Sexo e
magia: as histórias de perseguição a 'pecadores' durante a Inquisição no Brasil
Em
pelo menos quatro ocasiões entre os séculos 16 e 18, padres vindos da
Europa desembarcaram no Brasil Colônia com um único objetivo: buscar e julgar
"delitos", do ponto de vista da Inquisição, como a prática do judaismo, ritos indígenas e a homossexualidade — tudo aquilo
que desafiasse a "pureza" da fé católica.
O
temido Tribunal do Santo Ofício, que durante os
séculos de Inquisição aterrorizou pagãos e aqueles que não
seguiam estritamente o catecismo na Europa, também teve seus tentáculos
nas colônias de reinos fortemente ligados
à Igreja Católica, como Portugal.
No Brasil colonial, padres visitadores
foram encarregados de inspecionar os costumes na colônia portuguesa e julgarem
casos em quatro períodos: de 1591-1595; de 1618 -1620; no fim de 1620; e de
1763-1769.
A
primeira dessas empreitadas, conduzida pelo padre português Heitor Furtado de
Mendonça, foi transformada em uma graphic novel (romance
gráfico) recém-lançada: As Confissões da Bahia em Quadrinhos, roteirizada
por Alexey Dodsworth e Cristina Lasaitis.
"Observamos
que especialmente na Bahia havia uma perseguição a homossexuais de ambos os
sexos. Além disso, o paganismo dos indígenas deixou o padre
visitador especialmente escandalizado", conta Dodsworth, em entrevista à
BBC News Brasil.
O
roteirista diz que, para a obra, realizou pesquisas em relatos feitos pelos
próprios religiosos durante o
trabalho inquisitório no Brasil. Parte dos estudos foi feita na Torre do Tombo,
o arquivo nacional português.
O
historiador Aldair Carlos Rodrigues, professor na Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), explica como funcionavam as visitas dos padres da
Inquisição.
"Eles
se instalavam normalmente nas sedes dos bispados e regiões mais importantes,
sendo recebidos pelo bispo e autoridades locais", afirma Rodrigues, autor
do livro Igreja e Inquisição no Brasil.
"Em
seguida, espalhavam editais que eram lidos nas paróquias conclamando a
população para fazer as denúncias."
- Mais de mil
investigados, 29 condenados à fogueira
Os
relatos registrados pelos religiosos são tão ricos em detalhes que Dodsworth
recorda que, na primeira vez que se deparou com alguns deles, em 1997,
divertiu-se com a leitura ao lado de amigos.
"Era
muito engraçado. Engraçado hoje em dia, claro, porque na época, para quem foi
perseguido, foi algo que significou muito sofrimento", recorda.
"Os
padres detalhavam a vida sexual das pessoas em um nível de pormenores que mais
parecia um livro erótico."
Não
há dados totalmente precisos de quantos foram os investigados pela Inquisição no Brasil.
Segundo
Dodsworth, isso em partes se explica porque havia o "período de
graça": um prazo de 30 dias, desde a chegada do padre visitador, em que as
pessoas eram convidadas a se autodenunciarem, recebendo por isso o perdão ou
punições mais brandas.
Especialistas
também apontam que há dados que se perderam, sobretudo da terceira visita
inquisitorial ao Brasil Colônia.
Segundo
pesquisa da historiadora Anita Novinsky (1922-2021), professora da Universidade
de São Paulo (USP) e autora do livro Inquisição: Prisioneiros do Brasil,
foram investigados pelo menos 1076 residentes do Brasil Colônia e 29 acabaram
condenados à fogueira — para isso, eram remetidos a Portugal e lá executados.
- Histórias
emblemáticas
As Confissões da Bahia em Quadrinhos traz detalhes
de algumas das histórias da Inquisição em tempos coloniais.
Por
exemplo, as práticas do movimento messiânico Santidade de Jaguaripe, uma
prática religiosa sincrética criada por indígenas tupinambás fugitivos de
uma missão jesuítica.
Os
ritos foram praticados entre 1580 e 1585 na Bahia. O Santo Ofício colheu
depoimento do senhor de engenho Fernão Cabral de Taíde, em cuja fazenda o grupo
se assentou.
A
prática religiosa era liderada pelo indígena Antônio Tamandaré, que se
autointitulava Papa. Sua mulher, também indígena, era chamada de "mãe de
Deus".
O
casal e seus seguidores se consideravam santos.
"Os
indígenas pegaram o rito da Igreja Católica e o redesenharam, criando um rito
pagão que mistura elementos indígenas e católicos. Acho esta história a mais
emblemática", diz o roteirista Dodsworth.
"Parece
ser o precursor da umbanda."
Segundo
Dodsworth, os seguidores do movimento Santidade de Jaguaripe contestavam o
argumento dos portugueses de que era preciso trabalhar para ter prosperidade.
"Afirmavam
que a natureza dava tudo. Para que trabalhar tanto? Diziam que os portugueses
mentiam para que eles trabalhassem até morrer", conta.
Também
está no livro, que traz ilustrações de sexo explícito, o emblemático caso
de Felipa de Sousa, a primeira mulher
condenada por lesbianismo em território brasileiro.
Acusada
de ter se relacionado com seis mulheres, ela acabaria açoitada em público e
degredada. Por não se confessar, Felipa de Sousa acabou recebendo uma pena
maior.
"Ela
foi humilhada e exilada, Mas não se confessou. Foi apontada pelos outros",
diz o roteirista.
"Ela
se defendeu dizendo que não havia feito nada demais porque não tinha se deitado
com alguém que não quisesse. Na cabeça dela, não existia a ideia de que a
prática de sexo com outras mulheres fosse algo errado."
Diferente
de Felipa de Sousa, houve quem preferisse se confessar. Um deles foi justamente
um sacerdote, o padre Frutuoso Álvares — um português que era vigário em
Matoim, na Bahia.
O
padre recorreu ao "período da graça", pois temia que outros homens o
delatassem, relata Dodsworth.
Seu
suposto crime era uma coleção de casos homossexuais.
"Confessou
ter cometido a torpeza de tocamentos desonestos com 40 homens mais ou menos, ao
longo de 15 anos", diz o registro de sua autodeclaração.
Dodsworth
destaca ainda o caso de uma mulher considerada bruxa porque "enfeitiçava
homens", fazendo com que eles tivessem "problemas de ardência
anal". Por isso, era conhecida como Maria Arde-lhe-o-Rabo.
"Muitos
morriam por disenteria. Ela provavelmente envenenava esses homens", conta.
Suas
práticas foram denunciadas por algumas antigas "clientes": mulheres
vítimas de homens violentos ou as mães delas.
"Estamos
falando de uma época em que uma mulher que fosse casada com um homem horrendo
não tinha a escolha de se divorciar", explica Dodsworth.
"Mas
ela podia enviuvar…"
Assim,
se a mulher não podia escapar do casamento por um dispositivo legal, a única
maneira de se desvencilhar do mau marido era encomendando sua morte.
Outra
história mencionada por Dodsworth é a de Isabel Antônia, conhecida como "a
do falo de veludo".
"Trata-se
de o primeiro relato documento do uso de um dildo", descreve o roteirista.
"Ela
entalhava pênis de madeira, forrava com veludo e utilizava esses falos
artificiais em suas relações carnais."
Bissexual,
ela lançava mão brinquedinhos com ambos os sexos.
Segundo
o antropólogo e sociólogo Luiz Mott, autor do livro Bahia: Inquisição e
Sociedade e fundador da organização não-governamental Grupo Gay da
Bahia, Isabel Antônia morreu antes da visita do padre inquisidor ao Brasil.
Sua
história, portanto, foi registrada pelos autos da Inquisição por causa de
relatos de usuários dos tais falos artificiais, vistos como
"pecadores".
Ela
mesma não foi julgada.
- 'Dificilmente
alguém saía totalmente inocentado da Inquisição'
Aldair
Carlos Rodrigues afirma que o "delito" mais perseguido, no contexto
da Inquisição no Brasil, era a prática do judaísmo.
"O
delito mais perseguido era o judaísmo supostamente praticado pelos
cristãos-novos, os judeus convertidos à força ao catolicismo", detalha o
historiador.
Depois,
vinham a bigamia, as proposições heréticas (falar mal das doutrinas católicas)
e a sodomia (sobretudo o sexo anal, independente se praticado por casais de
homem-mulher ou homem-homem).
A
chamada solicitação (assédio sexual cometido por padres no confessionário),
feitiçaria, superstição e blasfêmias também eram fortemente reprimidas.
O historiador Angelo Adriano
Faria de Assis, professor na Universidade Federal de Viçosa (UFV) e um dos
organizadores do livro A Inquisição Portuguesa 200 Anos Depois,
afirma que "dificilmente alguém saía totalmente inocentado da
Inquisição".
"Podia
ser prisão perpétua, podia ser degredo [exílio], podia ser rezar e se comungar
nas igrejas durante determinadas datas do ano. As penas variavam muito
dependendo do tipo do crime", explica Assis.
No
caso das penas capitais, em que os condenados eram queimados ou enforcados, era
a própria Justiça secular quem executava a sentença.
Caso
o acusado morresse antes do processo ou da sentença, queimava-se um boneco
representando a pessoa ou uma imagem dela.
Luiz
Mott, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), encontrou na Torre do
Tombo quatro livros manuscritos chamados Reportórios do Nefando.
Neles,
há registros em ordem alfabética dos nomes e dados de pessoas comprometidas com
o dito "mau pecado". Ou seja, práticas homossexuais.
Entre
1587 e 1794, foram denunciados 4419 moradores do Brasil Colônia por conta desse
"delito", diz Mott.
- Igreja e Estado
em simbiose
Mas
se o Tribunal do Santo Ofício era um organismo da Igreja Católica, como ele
afetava os que não eram católicos?
Aí
que está o pulo do gato da história: todo mundo precisava ser católico, até
mesmo quem não necessariamente sabia o que era o catolicismo — como os indígenas e africanos escravizados.
"A
Inquisição só podia perseguir as pessoas batizadas, que estavam todas sob a
jurisdição da Igreja", explica Rodrigues. "Mas como Portugal era uma
monarquia católica, Igreja e Estado não se separavam. Então, os súditos
deveriam todos ser católicos."
O
historiador destaca que a justificativa ideológica da Coroa para a escravidão
era promover a expansão da fé católica no mundo. Africanos no Brasil, por
exemplo, deveriam ser batizados.
Por
isso, africanos e indígenas
foram afetados pela Inquisição.
"No
caso dos negros, muitos locais de culto foram invadidos e queimados",
comenta Rodrigues, lembrando que vários desses casos não chegaram a se tornar
processos e, portanto, fogem das estatísticas da Inquisição no Brasil.
"Boa
parte das denúncias contra os africanos se referiam ao uso de bolsas de
mandinga, que eram amuletos que os africanos utilizavam para fechar o corpo e
se protegerem da violência do mundo escravista Atlântico. Essas bolsas poderiam
conter pedaços de orações católicas, unha, cabelo, pedras e minerais variados,
desenhos e etc", comenta Rodrigues, acrescentando que "muitas
práticas culturais indígenas" também foram "associadas à
demonização".
Fonte: BBC News Brasil
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