'Achava que o livre mercado tinha vindo para
ficar, até que Trump apareceu'
Eu me
lembro bem de 1974. Com o aumento da inflação, o governo britânico
ficou travado em uma batalha contra os sindicatos sobre os salários dos
trabalhadores.
O
governo parecia paralisado. Se enfrentasse os mineiros, greves poderiam
interromper o fornecimento elétrico. Se cedesse e aumentasse os salários, a
inflação dispararia.
De
repente, surgiu do nada a crise global do petróleo – que lançou as
economias de muitos países ao caos, incluindo a do Reino Unido.
O
governo britânico decidiu introduzir a semana de três dias. Cortes de energia
eram comuns e ficávamos desligados no escuro sem aviso prévio. E,
aparentemente, o governo simplesmente esperava que nós aceitássemos aquilo.
Foi
também o ano em que comecei a apresentar Panorama – o programa sobre
atualidades da BBC. Passamos muito tempo debatendo estas questões e surgiram
pessoas com todo tipo de ideias a respeito.
Houve
até quem sugerisse que, para retomar o controle dos sindicatos, o que o país
realmente precisava era de um golpe de Estado, liderado pelos militares.
Surgiu
também outra ideia, proposta pelo político conservador Keith Joseph
(1918-1994). Na verdade, era algo tão radical, tão fora dos padrões, que,
durante a gravação do Panorama, ele se voltou para a equipe de produção e
perguntou, irritado, se eles haviam entendido o que ele queria dizer.
A ideia
era o livre mercado.
Ou
seja, o Reino Unido abandonaria o consenso estabelecido após a Segunda Guerra
Mundial (1939-1945) de que o governo deveria controlar a economia.
Em vez
disso, se deixássemos os mercados funcionarem sozinhos, eles ofereceriam maior
prosperidade e segurança ao país.
Em
2025, esta ideia parece totalmente comum. Esta é exatamente a questão.
O que
vimos no Reino Unido dos anos 1980, com a primeira-ministra Margaret Thatcher (1925-2013),
foi exatamente a rapidez com que o livre mercado deixou de ser uma ideia
radical para se transformar em uma nova realidade. E, pouco tempo depois,
muitos acreditaram que o sistema duraria para sempre.
O
presidente americano, Donald Trump, é um empresário
bilionário que, com certeza, se saiu muito bem financeiramente com o
capitalismo. Mas, de repente – e, em parte, graças a ele –, o livre mercado
está sendo atacado, como nunca havia sido antes.
O
sistema ainda pode sobreviver à tempestade. Mas há quem pergunte: estaria o
livre mercado fatalmente ferido e fadado ao fracasso?
·
O mundo de fantasia de Thatcher
As
ações de Thatcher após sua vitória nas eleições gerais de 1983, em grande
parte, parecem agora muito óbvias.
Ficamos
acostumados a ver empresas particulares desempenharem papel central no nosso
abastecimento de água, eletricidade, gás, ferrovias, portos e transporte de
carga.
Mas,
naquela época, poucos acreditavam que seria possível. Parecia um mundo de
fantasia, totalmente distante de como tudo vinha sendo feito no pós-guerra.
Eu
tinha seis anos de idade quando a guerra terminou.
Havia racionamento
– cupons que nos permitiam comprar carne, roupas ou, é claro, doces. Mas,
daqueles tempos difíceis e do calor da vitória, surgiu uma nova visão de
sociedade no Reino Unido.
A
vitória disparada de Clement Attlee (1883-1967) na eleição de julho de 1945 fez
com que, pela primeira vez na história política do Reino Unido, a maioria dos
eleitores votasse em um partido voltado ostensivamente ao socialismo.
Mas,
mais do que isso, surgiu um novo consenso sobre como o país deveria ser
governado. Em linhas gerais, o discurso dos líderes dos principais partidos
britânicos, Trabalhista e Conservador, era parecido.
"Construímos
nossas defesas contra a pobreza e a doença – e temos orgulho disso." A
frase não é de um primeiro-ministro trabalhista, mas de Harold Macmillan
(1894-1986), primeiro-ministro conservador entre 1957 e 1963. Era assim que
tudo era feito na época.
Mas nem
todos aceitavam este consenso. O criador de galinhas Antony Fisher (1915-1988)
se irritou com o que considerava intromissão do Comitê de Comercialização dos
Ovos, um antigo órgão do governo britânico.
Por
isso, ele criou o think tank (centro de pesquisa e debates) Instituto de
Assuntos Econômicos. Fisher inspirou Keith Joseph que, por sua vez, foi ter com
Margaret Thatcher.
·
A admiração de Trump por Thatcher
O mais
irônico sobre o atual ataque ao sistema de livre mercado é que ele vem, em
parte, de um presidente americano do Partido Republicano, já que as reformas de
Thatcher foram muito populares entre a direita dos Estados Unidos.
Thatcher
e o então presidente americano Ronald Reagan (1911-2004) mantinham visões de
mundo parecidas. E Trump já falou de sua admiração por ambos, embora com a
ressalva de que ele não concorda com algumas das políticas comerciais de
Reagan.
Thatcher
estava convencida de que seu país ficaria muito melhor se o gás, a água e a
energia elétrica fossem retiradas das mãos do Estado e vendidas no mercado
aberto – no mercado livre, como se estivéssemos comprando um pãozinho.
A
grande ideia do governo Thatcher não era apenas vender as ações das companhias
de serviços públicos para grandes empresas ou investidores. O governo iria
oferecê-las para o povo do Reino Unido.
Em
dezembro de 1984, foram colocadas à venda as ações da British Telecom (BT). E,
na manhã seguinte, os números eram impressionantes: mais de dois milhões de
britânicos passaram a ser acionistas da empresa.
Thatcher
começou então a perceber que vender aquelas empresas não era apenas uma questão
de romper as algemas do controle governamental. Poderia fazer parte de algo
maior — transformar cada pessoa do Reino Unido em um capitalista e, assim,
tornar o capitalismo mais popular.
No
final dos anos 1980, a escala de transformação no Reino Unido era
impressionante.
A venda
das companhias estatais levantou o montante de 60 bilhões de libras (cerca de
R$ 442 bilhões, pelo câmbio atual). Até 15 milhões de cidadãos britânicos
passaram a ser acionistas.
Foi
assim que o Reino Unido abraçou o livre mercado. Não era apenas uma mudança
econômica, mas uma revolução cultural — uma redefinição da relação dos
britânicos com o dinheiro, com o governo e consigo próprios.
E,
depois que a privatização de Thatcher ofereceu às pessoas comuns a
possibilidade de comprar ações, suas reformas do setor de serviços financeiros
do país em 1986, conhecida como o Big Bang, permitiu que aquelas mesmas pessoas
também as vendessem, oferecendo a elas um lugar no até então fechado mundo do
mercado financeiro londrino.
Muitos
políticos de esquerda acreditavam que o princípio que orientou estas reformas
era questionável. Já as críticas ao livre mercado por parte da direita não eram
sobre os princípios da reforma, mas sobre suas consequências.
·
Negócios no exterior e colapso das comunidades
No
pensamento de Thatcher, havia a crença central de que o capitalismo de livre
mercado só poderia funcionar se muitas pessoas participassem dele. E, com a
propriedade das ações dos prestadores de serviços que, antes, eram estatais,
foi o que aconteceu.
Mas,
pouco tempo depois, começaram a soar os sinais de alarme – que só ficaram cada
vez mais altos.
O
empresário James Goldsmith (1933-1997) havia feito fortuna comprando empresas
em dificuldades a preços baixos. Ele as remodelava para maximizar a eficiência
e as vendia com lucro.
Para
ele, as reformas dos anos 1980 foram uma dádiva dos céus. Mas, depois, ele
pareceu ter mudado de opinião.
Em
1994, Goldsmith declarou a um comitê de senadores americanos que sua premissa
continha uma falha mortal: o sistema exigia o máximo de lucro, mas atingir este
ponto significava cortar o cordão umbilical com grande parte do seu próprio
eleitorado.
"Você
tem um sistema no qual, para conseguir os melhores lucros empresariais, você
precisa deixar seu próprio país", afirmou ele. "Você precisa dizer
para os seus vendedores: 'até logo, não podemos mais manter vocês – vocês são
caros demais'."
"Vocês
têm sindicatos. Vocês querem férias. Vocês querem proteção. Por isso, estamos
indo para o exterior."
Ou
seja, Goldsmith previu que as empresas levariam seus negócios para onde elas
ganhassem mais dinheiro.
Se você
for um CEO (diretor-executivo) comprometido com seus acionistas, esta é
literalmente a descrição do seu trabalho. E o resultado, segundo Goldsmith,
seria a perda de empregos no Ocidente, com comunidades entrando em colapso.
E, para
piorar as coisas, ele defendeu que o Reino Unido havia cedido sua soberania a
organizações como a União Europeia e à Organização Mundial do Comércio,
restringindo-se a um sistema econômico conduzido por burocratas não eleitos em
Bruxelas, na Bélgica (sede da UE). Tudo isso só aumentaria a sensação de
alienação verificada nas comunidades que entravam em colapso.
E, com
os mercados globais ditando a política, se uma indústria não fosse lucrativa,
ela seria simplesmente abandonada até morrer.
Atualmente,
o Reino Unido pode ser líder global em ciências e serviços financeiros. Mas
será que isso serve de consolo para as comunidades que, um dia, faziam aquilo
que hoje é feito no exterior?
A
julgar pelo que ouvi frequentemente nos anos que passei viajando pelo país,
apresentando o programa de TV Question Time, da BBC, não estou certo de que
seja verdade.
Goldsmith
acabaria tentando entrar na política. Seu Partido do Referendo levou uma surra
nas eleições gerais de 1997, mas deixou uma semente plantada.
Ele
defendeu que o caminho para o livre mercado global que o Reino Unido e o resto
do mundo estavam percorrendo era perigoso. E que aumentaria as divisões em todo
o mundo.
Se
avançarmos cerca de 20 anos até 2016, seu alerta se tornou realidade. Os
britânicos votaram para sair da União Europeia e o veredito não poderia ser
mais claro: o voto a favor do Brexit foi mais alto nas comunidades que ficaram
para trás, aparentemente alimentado pelas pessoas que sentiam que a
globalização não estava funcionando para elas.
E o
sonho de ter uma nação de acionistas de empresas também desandou.
Em
1989, a companhia de abastecimento de água Thames Water foi privatizada.
Recebemos a promessa de redução das contas, melhor infraestrutura, menos
burocracia e mais investimentos em um sistema desgastado pelas bordas. Era um
investimento que o sistema capitalista global supostamente teria mais
capacidade de oferecer.
Mas o
que se seguiu foi totalmente diferente. As dívidas dispararam e os dividendos
foram para os acionistas. A empresa extraía lucros enquanto os canos vazavam e
o esgoto era despejado nos rios.
Agora,
nossas contas pagam os juros daquelas dívidas. Parece que nos afastamos muito
da nação de acionistas de empresas sonhada por Thatcher.
·
As tarifas de Trump desafiam a compreensão
Em
1994, James Goldsmith havia defendido que o problema do sonho do livre mercado
era que ele não protegia a base doméstica. Agora, existe alguém muito mais
poderoso que concorda com aquela opinião.
Os
métodos do presidente Trump são muito erráticos. Com ele, é difícil saber o que
está acontecendo.
Sua
disposição de lançar tarifas de importação para inimigos tradicionais e
supostos amigos, com imensas consequências para os países envolvidos, desafia a
nossa compreensão.
O que
podemos dizer é que ele está tentando retornar às ideias anteriores ao livre
mercado. Ele está tentando fortalecer a América por meio do protecionismo,
dificultando para que qualquer pessoa consiga vender para qualquer lugar.
Existe
o argumento de que, se você olhar a longo prazo, talvez o período de livre
mercado seja a exceção. O próprio Reino Unido atravessou um período muito longo
de protecionismo até abraçar o livre mercado.
As
tarifas de importação não são nada de novo na história econômica mundial. E, de
certa forma, Trump está simplesmente tentando fazer as coisas nos Estados
Unidos voltarem a ser como eram antigamente, ainda que de forma bastante
caótica.
O
reinado do livre mercado enfrenta, agora, seu maior desafio de todos. Mas este
desafio não vem dos apoiadores do socialismo – que, ideologicamente, defendem
um grande papel para o Estado.
Na
verdade, o desafio vem de Trump, que, de forma geral, é de direita e não tem
escrúpulos ao ver o capitalismo permitindo que algumas pessoas enriqueçam cada
vez mais.
O fato
de que estes questionamentos vêm de dentro é o que os torna tão poderosos.
Fonte: Por David Dimbleby, apresentador do
podcast Invisible Hands, BBC Rádio 4
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