foi assassinado sob torturas. A versão falaciosa da ditadura é que cometeu suicídio, enforcando-se com as mãos amarradas. Dessa vez não conseguiram sumir com o corpo. Um ato ecumênico realizado na Catedral da Sé, em São Paulo, no dia 31 de outubro, reuniu aproximadamente 10 mil pessoas: flagrante derrota da ditadura. No início de 1976, com a comprovação das mortes sob tortura do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho no CODI-DOI de São Paulo, durante o governo do ex-presidente Geisel, o general Ednardo D’Ávila Melo foi substituído no comando do II Exército pelo general Dilermando Gomes Monteiro.

Clarice Herzog insistiu e conseguiu o reconhecimento da morte de seu companheiro: “Vinte de abril de 1976. Clarice Herzog e seus filhos, Ivo e André, entram com uma ação declaratória contra a União pela prisão arbitrária do jornalista, pelas torturas a que foi submetido e por sua morte. Vinte e cinco de outubro de 1978. O juiz Márcio José de Moraes assina a sentença que declara a União responsável pela prisão, tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog” (Idem, p. 237).

O julgamento daqueles que assassinaram Vladimir Herzog ainda é uma lacuna. Em 2018, o Brasil foi condenado pela Corte Internacional dos Direitos Humanos com recomendação para a condenação dos responsáveis. Clarice ainda está aqui e os assassinos estão impunes.

Maria Eunice Paiva, Zuzu Angel, Hilda Gomes, Elizabeth Teixeira e Clarice Herzog – por vias e movimentos diferenciados – conquistaram vitórias que podem e devem nos motivar e inspirar para enfrentar a narrativa atual que tenta capturar religião, pátria e família fundamentadas numa concepção ultraconservadora, hipócrita e moralista. Essas mulheres lutaram e lutam de forma impecável diante da tirania. A resistência à ditadura contou também com suas ações, que muitas vezes são silenciadas. Não resta a menor dúvida de que permanecerão entre nós também como fonte de inspiração diante das ameaças à democracia e às violações de direitos.

Uma constatação que talvez não seja explicitada no filme Ainda estou aqui é a necessidade de se compreender que a ditadura não atingiu apenas às camadas médias intelectualizadas e muito menos que foi apenas esse setor que se mobilizou contra o regime de exceção. Um debate minimamente honesto deve incluir os setores sociais atingidos pelas violações cometidas pelo Estado, seus agentes e aliados do capital urbano e agrário.

Bem como ampliar o perfil e a forma de atuação dos que resistiram à ditadura. Isso implica compreender que a ditadura não é privilégio de bairros e moradores dos “territórios nobres”. “A chapa esquentou” e muito nos territórios periféricos das grandes, médias e pequenas cidades, tendo como alvo principal a população negra e não branca; como também “esquentou” nos quilombos, nas comunidades de povos indígenas, nas lutas camponesas, nos territórios da população ribeirinha e em outros espaços; às vezes fica parecendo que a luta pela memória é capturada por uma parcela privilegiada da sociedade.

Para além da necessidade de responsabilização jurídica e criminal do Estado e dos agentes que assassinaram Rubens Paiva, a luta de Eunice Paiva evidencia a necessidade da sociedade brasileira enfrentar de uma vez por todas a impunidade que foi regulamentada pela Lei 6.683/79, mais conhecida como Lei de Anistia. Em breve, a referida lei será objeto de análise e parecer do Supremo Tribunal Federal (STF): talvez seja uma boa oportunidade para que possamos confrontar um dos maiores traumas da nossa sociedade, é imperativo que os agentes que violaram os direitos humanos sejam responsabilizados criminalmente.

Mas não só esses agentes: empresas, empresários, autoridades protagonistas do regime, enfim, a banda empresarial militar do golpe e da ditadura. E não há nenhum sentimento de revanche ou vingança nessa reparação, mas sim de justiça. A reparação só com a memória e a verdade dos fatos, sem a justiça, reforça uma característica mais abjeta deste período analisado: a vitimização de quem resistiu à ditadura. Por mais que tenham sido supliciados e violentados, aqueles e aquelas que deram suas vidas e suas mortes pela democracia, aqueles e aquelas que atuaram em ações de apoio, em ações de grande impacto ou num simples gesto, merecem o nosso reconhecimento como cidadãos e cidadãs de luta, nunca como vítimas.

Por fim, considerando as recentes ameaças à democracia brasileira: não há a menor possibilidade de anistia aos fascistas que tentaram o golpe de 2023. E não é apenas um ajudante de ordens que deve ser responsabilizado criminalmente: mas sim quem deu as ordens, quem financiou e quem estruturou uma rede golpista que felizmente fracassou. Portanto, sem anistia para quem matou, torturou e ocultou os corpos dos que lutaram contra à ditadura, como também sem anistia aos golpistas do presente.

 

Fonte: Por Edson Teixeira da Silva Júnior, em A Terra é Redonda

 

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