Mauro
Ramos: Crônica sobre duas democracias
No
mesmo dia em que o 14º Congresso Popular Nacional da China iniciou a sua 3ª
sessão anual na Grande Casa do Povo, 5 de Março, o presidente dos EUA, Donald
Trump, fez um discurso na sessão conjunta do Congresso dos EUA.
O
evento político mais importante que acontece anualmente na China havia
começado, como de costume, com centenas de deputados e deputadas chegando ao
Grande Salão do Povo em Pequim, entusiasmados, enquanto uma atmosfera tensa
tomava conta do Congresso dos EUA.
Uma
imagem do discurso de Trump viralizou: legisladores democratas segurando
cartazes em protesto contra o Trump 2.0. Pensei na hora: é isto o que os
liberais defendem como “freios e contrapesos” – o sistema que tantas vezes
elogiam como uma salvaguarda contra a concentração de poder?
Quero
compartilhar reflexões sobre um pouco do que tenho aprendido na China em
relação ao que chamam de democracia popular de processo integral. Mas antes de
me aprofundar nisso, vou fazer um pequeno desvio para falar sobre a política
nos Estados Unidos.
Não se
trata de discutir assuntos internos dos Estados Unidos, mas é preciso olhar de
forma cada vez mais crítica seu sistema que é propagandeado como “excepcional“, o “mais forte”, “a mais livre” ou
a “maior” democracia do mundo.
Ao
mesmo tempo, é preciso compreender e aprender mais sobre o sistema responsável,
entre outros feitos, por uma das maiores conquistas da história da humanidade,
que foi tirar 800 milhões de pessoas da pobreza em 4 décadas.
·
Um deficiente sistema de saúde em risco
Voltando
aos protestos democratas durante o discurso de Trump, um dos cartazes que
seguravam dizia “Salvem o Medicaid”. O Medicaid é um programa de seguro saúde
público desenvolvido para fornecer acesso a serviços de saúde para indivíduos
de baixa renda. Foi criado em 1965 por Lyndon B. Johnson em conjunto com o
Medicare, o mesmo tipo de programa, mas específico para idosos. Esses são dois
dos quatro principais programas de seguro saúde público nos EUA, sendo os
outros dois: o Programa de seguro saúde infantil (CHIP) e os planos de mercado
do Affordable Care Act (ACA).
Segundo
dados do próprio programa, até 2023, a percentagem da população dos EUA
inscrita no Medicaid ou CHIP era de 27,8%, quase 93 milhões de pessoas. Em
outubro de 2024 havia 79,3 milhões de pessoas inscritas em um
ou outro, sendo 37,6 milhões crianças ou adolescentes.
De
todas as mulheres que deram à luz em 2023 nos Estados Unidos, 41,5% estavam
cobertas pelo Medicaid, segundo levantamento da Marcha dos Dimes. O programa é usado
por um terço das pessoas de baixa renda no
país, o que significa 15 milhões de pessoas.
Portanto,
não há dúvida de que estes programas desempenham um papel no fornecimento de
acesso à saúde nos EUA, independentemente das avaliações que se possam fazer
sobre se este é um modelo ideal para um sistema de saúde ou não.
O
Medicaid passou por um mecanismo de expansão em 2010, com o Affordable Care Act
(ACA), popularmente conhecido como Obamacare. Os republicanos foram contra ele
desde o início.
Trump
tentou revogá-lo no seu primeiro mandato, mas falhou. Em parte porque nem todos
os republicanos concordaram com a eliminação do programa e porque também não
houve consenso sobre uma proposta que pudesse substituí-lo.
No ano
passado, o número de inscritos no programa chegou a 21 milhões. Desde a
campanha do ano passado, Trump e os seus aliados tiveram que afirmar que não
pretendiam mexer no orçamento do Medicaid.
É uma
questão muito longa para detalhar aqui, mas basicamente o orçamento aprovado pela Câmara
(onde os republicanos têm maioria, assim como no Senado), propõe 4,5 trilhões
de dólares em cortes de impostos e a eliminação de 2 trilhões de dólares dos
gastos do governo até 2034.
O texto
determina que 11 comitês deverão apresentar alterações para aumentar ou reduzir
seu déficit. O Medicaid está subordinado ao Comitê de Energia e Comércio da
Câmara, que precisa reduzir o déficit “em pelo menos 880 bilhões de dólares
para o período dos anos fiscais de 2025 a 2034”.
Os
gastos sob a jurisdição desse comitê até 2025-2034, excluindo Medicaid e CHIP,
são de 381 bilhões de dólares ao longo do período de 10 anos, de acordo com o
Gabinete de Orçamento do Congresso, um think tank. Portanto, para atingir a
meta de US$ 880 bilhões, esses programas de saúde deveriam sofrer cortes.
Trump
pode acabar falhando novamente.
·
Problemas crônicos sem solução
Caso
isso aconteça, alguns defensores da democracia dos EUA poderiam dizer: pronto,
esses são os nossos “check and balances”. Alguns representantes republicanos
têm receio de ir contra os seus eleitores e acabam não avançando em medidas
impopulares.
Mas o
simples fato de todo o país estar concentrado em discutir como evitar o
agravamento de um sistema de saúde que já é muito deficiente, é por si só um
problema.
Os
Estados Unidos têm enormes problemas. Não me refiro aos problemas que eles
causam no mundo, mas daqueles que causam ao seu próprio povo: a cada ano
aumentam os tiroteios em escolas com crianças mortas. Já são pelo menos quatro
tiroteios este ano. Na primeira década do século 21, os tiroteios em massa nos
EUA não passavam de um dígito, mas na última década, anualmente ocorreram
dezenas de tiroteios em massa.
E isto
é apenas uma fração de um problema muito maior de violência armada, que ceifa a
vida de dezenas de milhares de pessoas anualmente nos Estados Unidos. Em 2024,
47 mil pessoas foram mortas por armas de fogo no país.
A
habitação é um problema grave nos EUA. De 2023 a 2024, houve um aumento de 18%
de pessoas sem-teto, somando 771.480 pessoas nessa
condição em 2024, o número mais alto já registrado. Sem falar nos problemas do
próprio sistema de saúde.
O país
gasta entre 15 e 18% do seu PIB em cuidados de saúde, um valor superior ao de
países como o Reino Unido e a Alemanha, e ainda tem o “sistema de saúde
com pior desempenho entre todos os
países de renda alta”.
Existem
formas claras na democracia “perfeita” dos EUA para sair desta situação? Não
parece.
Os
massacres nos EUA resultantes da violência armada são uma vergonha para o
mundo, não apenas para os EUA. Trata-se de uma crise humanitária. Mas os
democratas têm pouco mais do que palavras para lidar com esta crise. Isso
pressupondo que estejam dispostos a enfrentar seriamente estas crises.
A
exibição de cartazes durante o discurso de Trump não é apenas patética porque é
inútil, mas porque tentou funcionar como uma forma de “resistência”, quando na
verdade está apoiando um programa que garante que cinco empresas com fins lucrativos detenham a
metade do mercado da Medicaid e que, no final, não resolve de forma eficiente
os problemas reais das pessoas.
·
A Democracia Popular de Todo o Processo
Esta
foi a segunda vez que cobri as Duas Sessões. Um dos dias mais importantes é
quando o governo entrega o relatório ao Congresso Nacional do Povo (CNP). Antes
de o primeiro-ministro iniciar a apresentação do relatório do governo, há a
oportunidade de conversar com alguns dos quase 3 mil deputados e deputadas que
circulam na entrada do Grande Salão do Povo.
As Duas
Sessões Chinesas são as reuniões anuais do CNP (um órgão unicameral) e da
Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, um órgão consultivo composto
por partidos (além do Partido Comunista da China, existem outros oito
partidos), personalidades sem filiação partidária, organizações populares,
minorias étnicas, entre outros.
Nas
Duas Sessões o governo tem que apresentar um relatório de trabalho perante a
CNP, o órgão máximo do Estado na China.
A
famosa jornalista chinesa e amiga Jingjing, me ajudou a conversar com alguns
deputados. Fizemos uma entrevista conjunta com um representante da província de
Yunnan. Ele estava um pouco nervoso. Pequeno agricultor, líder local, um dos
quase 3 mil deputados presentes no mais importante evento político anual de um
dos principais países do mundo e integrante do seu mais alto órgão político.
Numa
conversa recente, a professora Lu Xinyu – uma distinta acadêmica da
Universidade Normal da China Oriental (ECNU) – afirmou que alguns observadores
no Ocidente (no Norte Global realmente), frequentemente criticam as Duas
Sessões considerando-as um mero “teatro político”. “Todos levantando a mão como
se estivessem concordando”, diziam.
Ela
explica o quão errados estão sobre o sistema político da China: as Duas Sessões
nacionais são o resultado, não o início do processo.
Existe
o nível nacional das ‘Duas Sessões’, mas o sistema está presente em todos os
governos locais, nas províncias, condados, municípios, etc.
A
professora Lu explica que os representantes e membros dos comitês locais devem
coletar e organizar informações sobre questões relacionadas ao desenvolvimento
socioeconômico e cultural de suas regiões, bem como demandas específicas.
Depois
disso, eles irão apresentá-los em suas Duas Sessões na forma de propostas. Há
questões que precisam ser resolvidas localmente, outras serão abordadas pelos
deputados e deputadas nacionais das Duas Sessões.
·
Democracia de baixo para cima
A
principal conclusão é que a estrutura política da China é essencialmente uma
democracia popular. Xi Jinping não tem a origem abastada típica de muitas
figuras proeminentes na política atual dos EUA. Em contraste, Elon Musk, o
indivíduo mais rico da história recente, circula na Sala Oval dos EUA como se
fosse uma autoridade eleita.
O povo
chinês só entra no Grande Salão do Povo para tarefas políticas, se recebe o
mandato do povo.
Este
ano também participei numa das sessões abertas das delegações provinciais. No
dia seguinte à apresentação do relatório de trabalho pelo governo, cada
província ou região tem as suas reuniões para discutir os relatórios e
apresentar os seus próprios resultados, metas e desafios para o ano.
Tive a
oportunidade de entrevistar a Sra. Wang Yinxiang, uma das deputadas da
província de Shandong. Ela é uma pequena agricultora e secretária do partido na
aldeia. Perguntei a ela sobre a importância do conceito de democracia popular
em todo o processo.
“A
democracia na China é um processo abrangente que valoriza plenamente as
opiniões das pessoas de todas as esferas da vida e setores da sociedade,
permitindo que todos compreendam e participem. Sou uma representante dos
camponeses, vinda das bases”, disse Wang.
Um
aspecto importante é que o sistema político chinês também é orientado a
resultados: se houver um problema, ele precisa ser resolvido. A população local
reclamará com os seus líderes ou os líderes conhecerão, comunicarão e
discutirão os problemas em nível local e em níveis superiores.
É claro
que isto só pode funcionar devido à centralidade do Partido Comunista da China.
Para efeito de comparação, nunca haverá um problema de violência armada na
China, porque nenhuma empresa está acima do PCCh, e o PCCh é centrado no povo e
não no lucro.
“As
propostas devem seguir o princípio ‘uma pergunta, uma discussão’: qual é o
problema e quais são as possíveis soluções? Os representantes e membros do
comitê devem realizar investigações aprofundadas, comunicar-se com os
departamentos relevantes e assumir a responsabilidade pela viabilidade
científica das propostas. Os governos a todos os níveis devem responder às
propostas apresentadas”, explica Lu.
O outro
elemento-chave é: consenso. Embora as discussões ocorram em nível local, “é
necessário construir o maior consenso possível para que as propostas sejam
implementadas de forma eficaz”, afirma a professora Lu.
Um
princípio é o do respeito às diferenças. A China é um país muito diverso.
Podemos aqui fazer uma comparação, por exemplo, com as democracias na Europa. A
França restringiu o uso do “hijab” pelas mulheres e agora a Espanha também está
discutindo proibir que mulheres o usem.
Embora
o PCCh não professe nenhuma religião, não o vejo implementando esse tipo de
medidas. Em vez disso, o que vejo é o governo financiando monastérios porque,
neste caso, o budismo é um aspecto cultural importante do povo chinês.
Não há
palavras vazias no relatório do governo. “Cada frase do relatório de trabalho
do governo é respaldada por um complexo sistema de engenharia”, explica Lu.
As
tarefas e objetivos propostos nas “’Duas Sessões’ são como ordens militares
dirigidas à nação e ao mundo, que devem ser cumpridas sem falta”.
Não
conversamos sobre o tipo de comparação que eu queria fazer aqui. Mesmo assim,
Lu Xinyu deu o melhor resumo em relação a este assunto:
“Este
não é um jogo para os políticos ganharem votos. As brigas entre políticos no
parlamento não significam democracia, mas apenas que a democracia não resolve
os problemas”.
Com
frequência, os representantes da China fazem questão de afirmar que o sistema
chinês é um modelo desenvolvido para a China, o Socialismo com características
chinesas.
E assim
como em suas políticas de cooperação não há condições ou contrapartidas
exigidas, a China tem o posicionamento de não querer “exportar” seu sistema
política.
Mas do
lado do Brasil e da América Latina não faria mal aprofundarmos nossa
compreensão sobre seu sistema político, da mesma maneira que o país absorveu de
diferentes países e regiões, incluindo o Brasil, e seu processo de
industrialização.
Em
nossa entrevista com a presidenta Dilma, ela disse que o Brasil precisa de um
caminho propriamente brasileiro, mas que “esse caminho brasileiro não é o
caminho do anticomunismo”.
Essa
semana, na coletiva de imprensa da chancelaria chinesa nas Duas Sessões, o
ministro de Relações Exteriores, Wang Yi, disse que os países latino-americanos
não querem ser o quintal de nenhum outro país.
Entender
e aprender sobre o socialismo com características chinesas é uma opção que
nossos países latino-americanos não deveriam se furtar de explorar cada vez
mais.
¨
Por que, ao contrário do que Trump afirma, ele não pode
concorrer a um terceiro mandato?
Donald Trump ressaltou que
falava sério ao não descartar a possibilidade de buscar um terceiro mandato,
numa entrevista por telefone à NBC News. Até agora, o presidente jogava com a
ideia para animar a sua claque. Mas, no domingo (30), deixou evidente que a perspectiva
é real:
“Não,
não estou brincando”, assegurou, sugerindo que havia métodos para driblar o
limite estabelecido pela Constituição.
A 22ª
Emenda, que Trump propõe violar com a disposição de se reeleger, estabelece, de
forma clara, que os presidentes americanos só podem ser eleitos para dois
mandatos. Seria dificílimo derrubá-la: mudar a Constituição requer uma votação
de dois terços no Congresso ou uma convenção constitucional, que deveria ser
solicitada por 34 estados.
A
apresentadora Kristen Welker, do programa “Meet the Press”, questionou então se
um dos métodos a que o presidente se referia poderia ser a eleição, em 2028, do
vice-presidente JD Vance, que passaria o cargo a Trump. “Esse é um método, mas
há outros”, respondeu.
Esta
alternativa também parece irreal. A 12ª Emenda, ratificada em 1804,
determina que nenhuma pessoa constitucionalmente inelegível para o cargo de
presidente poderá ser elegível para o cargo de vice-presidente dos EUA. Ou
seja, Trump não poderá concorrer como vice.
O
presidente, que terá 82 anos ao deixar o cargo, justifica gostar de trabalhar
para não descartar o desejo de buscar a reeleição. “Muitas pessoas querem que
eu faça isso”, completou.
Ele
insistiu anteriormente na ideia, mas foi encarada como brincadeira. “Será a
maior honra da minha vida servir não uma, mas duas, três ou quatro vezes”,
disse em janeiro num comício em Nevada. Em outra ocasião, já como presidente,
perguntou aos simpatizantes se deveria concorrer novamente e ouviu como
resposta “Mais quatro anos”.
Assessores
e aliados fervorosos passaram a replicar os planos para um terceiro mandato. O
congressista republicano Andy Ogles, do Tennessee, apresentou uma emenda à
Constituição que tornaria o presidente novamente elegível. Mas o projeto
esbarra no Congresso polarizado.
O
estrategista político Steve Bannon, que atua nos bastidores como conselheiro do
presidente, afirmou este mês que Trump concorrerá novamente e vencerá em 2028.
“Estamos trabalhando nisso. Veremos qual é a definição de limite de mandato.”
De balão de ensaio ou fanfarronice, a busca pela reeleição de Trump passou a
soar como projeto.
Fonte:
Outras Palavras/g1
Nenhum comentário:
Postar um comentário