Cidade
submersas e população vulnerável: o que revelam as grandes inundações no Brasil
nos últimos anos
Na
manhã de 5 de maio de 2024, o Rio Guaíba alcançou 5,35 metros e transbordou,
inundando Porto Alegre e interrompendo a rotina da capital gaúcha por semanas.
Foi o ápice de um processo já anunciado: entre abril e maio, chuvas intensas
afetaram mais de 90% dos municípios do Rio Grande do Sul, provocando 172
mortes, o deslocamento de cerca de 600 mil pessoas e prejuízos econômicos
estimados em R$ 4,6 bilhões. A imagem da cidade submersa repercutiu
internacionalmente e revelou a vulnerabilidade estrutural das cidades
brasileiras frente aos eventos climáticos extremos.
Este
artigo analisa episódios recentes de inundações no país, identifica fatores
estruturais que potencializam os impactos e discute caminhos para adaptação
climática.
- Eventos extremos
e seus impactos
Dados
do CEMADEN revelam que a maioria dos desastres climáticos está relacionada a
inundações e deslizamentos, concentrando-se em regiões densamente urbanizadas e
desiguais. O agravamento da crise climática, conforme o Relatório AR6 do IPCC
(2023), está associado à intensificação do ciclo hidrológico e ao aumento da
frequência de chuvas intensas, fenômenos que já moldam um novo regime climático
no país.
Este
mesmo relatório do IPCC (2023) mostra que eventos de precipitação extrema vêm
se tornando mais frequentes desde a década de 1950. O aquecimento global
intensifica o ciclo hidrológico, altera padrões atmosféricos e contribui para
fenômenos como o El Niño, antecipando episódios que antes ocorriam em
intervalos centenários.
A esse
novo padrão climático somam-se fatores locais, como desmatamento,
impermeabilização do solo, urbanização em áreas de risco e infraestrutura
precária. Essa combinação explica a recorrência de tragédias nos últimos anos.
Entre dezembro de 2021 e fevereiro de 2022, enchentes no Sul da Bahia e no
Norte de Minas atingiram mais de 850 mil pessoas. Em fevereiro de 2022,
Petrópolis registrou 233 mortes após deslizamentos. Em 2023, São Sebastião
enfrentou 682 mm de chuva em menos de 24 horas — quase o triplo da média mensal
— e, em 2024, o Rio Grande do Sul viveu o maior desastre climático já
registrado no país, segundo o climatologista José Marengo.
A
compreensão dos diferentes tipos de inundações é essencial para a formulação de
medidas preventivas e adaptativas. Nem toda enchente é igual – e essa
distinção importa.
- Cada região
aponta uma necessidade específica
Em São
Sebastião (2023), observou-se uma inundação pluvial, provocada por 682 mm de
chuva em menos de 24 horas, combinada com inundação costeira, já que marés
superiores a dois metros impediram o escoamento das águas para o mar. O sistema
de drenagem urbano colapsou e os solos saturados agravaram os deslizamentos em
áreas de encosta, resultando em 64 mortes. Estudo conduzido por Unicamp,
CEMADEN e outras instituições identificou o transporte de umidade da Amazônia
como fator chave para a formação desse evento extremo.
Em
Petrópolis (2022), a cidade foi atingida por uma inundação relâmpago (flash
flood), com 265 mm de chuva acumulados em apenas três horas. O volume
extremo de precipitação em terreno íngreme gerou fluxos violentos de água, lama
e detritos, provocando 233 mortes e a destruição de infraestrutura urbana. O
padrão de ocupação em encostas e a insuficiência de ações preventivas
contribuíram para a severidade do impacto, mesmo diante de alertas
meteorológicos prévios. Relatórios técnicos do Cefet-RJ indicam que grande
parte da população já enfrentava dificuldades cotidianas mesmo em dias de chuva
moderada.
Entre
2021 e 2022, o Sul da Bahia e o Norte de Minas vivenciaram uma combinação de
inundação fluvial, com rios como Jequitinhonha e Almada ultrapassando em até
sete metros suas cotas históricas, e inundação pluvial, com chuvas que chegaram
a 500 mm em 48 horas. Os prejuízos atingiram R$ 15,4 bilhões, com 33 mortos,
630 mil pessoas afetadas e colapso de barragens. De acordo com José Marengo, a
atuação anômala da Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), combinada à La
Niña e ao transporte de umidade da Amazônia, foi determinante para a
intensidade do desastre. Segundo o climatologista José Marengo, a atuação
anômala da ZCAS, aliada à La Niña e à umidade amazônica, foi determinante para
a intensidade do evento.
Já no
Rio Grande do Sul (2024), predominou uma inundação fluvial de larga escala, com
o transbordamento simultâneo de diversos rios e solos previamente saturados. O
nível do Guaíba ultrapassou o recorde histórico de 1941. As chuvas acumuladas,
somando mais de 500mm em cinco dias, foram agravadas pela atuação do El Niño e
de frentes frias estacionárias. Segundo a CNM, mais de 78% dos municípios foram
afetados e cerca de 100 mil residências sofreram danos, com impactos
especialmente severos em municípios de infraestrutura precária como Canoas,
Eldorado do Sul e São Leopoldo.
Em
comum, todos os episódios revelam a fragilidade da infraestrutura urbana
brasileira. A impermeabilização crescente do solo, a ocupação de várzeas e
a canalização de rios reduziram drasticamente a capacidade de absorção da água.
Segundo o MapBiomas, o Brasil perdeu mais de 19 milhões de hectares de
vegetação nativa nos últimos 37 anos, parte significativa em áreas
metropolitanas. Várzeas foram aterradas, margens de rios substituídas por
avenidas e muros, e muitos cursos d’água foram canalizados ou cobertos – mas a
água continua buscando seus caminhos naturais.
- Cada necessidade
aponta desafios e soluções
Nesse
contexto, repensar os sistemas de drenagem, adotar soluções alternativas de
retenção hídrica e recuperar margens de rios e bacias hidrográficas são medidas
urgentes para reduzir a exposição de áreas vulneráveis. A contínua destruição
de Áreas de Preservação Permanente (APPs) em zonas urbanas, muitas vezes
autorizada por mecanismos de compensação ambiental, compromete a resiliência
ecológica das cidades. A mata ciliar, por exemplo, desempenha papel crucial na
retenção de água e na contenção de sedimentos, sendo especialmente importante
para mitigar os efeitos de inundações relâmpago.
Essa
vulnerabilidade se agrava com a desarticulação entre políticas públicas
setoriais. Em muitos municípios, planos de uso e ocupação do solo, habitação,
saneamento e drenagem urbana operam de forma segmentada. Soluções
monofuncionais de infraestrutura cinza e de caráter emergencial predominam,
enquanto estratégias de adaptação sistêmica permanecem secundarizadas.
Municípios de pequeno e médio porte, com menor capacidade institucional e
técnica, enfrentam maiores desafios para estruturar respostas transformativas e
duradouras.
Nesse
cenário, as Soluções Baseadas na Natureza (SbN) despontam como alternativas
mais resilientes. Em vez de conter a água, essas soluções buscam integrá-la ao
território, promovendo infiltração, retenção e recuperação dos ciclos
hidrológicos. Jardins de chuva, bacias de infiltração, telhados verdes, parques
lineares, restauração de matas ciliares e proteção de manguezais são exemplos
aplicáveis em contextos urbanos diversos.
Relatórios
internacionais, como o da ONU sobre Água (2018), enfatizam que a restauração de
ecossistemas não pode mais ser tratada como ação complementar. Quando bem
planejadas, as SbN reduzem picos de cheia, melhoram a qualidade da água e
aumentam a resiliência urbana. Em cidades como Curitiba e Recife, intervenções
como parques lineares e sistemas integrados de retenção hídrica contribuíram
para a redução de alagamentos frequentes.
Apesar
de sua eficácia, as SbN enfrentam entraves consideráveis no Brasil. Um dos
principais é a lacuna entre os instrumentos de planejamento urbano e as
políticas de adaptação climática. Os projetos de drenagem e manejo de águas
pluviais raramente incentivam soluções multifuncionais; muitas vezes, os
projetos ainda seguem uma tradicional, voltada para obras de curto prazo.
Soma-se a isso o desmonte das estruturas de planejamento ambiental em diversos
estados e a baixa prioridade política dada à integração territorial e à justiça
climática. A informalidade urbana e o déficit habitacional também elevam o grau
de exposição da população mais vulnerável. Medidas como agricultura urbana,
manejo sustentável do solo e fortalecimento da governança local podem contribuir
para ampliar a resiliência comunitária e territorial.
- A ciência tem
feito alertas consistentes
Tecnologias
de monitoramento e alerta – como sensores, aplicativos e sistemas em tempo real
– já mostram resultados promissores em salvar vidas. No entanto, seu alcance
ainda é limitado. Conforme relatório do MCTI, o fortalecimento da capacidade
técnica dos municípios e a promoção da educação ambiental são caminhos
estratégicos para reduzir desigualdades na resposta a eventos extremos. A
criação de redes locais de cuidado e resposta pode ser tão relevante quanto
grandes investimentos em infraestrutura física.
As
inundações que marcaram o país nos últimos anos não são eventos isolados, mas
revelam a atual crise climática e a vulnerabilidade estrutural de nossas
cidades. A fragmentação entre planos, a predominância de ações emergenciais e a
falta de uma abordagem comunitária no planejamento resultam em respostas
tardias e pouco eficazes a longo prazo. É necessário construir um pacto urbano
e ambiental que una políticas de uso do solo, conservação, infraestrutura
habitacional adaptativa e justiça territorial, com participação social efetiva.
A próxima inundação já está prevista – e a diferença entre tragédia e
transformação depende das decisões que escolhemos tomar.
Fonte:
((O))eco
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