Poderá a globalização nos livrar do
capitalismo?
Em crise profunda, os neoliberais
contorcem-se, mordem o próprio rabo e adotam um protecionismo tacanho. Nos EUA,
os magnatas já exercem o poder diretamente. Mas, em seu impulso de integração,
talvez a humanidade já tenha encontrado uma alternativa.
1. Os bilionários no poder nos EUA e o
sentido desta mudança
No curso da grande crise econômica em que
estamos mergulhados, era previsto que a ideologia liberal se radicalizasse em
sua origem e condição de classe, e que redobrasse suas apostas na concentração
de riqueza nas mãos dos capitalistas, em detrimento da população trabalhadora
em geral. A ideologia, neste momento, apela ainda mais para “o espírito animal”
do empresário, aumentando a ideia de valor e poder dos líderes empresariais
vitoriosos na competição do mercado. Nada pode ter mais valor ideológico para o
capitalismo do que a visão do vitorioso, os líderes empresariais, vistos como
condutores natos da produção e, portanto, da vida social. Isso parece natural,
no sentido de que, seja como for, tiveram o suposto mérito de vencer no cenário
da mais intensa competição.
Existem muitas razões para que seja assim.
Estamos em processo de socialização da produção e da vida social como um todo.
Todas as grandes certezas do liberalismo ou, mais objetivamente, do capitalismo
liberal, foram derrotadas na história. Porém os processos históricos não são
lineares – mas desenvolvem-se em ondas. Podemos, portanto, reconhecer um
processo histórico de socialização no sistema que, no entanto, tome, em alguns
momentos, o sentido oposto: o da acentuação do liberalismo na economia, na vida
real, no mundo todo. Estamos justamente no fim de um destes momentos de
acentuação do capitalismo em sua essência.
Neste momento, os capitalistas e seus
representantes, no que toca à distribuição da riqueza e do poder, redobram a
aposta na liberdade e poder ilimitados do mercado, dos capitalistas e de seus
líderes. É realmente peculiar que agora sejam os próprios capitalistas a
exercer diretamente o poder nos EUA. Nada mais evidente. Estamos no ápice da
crise e os atores principais não podem e não querem mais deixar o poder nas
mãos de seus representantes profissionais. Acumularam tanto poder e estão tão
ligados ao Estado americano que não precisam e não querem mais ocultá-lo.
A crise já se arrasta pelo menos desde 2007 –
e o que fazem? Apostam em maior concentração de riqueza e poder para dar
solução à crise que foi causada por maior acúmulo e concentração de riqueza e
poder. Correlativamente, produzem empobrecimento, relativo e até mesmo
absoluto, das massas trabalhadoras nos grandes países da economia ocidental, da
Europa e dos EUA.
A necessidade econômica, por seu lado, indica
que teremos que superar esta onda, que promoveu a intensa concentração das
riquezas, no mundo todo, dos EUA à China. E, de fato, já estamos andando neste
sentido. A desigualdade parou de crescer desde 2014 na China. E, recentemente,
tínhamos alguma tendência positiva nos próprios EUA. No entanto, agora,
Washington optou por guinada liberal extrema. Estão dispostos a fazer a massa
trabalhadora aceitar, temporariamente, ainda mais perda de serviços e de renda,
de recursos e de dignidade. Vão tomar recursos das classes médias e das já
empobrecidas, enxugando ainda mais os serviços públicos e adotando medidas de
proteção à indústria local, em detrimento da competição e da integração
produtiva mundial. Isto, com certeza, aumenta as pressões inflacionárias e de
desaceleramento da economia, nos EUA e mundo afora.
A guerra comercial que os EUA lançaram contra
a China e que agora se intensifica, com grandes aumentos de tarifas de
importação, é característica deste período de grande crise econômica e de
grande mudança na hegemonia, no centro de poder capitalista mundial.
Em qualquer outra situação teríamos
justamente o inverso, o centro do poder no sistema capitalista mundial deve ser
expansivo e liberalizante; deve fazer o que for necessário, incluindo levar
adiante guerras, em favor da liberdade de comércio e empreendimento, mas não
impor-lhes barreiras e restrições. As guerras do ópio do século XIX foram
realizadas para liberalizar o mercado da China para o comércio inglês. Já a
guerra do ópio atual, a guerra do fentanil, que por enquanto ainda é apenas
comercial, está sendo realizada para fechar o mercado americano para os
produtos chineses. É um longo ciclo que se fecha. Em ambos os casos o ópio era
e é apenas uma marca, um pretexto emblemático, para se abrir ou fechar
mercados.
O liberalismo, chegado neste extremo da
crise, vai negar de bom grado todos os seus dogmas, como já fez antes, vai
defender o protecionismo, vai defender as restrições ao livre comércio e a
expansão da integração econômica mundial, vai se tornar nacionalista e vai, ao
fim, buscar a guerra como solução. Só um dogma não pode ser contestado pelo
liberal, o ideal do livre exercício do poder econômico capitalista. Até o
limite de tentar tomar, diretamente em suas mãos, o poder político do estado,
como está acontecendo agora nos EUA.
2. A demonstração de que o planejamento
precisa se impor à cegueira dos mercados
Mais empobrecimento, mais imperialismo e mais
guerra ou desenvolvimento humano global?
Tudo isto já aconteceu antes na história do
sistema capitalista contemporâneo.
A onda liberal atual, iniciada na transição
dos anos 1970 para os 80, chegou ao seu limite e está em crise desde a segunda
metade da primeira década deste século. A resposta é, como foi antes, redobrar
a concentração de riqueza e poder nas mãos dos capitalistas e numa
correspondente visão e atuação imperialista mais explícita no cenário mundial.
O sentido de paz com que os EUA acenam hoje
para o caso da Ucrânia é circunstancial. O direcionamento dos EUA para a guerra
será inevitável, na medida que a crise se aprofunde e ela só pode se aprofundar
com o aprofundamento da receita liberal.
É até curioso e realmente absurdo que hoje
sejam a Inglaterra, a França e outros países da Europa (os que mais perderam
economicamente com o conflito, depois da própria Ucrânia) que defendam
aguerridamente a continuidade da guerra. Mas basta olhar para os índices de
crescimento econômico destas economias para termos uma pista de por que estão
tomando decisões tão enlouquecidas. A crise econômica está atrás destas
sandices, assim como na resposta muito disfuncional à pandemia, no mundo
ocidental. Quando nada mais anda, fazer andar a economia da guerra, da
destruição e da morte pode parecer um ótimo negócio para políticos e setores
empresariais. É assim que pensam hoje os poderes nos grandes países da Europa,
acreditando que vão pelo menos manter, pelo terror, parte do seu poder imperial
no mundo, que, obviamente, decai a cada dia.
Não podemos tomar qualquer estágio da
evolução histórica como um parâmetro preciso para os períodos seguintes, mas
podemos reconhecer, na estrutura de um sistema, em sua dinâmica histórica, as
ondulações que se repetem com certa regularidade. Do contrário, não poderíamos
analisar os processos históricos, apenas narrá-los.
Pode-se reconhecer pelo menos duas tendências
expansionistas evidentes, dentro do desenvolvimento histórico do sistema
capitalista mundial. A tendência à expansão dos empreendimentos e do mercado; à
mundialização do comércio, da finança e da produção e, reciprocamente, do
consumo, da cultura, a integração mundial e, por conseguinte, a mundialização
das pessoas e do próprio mundo. E a tendência ao desenvolvimento da produção em
massa e da ciência produtiva em todas as áreas, sempre revolucionando a si mesma.
Obviamente, estas e outras grandes tendências
estão interligadas e são interdependentes. É razoável dizer que a partir da
revolução industrial estas características e tendências se mostraram tão
vitoriosas, tão dominantes no mundo em geral, que vivemos todos, desde então,
em um sistema capitalista mundial.
Estas forças são maiores que todas as
contratendências do próprio capitalismo. A história mostrou, até agora, que não
existe limite econômico absoluto para a reprodução da economia capitalista; e
também parece ter mostrado que o proletariado industrial não é o condutor
histórico da superação do sistema capitalista. Ao ponto, nas últimas décadas,
ele ter perdido boa parte do seu grande papel político anterior, com o
desenvolvimento inevitável e progressivo dos sistemas automatizados de
produção.
O mundo anda por caminhos surpreendentes, o
desenvolvimento tecnológico e a integração mundial continuarão. Isto está no
cerne da lógica “cega” do sistema capitalista e também no cerne da evolução
consciente, planejada, do socialismo. Estamos em uma encruzilhada extrema, onde
o principal país socialista do mundo tem a economia de mercado mais florescente
do mundo, enquanto aqueles que defendiam a liberalização da economia mundial
voltam-se para a visão regressiva, imperialista e fascista, de defesa da economia
e do Estado nacional autárquico
Seria inteligente que os anarquistas, os
comunistas, os socialistas até mesmo os social-democratas assumíssemos
fortemente estas duas tendências expansionistas como nossas bandeiras, nossos
ideais imediatos e diretos, corrigindo assim alguns erros históricos. Quem quer
o contínuo desenvolvimento e a expansão da ciência e da tecnologia, a
integração da produção e da vida social em todo o mundo somos nós. Capitalismo
e capitalistas podem apenas serem instrumentos, relativamente cegos,
relativamente estúpidos e perversos, destes desígnios e escolhas.
Essa é a condição e a situação atual do
socialismo na China. Dos anos 1980 para cá o país viveu um desenvolvimento
econômico e social acelerado. Este desenvolvimento foi acompanhado por algo
pouco conhecido: lá surgiram mais bilionários que em qualquer outro país nas
últimas décadas. Mas, ao mesmo tempo, a China foi o país que mais prendeu, ou
colocou em reformatórios, os seus bilionários. O sistema financeiro continua
sob controle direto do governo e o desenvolvimento da economia atende a um
“planejamento estratégico” público e não apenas às forças do mercado e ao poder
dos ricos. Houve desenvolvimento social intenso, porque o desenvolvimento
econômico foi acelerado e porque o poder público dirigiu a economia no sentido
da melhora consistente da qualidade de vida das massas.
Na Europa em geral, e nos EUA, o aumento da
desigualdade progrediu apesar da crise e continuou crescendo desde 2007, até
pelo menos o período da pandemia. De lá para cá não existe uma tendência
consistente ainda, mas podemos antever uma nova rodada de perda para os
trabalhadores locais, com as ações protecionistas atuais dos EUA e com aumento
dos gastos militares na Europa.
A grande crise econômica do sistema
capitalista no século passado começou em 1913 e só foi se resolver a partir de
1945. Neste período ocorreu uma grande depressão econômica mundial e, também,
duas grandes guerras “mundiais” e uma pandemia que resultaram em mais de 150
milhões de mortes, em uma população de 2 bilhões. A melhora, absoluta e
relativa, da renda, dos recursos e serviços, em geral, nas mãos das classes
trabalhadoras e médias marcou o fim dos anos 1940 e das três décadas seguintes.
A social-democracia emergiu como a principal força política e ideológica do
pós-guerra, até encontrar seus limites e ser superada pela nova onda liberal no
começo dos anos 1980 do século passado.
A crise atual começou em 2007 e, até agora,
só não se manifestou com o mesmo terror do século passado porque foi sabiamente
contida com os recursos contracíclicos largamente utilizados, com trilhões e
trilhões de dólares jogados nos mercados e nas mãos da população, para manter a
economia em funcionamento. Mas, sem a redistribuição da riqueza esta crise está
condenada a persistir, protraída, controlada, mas sempre aí, mordendo os
calcanhares e os bolsos das classes médias e pobres.
Estamos no ápice da crise. Ainda teremos
algumas décadas nesta etapa derradeira da onda neoliberal. Neste período a
tendência à solução pela guerra, absurda e alucinante, jamais estará ausente ou
distante. Continuará na ordem do dia por longos anos.
3. Uma grande depressão econômica e guerras
mundiais são inevitáveis?
A grande crise econômica do sistema
capitalista mundial está sendo controlada por mecanismos anticíclicos limitados
e sob constante pressão. Esta crise coincide com o fim de uma grande hegemonia
no sistema capitalista mundial. Em função da ascensão chinesa, estamos no fim
do império a e da grande aliança mundial de poder estabelecida pelos EUA.
A simples afirmação de que estes são
processos capitalistas, do sistema capitalista mundial, já significa que são,
inerentemente, muito violentos e irracionais. Isto é parte da própria lógica do
sistema econômico operado pelo mercado.
O processo de socialização chinês mantém os
capitais privados sob planejamento e controle públicos fortes. Define a
distribuição dos recursos sociais, financeiros e materiais entre os diversos
setores e classes da economia, permitindo que a empresa privada funcione
“livremente” apenas dentro de marcos e limites estruturais socializados.
Se os indicadores atuais se mantiverem, tudo
indica que a China já colocou foco no aumento do consumo das massas, com ganho
relativo de renda para estas. E não parece haver qualquer questionamento ao
sistema de planejamento estratégico púbico da economia socialista no país.
Contudo, a ideologia liberal tem penetração na sociedade chinesa atual e o
conflito em torno do controle do sistema financeiro e produtivo estará sempre
em jogo nos próximos anos e décadas – tanto lá como aqui.
No entanto, continuaremos, por tempo
relativamente longo, sob alto risco de grandes guerras mundiais, por estarmos
na confluência de dois grandes movimentos histórico-sociais no sistema
capitalista mundial – a crise de fim da onda neoliberal e a crise do fim da
hegemonia norte-americana. Ambos movimentos são costumeiramente acompanhados de
grandes guerras e crises sociais no interior das nações.
O simples, no entanto, de se tratar de um
sistema mundializado e muito mais integrado do que há 100 anos, nos protege da
fatalidade de termos que repetir os mesmos processos da crise anterior, ainda
que estejamos sob as mesmas pressões.
A integração da economia mundial torna mais
difíceis e irracionais as grandes guerras. Sua absurda destrutividade mostra-se
tanto mais inaceitável quanto mais o mundo estiver integrado produtiva
socialmente. Parece mais irrazoável, agora, destruir o sistema mundial para não
ceder parcelas do poder econômico e político, nacional e empresarial. Vamos ser
levados, contudo, ao limite.
O fato da grande potência emergente ser a
China socialista é ao mesmo tempo um resultado e uma providência dos processos
históricos. A China tem sido seguramente, entre os países poderosos, o mais
disciplinado e aderente às decisões e ao sentido geral do sistema ONU; e o que
mais tem investido na transição energética. Não é de se estranhar, dada a
convergência de princípios do socialismo com o internacionalismo e o
desenvolvimento da consciência, da inteligência, da segurança e da governança
mundiais. Isto é tranquilizador, quando sabemos que ela será a nação mais
provocada e atacada pela aliança norte-americana nos próximos anos e décadas.
É improvável que o aprendizado histórico seja
completamente inútil agora, permitindo que as grandes catástrofes econômicas e
sociais das crises passadas se repitam. Ainda que muitos sinais e tendências
neste sentido estejam presentes, eles parecem ser, ao fim, mais fracos do que
os mecanismos regulatórios e de proteção social que já foram postos em
movimento.
A solução será socializante, como no século
passado. No cenário mundial, novas estruturas de decisão, organização e
governança terão que ser desenvolvidas mais intensamente do que no século
passado, correspondendo ao nível mais desenvolvido da economia mundial e da
sociedade mundiais. Certamente precisaremos avançar muito além dos limites e
das contradições do sistema das Nações Unidas e de Bretton Woods, rumo a uma
verdadeira governança global.
Os EUA mostram reconhecer sua perda relativa
de poder e reagem a isto violentamente, tentando resgatar seu império. Tudo
isto ocorre tardiamente, quando um movimento econômico e social real já solapou
as bases da hegemonia decadente. Tudo o que então se faça, em nome de preservar
e restabelecer esta hegemonia, termina por ajudar a conduzir ao seu fim. Toda
tentativa de demonstração de força por parte do império termina por revelar a
sua verdadeira fraqueza. Exemplos categóricos são a derrota da OTAN na guerra
da Ucrânia e o resultado, nulo, ou inverso, das sanções impostas à Rússia e à
China. Certamente estão acelerando a superação do poder da aliança constituída
em torno dos EUA, em vez de fortalecê-la. As forças econômicas e sociais já se
desenvolveram e transformaram neste sentido, a ponto de não ter mais retorno. A
hegemonia e o imperialismo dos EUA no sistema capitalista mundial terminará e
levará junto consigo os resquícios coloniais do imperialismo europeu que
persistem ainda hoje.
Algo central neste processo de aprendizado e
desenvolvimento histórico é que as medidas, as ações, as intervenções sociais
que anteriormente foram adotadas apenas depois do pior, agora devem ser tomadas
antes. Antes das grandes crises catastróficas, como foi a depressão mundial dos
anos 1930, as medidas anticíclicas e de proteção social já estão, em parte ao
menos, em jogo. Precisamos avançar, ainda mais decidida e intensivamente, no
sentido da socialização do sistema econômico mundial. E, antes das grandes
guerras mundiais, precisamos da reconstituição e desenvolvimento dos sistemas
de decisão e governança mundiais.
É um processo que demorará tempo e se
realizará com grande dificuldade. Imagine, por um minuto, como será custoso
eliminar todas as bases militares internacionais dos EUA. São mais de 800 e
continuam aumentando. O mundo é ocupado militarmente pelos EUA. Isso terá que
ser eliminado ou submetido a uma verdadeira governança mundial. Será um
processo longo e difícil. Enquanto isto, podemos reivindicar a ideia de
cidadania mundial. Ainda que ela esteja, do mesmo modo, distante no horizonte
atual, é certamente o que nos interessa, correspondendo à integração do sistema
produtivo social mundial. Somos mundiais e queremos ser mundiais.
Fonte:
Por Paulo Fleury Teixeira, em Outras Palavras
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