O tarifaço de Trump: caricatura do passado,
parteira involuntária do futuro
Os
Estados Unidos se tornaram um desfile de ideias pirateadas de um museu. Se a
geopolítica de Biden e Trump repetem os anos 1970, a estratégia de tarifaço também
não é nova: encena o que se viu naquele país na virada do século XIX para o XX,
quando a tarifação foi parte central do giro protecionista iniciado pelo
presidente William McKinley, a quem Trump citou elogiosamente na posse.
Assim,
Trump retrocede ao momento mais glorioso, e derradeiro, dos Gilded
Years, o período do pós-Guerra Civil, vez ou outra romantizado pela direita
americana: o crescimento pau na máquina, com a imigração branca – mas já sem as
benesses do começo da colonização – coexistindo com a segregação dos negros, o
massacre dos indígenas e a participação americana no sistema imperialista.
Para
além das chagas sociais, convenientemente sonegadas da lembrança coletiva
daquele tempo, a economia também não foi exatamente bem: o republicano McKinley
assumiu o país já na esteira da crise de 1893, dando um verdadeiro cavalo de
pau por meio de uma política tarifária de cunho protecionista, enquanto lançava
mão de uma estratégia expansionista, inicialmente negada, indo para cima da
Espanha.
O
momento americano, contudo, agora é outro. Diferentemente da jovem potência que
crescia, se abria e cujo sistema político, mesmo de maneira sórdida, se
permitia fazer reformas e inovar, o país hoje vive à sombra de uma percepção
generalizada de decadência – inclusive de ultrapassagem pela China no campo da
hegemonia e da tecnologia. Trump está aplicando um golpe em um sistema que, em
tese, ele ainda hegemoniza e lidera.
Os
efeitos dessa tarifação produziram uma explicável inquietação. De um lado, elas
rompem com o bloco central do imperialismo, opondo os Estados Unidos aos seus
leais e abnegados sócios minoritários, mas também erode um sistema de que parte
do Sul Global soube se utilizar para se desenvolver – apesar das contradições
todas; a globalização foi remédio que virou vício, para chineses e russos, mas
agora a nova situação pode os tirar da inércia.
·
Os Estados Unidos, de beneficiados ingratos da
globalização a seus coveiros
A
globalização não enfraqueceu a economia americana. Segundo o Banco Mundial, ela ficou até
relativamente maior que a de seus parceiros da América do Norte: entre
1992 e 2023, por paridade de poder de compra, o PIB per capita do México caiu
de 35% para 28% do americano; já o Canadá foi de 83% para 76% – comparações com
Alemanha, França e Japão, no mesmo período, demonstram algo semelhante.
O que
não aconteceu é a conversão dessa acumulação de capital em qualidade de vida.
De melhor lugar para se viver em 1992, os Estados Unidos caíram para a 20ª posição em 2022 no
ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Em outras palavras, a
decadência é social e, só a partir daí, econômica. Seguidos presidentes dos
dois grandes partidos foram incapazes de reverter esse enriquecimento mal
distribuído.
Nesse
contexto, a indignação social nos Estados Unidos, em um contexto de segregação
racial, foi instrumentalizada nas guerras culturais, enquanto democratas e
republicanos concordavam no essencial, até 2016. A ruptura trumpista usou e
radicalizou do ressentimento da parte mais pobre da maioria branca, que muitas
vezes caiu de status social e foi manobrada a odiar negros, hispânicos, mas
também outras minorias.
O
discurso de Trump aponta que a crise americana é fruto da desindustrialização,
mas isso ignora o fato de que a realocação do parque industrial do país foi
planejada: controlando a produção de tecnologia, e se centrando no setor de
serviços, os problemas americanos começam não pela China sediar as fábricas do
mundo, mas sim por ter passado a também desenvolver tecnologia e seu setor de
serviços – fechando o caminho para as Big Techs americanas.
Esses
vastos excedentes acumulados nas últimas décadas não construíram, da mesma
forma, um setor de ponta tecnológico eficiente, mas sim um cartel de novos
barões ladrões que, por sinal, financiaram a campanha de Trump – e que
agora integram o governo dele. Tudo isso com o objetivo de obter medidas
protecionistas para, assim, contornar sua defasagem em termos de inovação,
preço e qualidade. E talvez abrir a fórceps mercados orientais.
Apesar
do déficit comercial físico – que nunca foi exatamente um problema –,
estudiosos apontam os exorbitantes ganhos dos Estados
Unidos no
comércio digital. Isso, no entanto, só não é maior porque russos e, sobretudo
chineses ousaram criar suas próprias redes sociais e aplicativos e, inclusive,
têm avançado enormemente nesse campo. Enquanto Trump vocifera contra os
déficits, por outro lado ignora que pode ameaçar esse superávit.
Portanto,
o argumento trumpista é de que a economia não cresceu o suficiente nas últimas
décadas, não que ela concentrou renda e isso produziu, dentre outras coisas,
ineficiência econômica. Omitir isso, obviamente, é um ponto muito importante do
projeto político dele, o que é uma falácia sem tamanho. Na verdade, Trump dobra
a aposta e vai a fundo no equilíbrio desequilibrado do qual os Estados Unidos
tanto se beneficiam, ameaçando-o.
·
Por que as tarifas “deram certo” no passado, mas são uma
estratégia temerária hoje em dia?
O
leitor atento vai lembrar que dissemos que a geopolítica trumpista é,
sobretudo, repetição: Joe Biden tentou repetir o gesto ardiloso de Jimmy Carter
nos anos 1970 ao atrair os russos para um atoleiro, mas terminou ele mesmo
atolado – enquanto o ressurreto Donald Trump agora empurra Biden para o papel
de Lyndon Johnson, enquanto se posiciona como um novo Richard Nixon para
resolver o imbróglio russo. Sim, nas tarifas ocorre algo parecido.
Aqui,
como na geopolítica, a repetição do passado por Trump é regra, só que a
referência é mais longínqua. Trump expressamente citou McKinley, inclusive como
responsável pelos êxitos econômicos de Ted Roosevelt, seu sucessor, também
republicano. Ali, os Estados Unidos era um país permeado de contradições
sociais, mas também era um país jovem, aberto à inovação e novas ideias
enquanto recebia imigrantes de uma Europa em convulsão.
McKinley
tinha o desafio de proteger sua indústria das potências europeias, tendo uma
capacidade instalada grande, enquanto as cadeias produtivas eram muito mais
simples – nem por isso o governo americano abriu mão da mão de obra imigrante
como forma de ampliar sua força de trabalho naquele contexto. Sob a presidência
de McKinley (1897-1901), o número de imigrantes ganhando residência permanente
no país mais do que dobrou.
Nem é
preciso dizer que nos últimos 120 anos a economia se tornou mais complexa, e a
divisão internacional do trabalho passou a comportar etapas que inexistiam –
inclusive pela forma que se produz e como se produz. Obtenção de matéria-prima,
elaboração, manufatura e comercialização podem ocorrer em quatro países
diferentes. A estipulação de tarifas contra um distante Vietnã atinge em cheio
as plantas industriais da americana Nike.
É
claro, a Nike poderia passar a produzir nos Estados Unidos. Mas para isso, ela
teria de ter capacidade instalada suficiente – ou os recursos para construí-la
rapidamente – no território americano, considerando ainda ter a mão de obra
necessária, a custos que permitam um preço final razoável – levando em
consideração, ainda, que os fornecedores de matéria-prima para simples calçados
não estão nos Estados Unidos, mas em algum país tarifado.
Só é
possível imaginar que isso funcione, como já aconteceu em Trump I, em ramos como a siderurgia, cujo processo é
simples e para o qual os Estados Unidos possuem capacidade instalada. Uma
tarifação gigantesca e amplíssima, com alíquotas arbitrárias, levam a impactos
imprevistos, uma vez que a dinâmica comercial entre os Estados Unidos e um país
desenvolvido é um verdadeiro universo – tanto pelo seu tamanho quanto pela
complexidade.
O
resultado nos últimos dias foi pânico nos mercados, queda nas ações e uma
desvalorização atípica do dólar pela queda de fluxos de capitais para os
Estados Unidos – o que é o pior cenário possível, em termos inflacionários,
pois o normal, em um processo como esses, seria a valorização do dólar, o que
poderia compensar o aumento gerado pelas tarifas – mas a dose cavalar produziu
um fenômeno de outra ordem.
·
Epílogo: o mundo pós-americano precisa nascer
O dólar
como moeda universal, junto com o mercado americano como um grande motor da
demanda global, criaram o mecanismo que Joseph Halevi e Yanis Varoufakis
chamaram de Minotauro Global. Os grandes déficits
gêmeos americanos, contrariando o que era regra entre as potências, criaram um
elemento central do mundo globalizado. Isso, contudo, abriu espaço para o
impossível: produzir espaço para países como a China ou Rússia se reorganizarem.
Ao
contrário dos europeus, do Japão ou dos países da América do Norte, os chineses
souberam operar na globalização e diminuíram sua diferença relativa para as
grandes potências. A Rússia, a partir do século XXI, igualmente. Mas tanto
Pequim quanto Moscou se viram na peculiar condição de se viciarem no remédio
que as curou – e hoje precisam dar um novo salto, o que vai bem além de
iniciativas como o Brics.
Embora
Donald Trump tenha iniciado a guerra comercial em 2017, lembremos que antes
dele Barack Obama já considerava meios de isolar a China e que, nos últimos
anos, Joe Biden reafirmou e radicalizou a doutrina de sanções americanas,
transformando o dólar, definitivamente, em uma arma de guerra no episódio
ucraniano. Os russos foram obrigados pela necessidade a dar saltos que já
poderiam ter dado há anos.
Novamente,
como se vê desde a crise mal resolvida de 2008, a questão global demanda não
uma nova hegemonia, mas a construção de mecanismos multipolares de gestão
econômica – a persistência do dólar como moeda dos Estados Unidos e,
simultaneamente, moeda global se mostra cada vez mais catastrófico. Neste exato
instante, isso é uma confusão inclusive para o próprio capital americano.
Isso
impele também o Brasil a se mover, depois de ter passado os últimos anos ora
tomando o lado do trumpismo, com Bolsonaro, ora com um alinhamento aos
democratas. Nenhuma dessas posições satisfaz as demandas brasileiras, ainda
mais em um cenário como esse – muito embora um certo viralatismo nacional
comemore a aplicação de tarifas “apenas” de 10% que vem a se somar com as do
aço e do alumínio.
Essa
situação apocalíptica permite ao Brasil se mover para além dos limites
estanques a que os democratas submetiam o país, o que talvez poderia dar a
contrapartida de evitar alguém como Bolsonaro no poder, mas não impediu a
chegada silenciosa de um Tarcísio de Freitas – que, no entanto, já apareceu com
o boné trumpista, embora não tenha se pronunciado sobre as tarifas que afetam a
indústria siderúrgica paulista.
Os dois
modelos de Trump, McKinley e Nixon, terminaram mal. O primeiro foi assassinado
por um anarquista, o segundo se viu obrigado a renunciar depois do escândalo
Watergate. O protecionismo de McKinley, apesar de funcional e, por isso, uma
moda à sua época, conduziu o mundo à Primeira Guerra. É perfeitamente possível
construirmos uma alternativa a essa via suicida, mas lembremos: a História
ensina, o que ela não faz é perdoar.
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Trump ignora colapso de bolsas e defende guerra tarifária
O
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, disse neste sábado (05/04) que a guerra
comercial que seu governo iniciou com o resto do mundo "não será
fácil", mas também manifestou sua convicção de que seu país sairá
vitorioso, apesar da turbulência gerada pelas medidas, que provocaram fortes
perdas em bolsas mundo afora. Somente nos EUA, as bolsas de valores sofreram sua maior queda desde a
explosão da pandemia da covid-19, em 2020.
"Isto
é uma revolução econômica, e nós venceremos. Aguentem firme, não será fácil,
mas o resultado será histórico. Faremos os EUA serem grandes novamente",
declarou o presidente em uma mensagem em sua plataforma de mídia social, a
Truth Social, no mesmo dia em que as o "tarifaço" anunciado por
Trump na quarta-feira entrou em vigor.
O líder
republicano afirmou que seu plano permitirá que os Estados Unidos
"recuperem empregos e empresas como nunca antes".
Trump
comentou ainda que a China, que respondeu à guerra comercial com tarifas de 34%
sobre produtos dos Estados Unidos, "foi atingida com muito mais
força".
O
presidente americano fez esta postagem na Flórida, onde planeja passar o sábado
jogando golfe pelo terceiro dia consecutivo desde que declarou guerra comercial
ao resto do mundo na quarta-feira, causando quedas no mercado de ações não
vistas desde o início da pandemia de covid-19 em 2020.
O
republicano impôs uma tarifa global básica de 10% a aliados e rivais, com taxas
adicionais em alguns casos, como a China ou a União Europeia (UE).
O
governo americano alertou seus parceiros comerciais para não responderem às
tarifas, para não correrem o risco de sofrer taxas adicionais sobre suas
exportações. A China, no entanto, já respondeu com tarifas contra produtos
americanos, turbinando a queda nos mercados que já vinha ocorrendo após os EUA
anunciarem taxas na quarta-feira.
"A
China se equivocou, entrou em pânico. A única coisa que não podiam se permitir
fazer”, escreveu Trump em letras maiúsculas em sua rede Truth Social ante de ir
ao seu clube de golfe na Flórida.
Pequim
anunciou nesta sexta-feira que vai impor tarifas aduaneiras adicionais de 34%
aos produtos americanos a partir de 10 de abril.
Também
anunciou controles de exportação de terras raras, incluindo o gadolínio,
utilizado para a ressonância magnética, e o ítrio, usado na eletrônica.
Muitas
tarifas são cumulativas. Antes de quarta-feira, Trump já havia imposto taxas de
25% sobre o aço e o alumínio e na quinta entraram em vigor outras de 25% sobre
automóveis e seus componentes importados para os Estados Unidos. Com exceções
para o México e Canadá por serem parceiros do Tratado de Livre Comércio da
América do Norte (T-MEC).
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Queda recorde nas bolsas
Nos
EUA, Wall Street viu seus principais indíces caírem mais de 5%. Um dos
principais termômetros da economia americana, o S&P 500, que representa o
valor de mercado das 500 maiores empresas de capital aberto do país, despencou
6%.
Já o
índice da bolsa de valores Nasdaq, onde estão listadas as principais empresas
de tecnologia americanas, teve queda de 5,8% no fechamento do pregão. A
diferença para a sua última alta é de mais de 20%.
Na
prática o S&P 500 sofreu uma perda no mercado de cerca de 2 trilhões de
dólares (R$ 11,4 trilhões), enquanto o setor de tecnologia da Nasdaq reduziu
quase 1 trilhão de dólares (R$ 5,7 trilhões) em capitalização de mercado.
O mesmo
se deu nos fechamentos na Europa (Paris caiu 4,3%, e Frankfurt e Londres, 5%) e
na Ásia (em Tóquio, o índice Nikkei perdeu 2,75%, e o Topix, 3,37%). As bolsas
chinesas não abriram, devido a um feriado.
Os
preços do petróleo continuam em queda livre, de mais de 7%. O cobre vai pelo
mesmo caminho.
Mas
Trump se manteve inabalável diante dos efeitos de sua ofensiva comercial.
"Para os muitos investidores que vêm aos Estados Unidos e investem enormes
quantias, minhas políticas nunca mudarão. Esse é um grande momento para
enriquecer. Ficar mais rico do que nunca!!!”, publicou em letras maiúsculas, na
Truth Social.
"Apenas
os fracos vão fracassar!", escreveu Trump em outra publicação. Em mensagem
posterior, afirmou: "As grandes empresas não estão preocupadas com as
tarifas, porque sabem que estão aqui para ficar."
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"Emergência nacional"
Trump
impôs as tarifas usando a autoridade adicional que tem como presidente para
declarar uma "emergência nacional", argumentando que a atual situação
comercial representa um risco à segurança dos Estados Unidos.
O
presidente prometeu que as tarifas levarão de volta aos EUA empregos que foram
transferidos para países com mão de obra mais barata nas últimas décadas.
Porém, nas últimas semanas, também reconheceu que pode haver um doloroso
período de "transição" para as famílias americanas.
A
última vez que as tarifas dos EUA foram tão altas foi depois que o presidente
Herbert Hoover (1929–1933) assinou a controversa Lei de Tarifas Smoot-Hawley em
1930, que aumentou as taxas sobre muitos produtos importados para quase 40%.
Acredita-se
que essa medida tenha agravado a Grande Depressão, também conhecida como Crise
de 1929, que durou até os anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial.
Fonte: Por Hugo Albuquerque, em Opera Mundi/Opera
Mundi

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