‘Adolescência’,
incels, redpills: a produção de odiadores de mulheres na internet
Jamie
Miller, um menino de 13 anos, é preso nos primeiros minutos da série Adolescência, da
Netflix,
acusado de assassinar uma garota de sua escola. Policiais arrombam a porta da
sua casa e o encontram acuado na cama, tão assustado que faz xixi nas calças.
Ele é pequeno, tem feições infantis e chora copiosamente dizendo que não fez
nada de errado. O espectador começa a suspeitar que houve algum erro – até que
os investigadores mostram imagens de Jamie cometendo o homicídio.
Afinal, como um garoto recém-saído da
infância, com uma família relativamente estruturada e sem histórico de mau
comportamento pode chegar a esse ponto? Nos episódios seguintes, a série vai
passando pelas várias camadas de como ocorre um processo de radicalização de
modo quase imperceptível para as pessoas ao redor.
Jamie, assim como muitos outros meninos da
sua faixa etária, se vê perdido em um mundo em que os homens deixaram de ser o
centro das relações de poder. A reação, para alguns deles, é entrar em grupos
digitais masculinistas redpill [referência ao filme Matrix,
uma metáfora para homens que “tomam a pílula vermelha” e começam a enxergar que
são injustiçados] ou incel [abreviação para celibatários
involuntários, grupo de homens que não conseguem ter relacionamentos afetivos e
colocam a culpa do fracasso nas mulheres].
Antigamente, estes espaços eram restritos a
fóruns do submundo da internet, mas hoje estão na superfície, com
influenciadores com milhões de seguidores e conteúdo altamente capilarizado. O
discurso machista aparece suavizado, camuflado em humor ou auto-ajuda, e como
uma resposta fácil a problemas complexos. Assim, se um menino sofre uma
frustração amorosa, ele pode se sentir acolhido em um canal que diz que todas
as mulheres são interesseiras e que o mundo pós-feminismo prejudica os homens,
por exemplo.
Maria Carolina Medeiros, professora da
Fundação Getulio Vargas (FGV) Comunicação e especialista em socialização
feminina, e Letícia Sabbatini, pesquisadora da Escola de Comunicação da FGV
focada na interseção entre gênero, violência e plataformas digitais, analisam
como esses discursos se tornam sedutores para meninos e adolescentes, o papel
das redes sociais, os desafios na construção de novas referências de
masculinidade – e também os sinais de alerta para pais e educadores
identificarem quando um jovem está sendo radicalizado.
- A
série “Adolescência” conta a história de um garoto de 13 anos que
assassina uma menina após ter se tornado um incel. Como
acontece o processo de radicalização de um jovem com uma vida aparentemente
bem estruturada?
Letícia Sabbatini – Para a gente entender
esse processo, é preciso reconhecer como a misoginia está naturalizada em nosso
cotidiano. Um homem que estupra não é um monstro isolado escondido num beco
escuro, ele é um parente, uma pessoa próxima. A misoginia não é exceção,
ela é parte da regra. E não é simplesmente ódio às mulheres, é um sistema que
está entranhado em nossas relações pessoais de forma camuflada, muitas vezes
como uma piada, um conselho ou até um comentário bem intencionado.
A radicalização acontece quando essa
misoginia encontra um ambiente que a amplifica e a legitima. Hoje, a misoginia
vem ganhando novas roupagens, mais moderna, jovem, numa linguagem de meme. O
que antes ficava restrito a fóruns do submundo da internet, agora aparece em
vídeos com milhões de visualizações, com influenciadores carismáticos que têm
um discurso machista, mas que muitas vezes é vendido com rótulo de
desenvolvimento pessoal.
Esses adolescentes passam a acreditar que
seriam vítimas de um sistema que estaria favorecendo mulheres. É um terreno
fértil para a radicalização e o discurso incel, que transforma
uma frustração afetiva em um ressentimento que muitas vezes se torna violência
concreta.
- Por
que o ambiente das redes favorece tanto a reprodução de conteúdos
misóginos?
LS – O caminho para a radicalização não
acontece por acaso, ele é também sustentado, incentivado e monetizado pelas
plataformas digitais. A lógica dessas empresas não é a de proteger os seus
usuários, mas a de promover um engajamento que mais se traduza em lucro, mesmo
com conteúdos que promovem ódio. Temos que parar de tratar como casos isolados.
Esses grupos da chamada machosfera são a ponta mais visível de uma cadeia de
conteúdos e interações misóginas que é mais ampla e muito acessível a qualquer
garoto.
O ambiente digital complexifica fenômenos que
já existem na nossa sociedade. Com a internet, passam a existir novas formas de
violentar as mulheres, com comentários em fotos, campanhas de ódio, exposição
sexual não consentida, entre outros. E você potencializa nas mulheres um medo
de violência. O medo que as mulheres têm ao sair de casa, por exemplo, se torna
medo mesmo dentro de casa, porque com a internet essas violências vão ao
encontro delas mesmo num espaço que deveria ser seguro. Ao mesmo tempo, esse tipo
de violência também é trivializada, vista como menos ameaçadora porque não
envolve um contato físico direto.
Além disso, a mesma estrutura que amplifica a
violência também dificulta a responsabilização. Muitas vezes a violência é
tratada como uma brincadeira, uma forma de expressão, e o ambiente das redes é
visto como um espaço informal, quase sem leis, onde reina uma sensação de
impunidade reforçada pelo anonimato, regras de moderação ineficazes.
- Por
que meninos costumam ser seduzidos por esse discurso?
Maria Carolina Medeiros – Isso acontece no
contexto de avanço dos direitos das mulheres, em que os homens passaram a se
sentir mais perdidos do que nunca. E aí aparece o questionamento: qual o papel
dos homens nessa nova sociedade que se desenha?
Primeiro, a gente tem que pensar que os
papéis que a gente convencionou a chamar de papéis de gênero, mas que eu chamo
de papéis sociais, não são inatos. Na década de 1930, a antropóloga Margaret
Mead já dizia isso. Ela estudava tribos diferentes e mostrava que, em um lugar,
as pessoas se comportavam como a sociedade ocidental compreende os papéis de
homem e mulher. Em outra, todos se comportavam como o que se espera dos homens.
E, na terceira, eram sinais trocados.
A gente deveria entender que alguns signos
são de performance. Quando a Simone de Beauvoir diz que ninguém nasce mulher,
se torna mulher, ela não está dizendo que se você assimilar signos femininos,
você será uma mulher. Ela quer dizer que a mulher passa a vida toda tendo que
ter comportamentos que confirmam a sua feminilidade. A feminilidade e a
masculinidade não são intrínsecas, elas são papéis sociais.
Então o homem que pinta as unhas, que usa
saias, que diz que se solidariza com a luta das mulheres, nada disso por si só
desconstrói uma masculinidade.
Outro problema é a falta de referências. Por
que se a gente entende hoje que ser o machão que não chora já não faz mais
tanto sentido, então qual é a solução? A gente vive em sociedade e precisa de
uma forma de classificação para nortear o nosso ser e o nosso estar no mundo.
Todo mundo precisa, senão a gente não tem um denominador comum. As mulheres
foram lutando para adquirir novos significados na sua existência, com o
trabalho, com uma vida fora do lar também valorizada. Mas os homens continuaram
no mesmo lugar.
- Como
podemos trabalhar o sentimento de rejeição de meninos e homens sem que
eles caiam no movimento masculinista? E, também importante, como fazer
isso sem dar mais trabalho às mulheres?
MCM – Para mim, o ponto central é que a ideia
de desconstrução da masculinidade que se tem hoje está equivocada. Os homens
que pretendem educar outros homens volta e meia se mostram uma farsa. Eles se
mostram como homens que estão desconstruindo algumas coisas, mas no final usam
isso para se beneficiarem, porque a socialização masculina é autocentrada. Ela
é feita, como diz a Simone de Beauvoir, para o homem ser o sujeito no mundo e a
mulher ser o outro, que só se torna sujeito a partir da validação masculina.
Então tem um modo de ser e estar no mundo que a criança aprende desde muito
pequena.
A menina, desde pequena, é ensinada a
agradar. A agradar o pai, o olhar masculino, a se enfeitar, a não experimentar
o seu corpo – por exemplo, ela é desencorajada de subir numa árvore, ela é
desencorajada da própria masturbação, que é muito comum entre os meninos.
Então, antes de pensar para onde os meninos estão indo, eu penso na cultura.
Eu realmente não acho que nós, mulheres,
temos que fazer com que os nossos desejos caibam no mundo que os homens
entenderam que era para eles. Existe uma tensão nisso, não tem como fugir. Não
se trata de odiar os homens, mas não se faz uma omelete sem quebrar os ovos.
Os próprios homens devem criar novas
referências de masculinidade. Entender que pintar unha, usar saia, nada disso
significa ser mais ou menos homem, nem mais ou menos desconstruído. E nem ser
de um determinado espectro político te transforma no aliado das mulheres.
Eu costumo dizer que um homem pobre, negro,
periférico, num trabalho precarizado, provavelmente está numa situação melhor
do que a mulher dele, que provavelmente está tendo que acordar mais cedo para
passar o uniforme dele, fazer marmita, deixar comida para os filhos, levar os
filhos para escola e por aí vai.
- Recentemente, publicamos matérias sobre
um homem que cobrava quantias vultosas para dar palestras
como coach de masculinidades, mas, ao mesmo tempo, praticava atos
machistas e deu calote em bastante gente. Ele usava o discurso para se
blindar de suspeitas. Por que homens se mostram como “desconstruídos” para
obter vantagens? Como se proteger dos golpistas?
MCM – É porque eles já entenderam que para
uma mulher que é ciente do seu protagonismo no mundo, essa velha masculinidade
não vai mais funcionar. Aí quando aparece um tipo aparentemente desconstruído a
mulher se desarma, acha que está lidando com um cara solidário com a luta das
mulheres, mas pode ser um golpista. Acho que as mulheres não precisam viver
numa paranoia, mas que isso não seja suficiente para a mulher achar que tem um
aliado. Porque, no final das contas, muitas vezes é para reproduzir os mesmos
modelos de sempre, mas dizendo que aquilo é para o bem da mulher.
Acho que o cerne de tudo é as mulheres serem
mais autocentradas e conseguirem ter ferramentas para fazerem suas próprias
escolhas, independentemente do que os homens estão apresentando. É um desafio
diário, porque a gente não é socializada dessa forma, a gente é socializada
para a validação masculina.
- Que
sinais devo notar para saber se meu filho está envolvido em grupos
masculinistas?
LS – Identificar que um jovem está iniciando
um processo de radicalização exige atenção a sinais que nem sempre são
explícitos. A entrada nos grupos não começa com um discurso de ódio
escancarado, mas sim com conteúdos que parecem inofensivos, que funcionam como
porta de entrada. Mas existem alguns sinais que podem chamar a atenção,
como uma mudança na linguagem do adolescente. Perceber o uso de expressões que
são características, como “feminazi”, ou comentários que mulheres só ligam pra
dinheiro, entre outros. Também a criação de uma visão distorcida sobre gênero
ou afeto, se o jovem começa a falar com desprezo sobre meninas, ou demonstra
ressentimento em relação a relacionamentos.
É comum que esses jovens passem a consumir
certos conteúdos de forma repetitiva e até ritualista, como vídeos de
influenciadores que reforcem a ideia de que o mundo é injusto com os homens.
São grupos que oferecem acolhimento e explicações fáceis para frustrações que
são muito reais. Romper com esse vínculo exige escuta, diálogo e envolver
outras formas de pertencimento. A atenção não deve estar apenas no que o jovem
diz, mas no que ele consome, quais são suas referências, o que está
curtindo.
- Na
série da Netflix, a escola aparece como um ambiente fora de controle, em
que adultos e jovens não conseguem se comunicar. É possível diminuir esse
gap (lacuna) geracional?
LS – Acho que é possível, mas para isso
precisamos fugir da armadilha de responsabilizar apenas os adolescentes. Isso é
uma leitura reducionista que desconsidera o contexto mais amplo que eles estão
inseridos e que estamos numa sociedade que estimula a misoginia, ainda que de
forma camuflada. Quando se encara essa distância como um problema apenas dos
jovens, como se eles não respeitassem mais nada, o estigma prejudica ainda mais
o diálogo.
Temos que reconhecer que os jovens têm
experiências e dores próprias, que são legítimas. Muitas vezes quando um
adolescente expressa raiva ou desinteresse, ele está pedindo por conexão, e
quando a resposta é descrédito, esse abismo se acentua. É fundamental
visualizar a escola como espaço político, que precisa lidar com tensões
contemporâneas, como o discurso de ódio que circula nas redes e fora delas, e
isso não se resolve com uma ou outra palestra pontual, mas com presença,
comunicação, formação continuada dos educadores. É um grande processo.
Fonte: Por Amanda Audi, da Agencia Pública
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