Lei Rouanet: das origens ao desastre
Por que a renúncia fiscal, que deveria ser complemento
às políticas para a Cultura, tornou-se central? Como serve ao marketing das
empresas, pasteuriza estéticas e impõe censuras? Mais que estigmatizar, quais
os caminhos para reestruturá-la?
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Introdução
A Lei Rouanet se tornou, ao longo dos últimos
trinta anos, o principal instrumento de financiamento à cultura no Brasil.
Criada no início da década de 1990, num contexto de instabilidade fiscal,
desmonte institucional e transição para o modelo neoliberal, ela estabeleceu um
sistema de incentivo via renúncia fiscal que acabou assumindo um protagonismo
que não lhe era originalmente previsto. O que deveria funcionar como um
complemento a outras formas de fomento direto transformou-se na espinha dorsal
da política cultural federal. Ao invés de organizar um sistema amplo de
financiamento público, com planejamento, participação social e descentralização
federativa, o Estado transferiu à iniciativa privada o poder de decidir o que
merece ou não ser financiado com recursos públicos. Esse modelo, que coloca a
lógica de mercado no centro da política cultural, foi consolidado nos anos
1990, sobreviveu aos governos progressistas e atravessou os ataques da
extrema-direita que tentou destruí-lo simbolicamente, mas não rompeu com sua
estrutura. A crítica à Lei Rouanet precisa, por isso, ir além do moralismo e da
polarização. Trata-se de compreender como ela se tornou hegemônica, quais são
seus limites históricos e quais caminhos podem levar à superação desse arranjo
desigual.
Ao longo de mais de três décadas em
instituições culturais públicas, observei como as políticas de fomento se
organizam, ou não, nos contextos concretos em que deveriam atuar. Ficou cada
vez mais evidente o quanto a Lei Rouanet opera de forma distanciada das
dinâmicas culturais locais. Em cidades de médio porte, suas iniciativas chegam
de modo esporádico, quase sempre atreladas a grandes espetáculos promovidos por
empresas em busca de visibilidade institucional, e não por compromisso com os
territórios. Essa desconexão revela um desequilíbrio estrutural: um modelo
concentrador de decisões e recursos, que aprofunda desigualdades regionais e
simbólicas. A hegemonia da renúncia fiscal como política de Estado limita a
diversidade cultural e dificulta formas de financiamento mais democráticas e
enraizadas.Parte superior do formulário
1. O momento Celso Furtado: soberania
cultural e a renúncia como tática
A criação do Ministério da Cultura, em 1985,
foi um dos primeiros gestos simbólicos do governo civil pós-ditadura. Coube a
Celso Furtado, intelectual do desenvolvimento e ex-ministro do Planejamento de
João Goulart, a tarefa de organizar essa nova institucionalidade. Sua passagem
pelo MinC foi breve, mas deixou marcas significativas. Furtado via a cultura
como dimensão estruturante do desenvolvimento e como expressão da soberania de
um povo. O cenário, no entanto, era adverso. O país enfrentava uma grave crise
econômica, com hiperinflação, endividamento externo e desmonte progressivo das
funções públicas do Estado. O orçamento era limitado e as pressões neoliberais
já se faziam presentes. Furtado compreendia essa conjuntura e, dentro dos
limites disponíveis, buscou garantir instrumentos mínimos para que a cultura
não fosse apagada do campo das políticas públicas. É nesse contexto que surge a
primeira legislação de incentivo fiscal à cultura, conhecida como Lei Sarney. A
renúncia fiscal, ali, aparecia como medida emergencial e tática: uma forma de
acionar recursos privados com intermediação pública, sem abandonar o papel do
Estado. Junto à lei, Furtado propôs a criação do Instituto Brasileiro de
Promoções Culturais (IBPC), com o objetivo de articular Estado, iniciativa
privada e sociedade civil em torno de um projeto cultural nacional. A lógica da
renúncia, para Furtado, era um meio, não um fim. Sua concepção combinava
instrumentos fiscais, repasses diretos e um sistema público de acompanhamento.
Não havia, em sua proposta, qualquer idealização da filantropia empresarial ou
substituição do Estado por marcas. Como mostra Bruno Borja (2019), Furtado
entendia a cultura como vetor de autonomia coletiva, e não como produto
negociável no mercado. A renúncia só fazia sentido se subordinada a esse
horizonte mais amplo de soberania simbólica e democratização do acesso.
Liene Saddi (2010) reforça esse diagnóstico
ao mostrar como o uso da renúncia fiscal emergiu em um momento de fragilidade
institucional do Estado, mas foi absorvido pela lógica do ajuste fiscal e da
racionalidade gerencial. A cultura passou a ser tratada como área complementar
e negociável. Já Rodrigues (2017) indica que, ao invés de fortalecer a
pactuação federativa e social da política cultural, o incentivo acabou
deslocando o centro da decisão para o mercado — movimento que se iniciava ali,
nos anos 1980, mas se consolidaria na década seguinte. A ruptura viria com
força nos anos 1990. Com a crise fiscal se aprofundando e o Estado cedendo
espaço à lógica neoliberal, a política cultural foi desmontada como projeto
público e recombinada como política de incentivo. O que havia sido pensado como
estratégia provisória se converteu, com o tempo, em estrutura permanente.
2. Os anos 1990 e a consolidação do modelo
neoliberal
A década de 1990 marca a inflexão definitiva
do Estado brasileiro rumo ao neoliberalismo. O governo Collor extinguiu o
Ministério da Cultura, promoveu cortes drásticos nos orçamentos da área e
dissolveu estruturas criadas na redemocratização. A cultura foi empurrada para
a condição de gasto acessório. Nesse ambiente de desmonte, a Lei Rouanet,
criada em 1991, se transformou na principal, e praticamente única, política
pública de fomento à cultura em âmbito federal. A legislação previa três
instrumentos: o Fundo Nacional de Cultura (FNC), os Fundos de Investimento em
Cultura e Arte (Ficart) e o incentivo fiscal via renúncia tributária. Mas
apenas este último foi efetivado. O Ficart jamais saiu do papel e o FNC foi
sistematicamente esvaziado, contingenciado e mantido à margem do orçamento
federal. A renúncia tornou-se o único canal de financiamento viável para
projetos culturais, e com o tempo passou a operar de forma autônoma, à revelia
de um sistema público de planejamento cultural. Durante os dois mandatos de
Fernando Henrique Cardoso (1995–2002), essa lógica foi consolidada. A política
cultural se alinhou à racionalidade gerencial, com foco na eficiência, captação
e retorno institucional. A cultura foi reconfigurada como setor produtivo,
devendo apresentar indicadores, visibilidade e adesão à linguagem empresarial.
A mediação simbólica do Estado foi substituída por uma relação contratual com o
mercado.
Como aponta Frederico Barbosa (2009), o
incentivo fiscal deixou de ser estímulo à doação espontânea e passou a operar
como transferência orçamentária. O que se convencionou chamar de “mecenato” é,
na verdade, recurso público destinado a projetos escolhidos por empresas
privadas. A proporção de recursos genuinamente privados, aportados
voluntariamente, caiu de 66% em 1995 para apenas 11% em 2006. O que cresce é o
uso da marca cultural como estratégia de marketing, e não a ampliação do
direito à cultura. Além das assimetrias evidentes entre regiões e setores, o
que se instaurou foi uma lógica de comando invertida: o instrumento passou a
ditar os fins da política. A renúncia, que deveria operar subordinada a
objetivos mais amplos de fomento, passou a orientar os critérios de relevância,
os formatos de projeto e os modos de existência cultural possíveis dentro da
institucionalidade. Essa inversão produziu efeitos perversos: fragmentou a
política cultural, fragilizou o papel do Estado como mediador simbólico e afastou
do centro os princípios de equidade, descentralização e diversidade que
deveriam orientar qualquer política pública de cultura. Sá-Earp et al. (2016)
destacam justamente esse ponto: a política de renúncia não apenas ocupou o
centro do sistema, mas passou a ditar as formas de fazer cultura que o Estado
reconhece como legítimas. Ao se autonomizar, ela inverte a lógica da política pública
e bloqueia a construção de estratégias mais amplas, integradas e
redistributivas.
3. A contradição progressista: redistribuição
com mercado (2003–2016)
A chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à
presidência, em 2003, abriu um novo ciclo para as políticas culturais. A
criação do programa Cultura Viva, a retomada do Fundo Nacional de Cultura, a
reativação do Sistema Nacional de Cultura e a ênfase na diversidade cultural
apontaram para uma concepção mais ampla e socialmente referenciada de cultura,
ligada à cidadania e ao território. No entanto, a Lei Rouanet permaneceu no
centro da política de financiamento, praticamente intocada. Mesmo com a
expansão de programas importantes, como os Pontos de Cultura, a renúncia fiscal
seguiu operando sob os mesmos fundamentos estabelecidos na década anterior.
Promessas de revisão estrutural da Lei foram feitas, mas nunca cumpridas. O
mecanismo continuou alimentando circuitos restritos, definidos por critérios de
captação, visibilidade institucional e potencial de retorno para os
patrocinadores. O paradoxo da política cultural no período está exatamente aí:
de um lado, ampliou-se o discurso da participação, da diversidade e do direito
à cultura; de outro, manteve-se inalterado um mecanismo que concentra recursos
e legitima uma estética dominante. A coexistência dessas direções gerou
desequilíbrios. Enquanto programas como o Cultura Viva buscavam reconhecer
práticas culturais periféricas, comunitárias e ancestrais, a Rouanet seguia
operando em favor de grandes produtores, eventos de marca e circuitos de
prestígio.
Júlia Conterno Rodrigues (2017) observa que o
incentivo fiscal reforça uma lógica de exclusão ao submeter o acesso aos
recursos públicos a critérios de retorno simbólico e mercadológico. A cultura
que escapa desses critérios — por sua linguagem, territorialidade ou origem
social — permanece à margem. Mesmo a tentativa de aplicar critérios de
descentralização ou inclusão social esbarrou na rigidez da estrutura e na força
dos interesses consolidados. Frederico Barbosa (2009) aprofunda essa crítica ao
demonstrar que a renúncia fiscal institucionaliza um “mecenato dependente do
marketing”, no qual os patrocínios não decorrem de motivação cultural, mas de
visibilidade e benefício de imagem para as empresas. O patrocínio cultural,
nesse modelo, torna-se ferramenta de branding — e não instrumento de
democratização do acesso. Para ele, a política cultural foi capturada por um
formato que esvazia o Estado como mediador público e fortalece a legitimação
simbólica das marcas. O resultado foi uma política cultural dividida. De um
lado, iniciativas inovadoras, mas frágeis e muitas vezes descontinuadas. De
outro, um mecanismo poderoso, consolidado, blindado, que operava com lógica
própria e autonomia em relação ao conjunto da política pública. A cultura como
direito seguia sendo afirmada no discurso, mas a cultura como mercadoria
permanecia como estrutura.
Essa contradição não pode ser ignorada. Ao
não reformar a Lei Rouanet, os governos progressistas deixaram intacto o
principal eixo de financiamento à cultura no país — justamente aquele mais
permeado por assimetrias, filtragens simbólicas e exclusão territorial. Em vez
de romper com o modelo herdado dos anos 1990, optou-se por conviver com ele,
numa espécie de pacto implícito entre inovação periférica e continuidade
institucional. Enquanto programas de fomento direto eram celebrados como
avanços civilizatórios, a lógica da renúncia seguia operando no subterrâneo da
política, com legitimidade garantida e orçamento crescente. O resultado foi a
consolidação de uma política cultural cindida: uma face voltada ao
reconhecimento e à diversidade, e outra presa ao interesse corporativo, ao
marketing cultural e à seletividade empresarial. Essa clivagem tornou-se o
limite da política cultural naquele ciclo e deixou um passivo que os anos
seguintes só iriam aprofundar.
4. O refluxo autoritário e a permanência
estrutural (2016–2022)
A ruptura institucional de 2016 inaugurou uma
nova fase de regressão nas políticas culturais. Com o impeachment de Dilma
Rousseff, agendas neoliberais clássicas voltaram a orientar o Estado: teto de
gastos, redução orçamentária, desmonte institucional e erosão das políticas
públicas redistributivas. A cultura, como de costume, foi um dos primeiros
alvos simbólicos e orçamentários. No governo Michel Temer, o Ministério da
Cultura foi extinto e recriado por pressão do setor. A medida teve valor mais
performático que efetivo: o orçamento foi encolhido e os mecanismos de fomento
direto, paralisados ou reduzidos à mínima expressão. Com Jair Bolsonaro, o
processo se intensificou. O MinC foi novamente extinto, agora absorvido por uma
pasta de turismo, com comando ideológico. Editais foram interrompidos,
instituições públicas atacadas, servidores perseguidos. O discurso da guerra
cultural substituiu qualquer projeto consistente de política pública. A Lei
Rouanet, nesse cenário, foi escolhida como alvo preferencial da ofensiva
moralista da extrema-direita. Um verdadeiro espantalho dominando um debate.
Acusada de sustentar “mamatas”, artistas “esquerdistas” e projetos “imorais”, a
Lei se transformou em espantalho útil para a mobilização do antipetismo e da
retórica anticultural. No entanto, o ataque foi simbólico e seletivo: a
estrutura da renúncia fiscal não foi abolida. Foi apropriada.
O modelo se manteve em funcionamento, mas com
novas prioridades. Projetos alinhados à pauta conservadora ou às exigências de
neutralidade política passaram a receber aprovação com mais facilidade,
enquanto proponentes dissidentes enfrentaram restrições, atrasos ou exclusões.
A gestão da renúncia tornou-se instrumento de controle ideológico — não pela
mudança da lei, mas por sua manipulação institucional. Como mostra Volpini
Silva et al. (2017), essa vulnerabilidade decorre da própria natureza da
renúncia: um instrumento público com critérios de validação externa, facilmente
adaptável ao governo de turno. Ainda assim, e talvez justamente por isso, o
modelo permaneceu. Como sustentam Sá-Earp et al. (2016), o incentivo fiscal
tornou-se uma engrenagem autônoma, funcional a governos de diferentes matizes.
Sua lógica se impõe com independência das orientações políticas momentâneas
porque opera a partir de critérios que naturalizam a intermediação privada como
solução de política pública. O que deveria ser exceção — mobilizar o capital
privado em contextos emergenciais — tornou-se norma. A renúncia deslocou o
Estado da centralidade decisória e instaurou uma política cultural indireta,
regulada por agentes não eleitos e sem controle social efetivo. Essa
funcionalidade estrutural é também apontada por Volpini Silva et al. (2017),
que analisam como a Lei Rouanet fragiliza o princípio da cidadania cultural ao
criar um sistema de financiamento baseado em desigualdades pré-existentes. O
modelo, por depender da intermediação empresarial, amplia distorções regionais
e simbólicas. E, por carecer de critérios claros de justiça distributiva,
torna-se vulnerável a usos discricionários, como os que marcaram o período
bolsonarista. A cultura que não se encaixa nos padrões morais ou ideológicos
dos avaliadores pode ser excluída sem que isso seja formalmente caracterizado
como censura. É nesse ponto que se evidencia o limite estrutural da Lei
Rouanet. Seu poder de adaptação a governos tão distintos indica que ela não
apenas sobrevive às crises: ela se molda a elas. Isso não é mérito técnico, mas
fraqueza institucional. Uma política pública de cultura que se acomoda à
censura, à perseguição e ao desmonte já não cumpre função republicana. Apenas
disfarça o vazio. A cultura, nesse arranjo, deixa de ser reconhecida como
direito e passa a ser gerida como risco a ser monitorado, filtrado e, quando
necessário, silenciado.
5. O impasse atual e as propostas de
reestruturação
A retomada do Ministério da Cultura em 2023
recolocou na agenda a reconstrução institucional e a necessidade de revisar os
principais mecanismos de fomento. A Lei Rouanet permanece no centro do debate,
seja por seu peso orçamentário, seja por seu esgotamento político. O impasse é
estrutural: não se trata apenas de corrigir distorções pontuais, mas de
repensar o lugar da renúncia fiscal no interior da política cultural
brasileira. A crítica já está presente há muito tempo no interior do próprio
Estado. Vicente Finageiv Filho (2017), servidor de carreira e formulador de
políticas, chama atenção para o desvio de origem do modelo: a Lei Rouanet foi
concebida como um tripé — Fundo Nacional de Cultura (FNC), Fundos de
Investimento em Cultura e Arte (Ficart) e incentivo fiscal. No entanto, só o
terceiro foi efetivado. A renúncia virou regra; o fomento direto, exceção.
Finageiv (2017) propõe recompor esse tripé e
aprovar o ProCultura, um projeto que cria mecanismos de pontuação regional,
social e setorial, corrige assimetrias históricas e exige contrapartidas dos
patrocinadores. Mas a proposta enfrenta resistência. O sistema da renúncia
consolidou interesses fortes — tanto entre grandes produtores quanto entre
intermediários técnicos e setores empresariais. Qualquer tentativa de mudança
esbarra nesse núcleo consolidado. A esse diagnóstico se soma a crítica de
Frederico Barbosa (2009), que desmonta a ideia de que a renúncia estimula o
mecenato. O que existe é uma política pública regida por critérios de
visibilidade, projeção institucional e adesão à lógica de marca. Os projetos
aprovados são aqueles capazes de atrair investimento com retorno simbólico. Não
se estimula a diversidade: se consolida um padrão.
Esse modelo criou uma camada blindada dentro
do sistema cultural: produtores com acesso às marcas, estruturas técnicas e
capacidade de captação permanecem no jogo. Os demais orbitam em torno de
editais escassos, convênios precários e repasses intermitentes. Como apontam
Volpini Silva et al. (2017), o que se criou não foi um sistema articulado de
financiamento, mas um mecanismo que reproduz desigualdades. A renúncia, por
depender da concentração econômica, amplia a concentração simbólica. Sá-Earp et
al. (2016) vão além: mostram como o incentivo fiscal deixou de ser instrumento
subordinado à política pública e passou a comandá-la. A política cultural gira
em torno da captação. Os formatos, as estéticas, as formas de inscrição e
avaliação passaram a ser modeladas pelo que o mercado aceita financiar. O
Estado deixou de exercer sua função mediadora e pactuadora para operar como
validador técnico de projetos moldados externamente.
Falo aqui também a partir de uma experiência
longa no setor público cultural, acompanhando a dificuldade de acesso à Rouanet
por parte dos municípios médios. Raramente os projetos fomentados pelo
mecanismo se articulam aos contextos locais. Quando chegam, são grandes
espetáculos, eventos com patrocínio garantido, desconectados das demandas
formativas, dos agentes culturais do território e da política pública
municipal. A estética da visibilidade, a marca e o volume de público se
sobrepõem à formação, à experimentação e à diversidade. Esse distanciamento se
evidencia quando se olha para os dados: o volume de recursos segue concentrado
no eixo Sudeste e entre os grandes produtores. A promessa de democratização
nunca se concretizou. Como pesquisador e como agente do campo, defendo que a
Lei Rouanet deve ser deslocada do centro e integrada ao tripé mais amplo do
Sistema Nacional de Cultura — conselhos, planos e fundos articulados nos três
níveis federativos. Isolada, ela continuará perpetuando assimetrias. O centro
de gravidade da política cultural precisa se deslocar. A renúncia pode seguir
existindo, mas como mecanismo periférico, regulado e transparente. Não como
centro do orçamento e da definição do que é ou não cultura. O que está em jogo
não é apenas justiça no acesso a recursos. É a reconstrução do sentido público
da política cultural e o seu enraizamento como direito de todos e todas.
6. Conclusão – Cultura como direito público e
superação do modelo de renúncia
A Lei Rouanet não foi um erro fundacional,
mas tornou-se um problema estrutural. Ao longo de três décadas, consolidou-se
como o eixo principal do financiamento cultural, deslocando o Estado de seu
papel pactuador para a posição de validador técnico de projetos formatados
segundo os critérios do mercado. Esse deslocamento comprometeu a construção de
um sistema público, federativo e redistributivo de política cultural. O
problema não está apenas na concentração de recursos, nos filtros simbólicos ou
na seletividade institucional. Está no lugar que a renúncia passou a ocupar:
centro da política, filtro de legitimidade, instrumento de
desresponsabilização. A estrutura da Lei permitiu que governos de matizes
distintos a utilizassem de modo funcional — seja como ferramenta de captação,
seja como mecanismo de controle simbólico. É preciso restituir à política
cultural sua condição de campo público, tensionado, pactuado, permeável às
contradições sociais. Isso implica submeter a renúncia a uma lógica mais ampla,
regida por princípios de justiça distributiva, participação e pluralidade
estética. E, acima de tudo, implica consolidar o Sistema Nacional de Cultura
como estrutura permanente, capaz de integrar conselhos, planos e fundos sob
controle social efetivo. Não há política cultural democrática sem mediação
pública e participação qualificada nas decisões.
O horizonte não é o fim da Lei Rouanet. É sua
reorganização. Seu lugar é dentro de um sistema mais amplo, que articule
financiamento direto, formação, circulação, memória, difusão e participação
social. Um sistema em que os instrumentos se subordinem a diretrizes pactuadas,
e não o contrário. Um sistema em que o acesso à cultura não dependa da chancela
das marcas, mas da presença nos territórios.
A cultura não é apenas expressão. É também
disputa. Disputa por reconhecimento, por recursos, por sentido. Uma política
cultural comprometida com a justiça precisa enfrentar essa disputa com
instrumentos à altura do conflito. A Lei Rouanet, da forma como está, não
responde a esse desafio. O que se exige agora é a reconstrução do espaço
público da cultura — e de uma política que reconheça sua complexidade, sem
abrir mão de sua função redistributiva.
Fonte:
Por Ricardo Queiroz Pinheiro, em Outras Palavras
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