O Brasil pode sair do Mapa da Fome até 2026,
mas como fazer para não voltar?
“Um
plano complexo, completo e ambicioso”, convergem especialistas ao analisar
o 3º Plano Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan), lançado pelo governo federal no
último dia 5 de março, e que prevê a saída do Brasil do Mapa da Fome,
monitorado pela Organização das Nações Unidas para a
Alimentação (FAO), até 2026.
No
entanto, o país já conseguiu esse feito em 2014 e, menos de uma década depois,
retornou a um panorama pior do que tinha na década dos 2000. Algumas medidas
previstas no 3° Plansan projetam efeitos imediatos, como a redução do
preço dos alimentos, por exemplo. Outras apontam para mudanças estruturais
no modelo de produção
agroalimentar brasileiro. Nesse sentido, Yamila Goldfarb, presidente da Associação Brasileira de
Reforma Agrária (Abra), lembra que para garantir uma segurança alimentar
plena é preciso medidas estruturantes, além daquelas adotadas em períodos de
emergência.
“Claro
que é fundamental ter uma valorização do salário-mínimo, de distribuição de
renda, o Bolsa Família, são programas
fundamentais para as pessoas terem dinheiro para acessar o alimento. Só que se
a gente não tem toda uma outra parte voltada à produção e à disponibilidade
desse alimento, que são outras duas dimensões da segurança alimentar. Qualquer
alteração conjuntural, como crise climática, uma greve de
caminhoneiros que fecha as rodovias, uma outra pandemia ou uma crise de
comércio que impeça importação de determinados alimentos porque algum país
impôs alguma medida restritiva, faz com que rapidamente a gente perca essa
estabilidade no acesso ao alimento” destaca.
Outro
aspecto estruturante destacado por Goldfarb é a necessária
desconcentração de terras no país. A meta do governo, segundo o plano, é
assentar 340,8 mil novas famílias até 2027, sendo 103 mil já em 2025. A questão
é, diz a presidente da Abra, com qual recurso? Ela lembra que muito pouco
foi feito nos últimos anos.
“A
gente teve um verdadeiro desmonte do Incra. Tem estados onde o cadastro
das famílias acampadas foi apagado no governo Bolsonaro. Esse é o nível de
reconstrução que tem que ser feito para poder efetivar essa política. Em muitos
estados, a reforma agrária virou fornecer título privado para as famílias que
estão assentadas, o que é uma contrarreforma agrária, porque uma vez que tem o
título, o que vai acontecer é uma reconcentração de terras”, alerta a
especialista. “A gente tem uma verba ridícula do Incra. Então nós temos
essa meta [de famílias assentadas], que bom, é uma meta respeitável. Mas a
gente cai sempre nessa questão: e aí vai, fazer isso como? Com que recurso?”,
questiona.
Na
mesma linha, a integrante do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de
Agroecologia (ANA), ex-presidente do Consea e pesquisadora da
organização Fase Solidariedade e Educação, Maria Emília Pacheco, considera que, em
matéria de reforma agrária, “há algumas propostas estruturantes, mas sem o peso
necessário para se contrapor ao modelo dominante agroexportador de
commodities“. A pesquisadora destaca uma instrução normativa do Incra, durante
o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que facilitou a
grilagem de terras da reforma agrária para a instalação de empreendimentos
minerários, que também ameaçam a produção de alimentos.
“Há uma
instrução normativa do Incra nº 112, de 2021, portanto, do governo de
[Jair] Bolsonaro, que estabelece regras para o uso de áreas de
assentamento por empreendimentos de atividade de mineração, energia e
infraestrutura. Imaginem! Então, no Brasil hoje são cerca de 8.300
assentamentos que são alvos de requerimento minerário, e dentre eles, cerca de
1.480 projetos, o que corresponde a 44%, estão na Amazônia Legal”, diz Pacheco,
ressaltando que os movimentos de agroecologia tem feito pressão para a
revogação da norma. “Isso está associado a uma vulnerabilização das comunidades
tradicionais que ficaram mais vulneráveis à grilagem de terra”, alerta.
A
articulação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan)
com o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social
(Suas), contemplada no 3º Plansan, também é apontada como essencial para a
continuidade das políticas previstas no plano. Outro desafio, aponta a
professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora do
Grupo de Pesquisa Nutrição e Pobreza do Instituto de Estudos Avançados da USP,
Semíramis Domene, é universalizar o Sisan, que tem atualmente cerca de 800
municípios integrados ao sistema, dos 5.570 mil que existem no Brasil.
“A
adesão ao Sisan já traz um comprometimento da gestão local em
estabelecer metas e instalar o seu conselho de segurança alimentar e
nutricional, sua câmara intersetorial de segurança alimentar a preparar o seu
plano de segurança alimentar e nutricional. Essas medidas todas poderiam ajudar
imensamente ao fortalecimento desse circuito”, destaca a professora,
mencionando ainda a manutenção das políticas de transferência de renda.
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Modelo de produção agroalimentar
Para a
ex-presidente do Consea, Elisabetta Recine, “é preciso ser vantajoso
produzir comida para o Brasil”. Ela se refere precisamente ao modelo econômico
que opera sobre o sistema de produção agroalimentar brasileiro. Desde a década
de 1990, produtores de commodities, sobretudo grãos
para exportação, recebem enormes benefícios fiscais do Estado. Com isso, o país
foi pouco a pouco perdendo área cultivada para a produção de alimentos, dando
lugar ao plantio de soja e outras matérias-primas negociadas no mercado internacional.
Para Goldfarb,
não há como estabelecer uma situação de soberania alimentar sem mexer nos
interesses do grande capital do agronegócio. “Não tem como a gente pensar em
ter um desenvolvimento nacional, sustentável, a gente ter soberania energética,
soberania alimentar, sustentabilidade de fato, lidar com a crise climática, promovendo a
resiliência do nosso sistema produtivo, se a gente não enfrenta esse ponto que
é base da nossa economia: exportar commodities para fazer superávit para
balança comercial”.
Goldfarb considera
que a redução de impostos de importação para determinados produtos, anunciada
pelo governo no começo do mês, são importantes para uma redução imediata da
inflação sobre os alimentos, no entanto, aponta limites na medida e defende que
se altere as regras para a exportação, garantindo dessa forma o abastecimento
interno. “A gente não pode fazer essa discussão descolada de um projeto que é
de enfrentamento do modelo econômico”, afirma. “Falar em cotas de exportação
parece um ‘bicho de 7 cabeças’, ‘intervencionismo na economia’. É preciso dizer
que o Estado tem o dever planejador, sem medo, sem achar que isso é uma
intervenção. Se a gente não pensar nesse tipo de coisa, tudo é emergencial e
nada é sustentável no tempo”, alerta.
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Papel dos pequenos agricultores
Outro
aspecto fundamental, na avaliação das especialistas, é o fomento à agricultura
familiar, que diferentemente do agronegócio, tem sempre um orçamento
reduzido para a implementação de sistemas produtivos sustentáveis. “Não dá para
negar que existe uma desigualdade de apoio [do Estado] e a gente precisa lidar
com isso. Não é um apoio só do ponto de vista do orçamento público, mas também
uma desigualdade, por exemplo, no acesso à assistência técnica, no acesso aos
mercados”, destaca Recine.
“É uma
questão absolutamente lógica. O agricultor ou a agricultora vai tomar suas
decisões considerando o retorno que ela vai ter. As pessoas não estão
trabalhando por esporte, então elas precisam ter um retorno e uma garantia de
que elas vão vender aquele produto, que aquele produto vai ser vendido num
preço adequado, que considere o que ela utilizou no processo de produção e que
também gere um valor para que ela possa reinvestir no seu processo ou ter
melhores condições de vida etc.”, ressalta. “A gente precisa de um Plano Safra que realmente
fortaleça a produção de alimentos da nossa cesta básica”, completa a
ex-presidente do Consea.
O
último Plano Safra, lançado em julho de 2024, liberou R$ 475 bilhões em
crédito, sendo R$ 400,58 bilhões para os grandes empresários e R$ 74,98 bilhões
para os pequenos agricultores, uma diferença de mais de 400%, o que, de acordo
com a professora Semíramis Domene, aponta a um subfinanciamento do
setor que mais precisa de incentivos do Estado.
Outro
ponto destacado de forma unânime pelas entrevistadas foi a necessidade de
ampliação e fortalecimento do sistema nacional de abastecimento, que também tem
um plano próprio que vem sendo desenvolvido pela Companhia Nacional de
Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária
(Mapa). Segundo Goldfarb, houve um completo desmonte do sistema durante o
governo anterior, apoiado por setores do agronegócio.
“Porque
que não tem silo [Construções de armazenamento de grãos, sementes e cereais]?
Porque teve um processo de privatização de todo sistema de abastecimento dos
silos. Os armazéns da Conab, tudo isso foi sendo desmontado. Porque,
afinal de contas, para os liberais, o Estado é muito grande”, critica.
Além da
recuperação dos armazéns e centrais de abastecimento, como
as Ceasas, Domene defende uma maior proximidade entre produtores
e consumidores.
“Quando
você tem um distanciamento entre a produção e o consumo, esses intermediários,
varejistas e distribuidores, consomem uma parte importante dos recursos que
poderiam estar na mão do produtor”, destaca.
Já Recine propõe
que seja fomentada a criação de uma rede de abastecimento com foco nos
territórios e aliada aos desafios ambientais.
“A
gente precisa incentivar que haja uma rede de abastecimento. Em que uma pequena
mercearia, uma pequena quitanda, um pequeno mercado nas periferias de todas as
cidades do Brasil, tenha uma cesta de produtos que sejam saudáveis e que tenham
sido produzidos o mais perto possível, para gerar um menor impacto
ambiental”,
destaca Recine.
O plano
estabelece oito diretrizes estratégicas para a superação da insegurança
alimentar no país, como o fortalecimento do Sisan com governança
participativa e intersetorial, a superação da fome por meio de acesso à renda e
políticas públicas, a garantia de acesso à terra e à água, a promoção de
sistemas alimentares resilientes diante das mudanças climáticas, o fomento à
produção de alimentos saudáveis por agricultores familiares e comunidades
tradicionais, entre outras.
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Emergência climática
Maria
Emília Pacheco chama a atenção para a captura da agenda climática por setores
econômicos pouco interessados na produção sustentável de alimentos, e sedentos
por recursos, como é o caso do mercado de carbono.
“Não há
mais forma de expropriação de terra como havia antigamente, mas sim um controle
dos territórios e as territorialidades com os chamados créditos de carbono. Então vejam que nós
temos uma situação muito mais complexa. A chamada terra improdutiva deixa de
ser improdutiva porque ela passa a ser objeto de créditos de carbono. E
essas grandes empresas, com o poder financeiro enorme que têm, acabam impondo uma
nova ordem social sobre as comunidades tradicionais e, dessa forma, passa a
predominar o valor de troca e que se ignora o valor de uso das florestas pelos
povos da floresta”, destaca.
Segundo
a professora, “é preciso incorporar ao debate sobre o enfrentamento da fome, da
insegurança alimentar grave, como no caso da Amazônia” questões de
natureza econômica e ambiental que, de acordo com sua avaliação, “estão
provocando novas situações que reproduzem a fome”.
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Contexto internacional: “Dá pra piorar”
A
professora Semíramis Domene aponta elementos da conjuntura
internacional sobre os quais o governo precisa se atentar, na busca pela
segurança alimentar da população. “Nós estamos agora num momento que é super
emblemático para mostrar para a gente como as coisas podem ficar piores quando
a gente já acha que não é possível piorar mais”, destaca.
“Então
veja: essa guerra fiscal entre América do Norte, Europa,
evidentemente China, traz efeitos para o país, na medida em que os insumos
que aqui no Brasil são produzidos são empregados por esses países para a
produção de diversas coisas, inclusive alimentos. Então todo mundo diz: ‘Ah,
como é que subiu o arroz, Se a gente está exportando arroz? Como é que subiu a
carne, se a gente exporta a carne? Então, a dolarização dessa parte da economia
internacional relativa aos alimentos traz impactos internos e realmente nós
precisaríamos ter uma estrutura de produção voltada, portanto, ao abastecimento
interno, que fosse independente desses movimentos internacionais”,
avalia Domene, que destaca o programa Brasil Sem Fome, o Plano
Nacional de Abastecimento e o Plano Safra da Agricultura
Familiar como políticas que devem ser valorizadas.
“Eu
enxergo que são esses os caminhos para que você fortaleça de fato a produção
interna e garanta uma proteção diante desses efeitos internacionais”, completa.
Essa
independência em relação à dinâmica da economia global e dos interesses do
grande capital é o que as especialistas chamam de soberania alimentar.
“A
gente precisa investir fortemente num processo de soberania alimentar, a gente
precisa ter garantida a produção de alimentos da nossa cesta básica, que tenham
um amortecimento de questões internacionais, seja por especulação, seja por
aumento de insumos, o que nos dará uma maior certeza de que a gente não vai ter
situações extremas de desabastecimento, que a gente não vá conseguir controlar
a inflação de alimentos, por exemplo”, destaca Elisabetta Recine.
Diante
dos avanços limitados do plano, Pacheco defende que haja uma grande
mobilização nacional por uma “inversão de prioridades” em matéria de produção
alimentar. “É preciso que a gente continue a lutar pela inversão de
prioridades. O movimento agroecológico, combinado com o movimento pela
soberania alimentar, com a perspectiva feminista e antirracista, não arredará
os pés desta luta que requer muita coragem e determinação”, afirma.
Fonte: Brasil de Fato
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