Luís
Nassif: 1964 e 2014, a banalidade do mal
A idade
me permitiu assistir às Marchas com Deus, Família e Propriedade, que chegaram a
Poços de Caldas através do Padre Patrick Peyton e seu bordão “família que reza
unida permanece unida”.
Imigrante
irlandês, ele foi trazido ao Brasil pelos irmãos Grace, católicos
irlandeses-americanos donos de linhas de navio e da representação da
Caterpillar no Brasil.
Quando
completei 14 anos, dois meses após o golpe, ainda era lacerdista, influência de
um avô udenista e amigo de Carlos Lacerda. Mudei pouco tempo depois, quando a
polícia passou a espancar estudantes em uma passeata em São Paulo.
Minha
intuição, de menino-rapaz de 14 anos, era de que o novo regime não podia ser do
bem.
Desde
os 12 anos, nas Semanas do Estudante, eu debatia com os comunistas do Colégio
Pelicano, os Furtados, o Gerinho. Depois, saíamos de lá para um bar, eles
bebendo cerveja e eu bebendo guaraná.
Nosso
sonho, aliás, era convidar Carlos Lacerda e Leonel Brizola para um debate na
nossa Semana.
Quando
veio o golpe, tudo mudou. Apareceu a figura execrável do “dedo duro”, delatando
nossos amigos-adversários comunistas. Depois, delataram Sebastião Trindade – um
comunista eletricista que semanalmente ia à casa de meus avós, para trocar
informação sobre santos com minha avó Martina. E também o Zé Caé, filho do dono
da funerária, um rinoceronte de força e um doce de amigo: no período em que meu
avô ficou doente, ele esperava todo final de noite, quando minhas tias fechavam
o Bar e Restaurante Serigy, para acompanhá-las até em casa, a meros dois
quarteirões de distância.
A vida
da cidade virou de ponta cabeça. O Marechal Juarez Távora, amigo da minha
família, distribuiu armamentos para meio mundo, através da Cooperativa dos
Cafeicultores. Até o dr. Fabrino, médico boêmio, foi apanhado com metralhadoras
no porta-mala do carro e interrogado pelo delegado. Bastou dizer que tinha sido
presenteado por Juarez, para ser solto.
Depois,
no secundário, em São João da Boa Vista, fui denunciado ao 2o Exército por ter
organizado um grupo de teatro que encenou a peça “Liberdade, Liberdade”,
delatado por Acácio Vaz de Lima, um membro do CCC que estudava na Faculdade de
Direito do Largo São Francisco.
Mesmo
assim, no interior, sofríamos apenas os ecos da ditadura. No tiro de guerra, o
Sargento Meyer – um carioca transferido para Poços – gostava de contar que, no
Rio, montavam uma bateria de escola de samba, batendo em pratos e panelas, para
abafar os gritos dos prisioneiros torturados.
Nas
grandes cidades, instalara-se o terror: prisões arbitrárias, torturas, mortes,
censura, sob os gritos histéricos de uma opinião pública e jornalística que
ainda não acordara para o pesadelo fascista.
Todo o
período anterior a 1964 foi de preparação. Meu avô me mandava exemplares do
Ação Democrática, revista do IBAD, com discursos contra os comunistas, contra
as estatais, contra a corrupção, tudo semelhante ao período
mensalão-impeachment.
·
A ditadura da década de 2010
Esse
mesmo clima eu vi formando-se na década de 2010, depois que Joaquim Barbosa
encantou-se com a capa da Veja – sobre o menino pobre que salvou o Brasil – e
deixou de ser o maior exemplo para se tornar a mancha mais vergonhosa da
história do Supremo Tribunal Federal pós-Constituinte.
Nesse
período, de reação indignada contra o arbítrio, fui intimado três vezes na
Polícia Federal, em inquéritos destinados a identificar dissidentes na
corporação. Alguma semelhança com o pós-64? Dois delegados, aliás, tiveram
problemas de saúde e foram afastados da PF, meramente por discordarem de
métodos ilegais.
Algumas
vezes fui ameaçado fisicamente, as duas em padarias de Higienópolis, por
direitistas enfurecidos, estimulados pelo jornalismo de esgoto que se
organizara em defesa da ditadura próxima.
Não
pense nas bestas feras da direita, que passaram a povoar os jornais, em sua
demanda por jornalismo de ódio. Jornalistas do sistema caíram de cabeça no jogo
do ódio.
Enquanto
alimentavam o monstro, calavam-se, assim como toda a imprensa, ante um período
de abusos jurídicos típico das ditaduras, que se espalhou por todos os poros da
República. Fechavam os olhos aos abusos, à perseguição e a própria ABRAJI
(Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) montava uma força tarefa
para auxiliar nas investigações.
·
A ditadura do Judiciário
Em todo
período, fui colecionando os principais abusos e, com eles, montei um mapa da
mente.
Alguns
dos crimes contra a democracia, devidamente anotados:
- Juiz federal que
proibiu cultos africanos.
- Promotora que
montou uma denúncia contra 75 alunos da USP.
- Desembargadores
do TRF-4 que manipularam sentenças contra Lula.
- Juíza que intimou
um cientista de reputação internacional, por ter participado de um
seminário sobre poderes medicinais da maconha.
- Juiz que proibiu
debates em universidades.
- Promotor que fez
uma série de denúncias falsas contra Haddad.
- Delegada, juiz e
procurador responsáveis pelo suicídio do ex-reitor da Universidade Federal
de Santa Catarina.
- Juiz que multou
passeatas.
- Juiz da vara de
execuções que quase matou Genoíno, ao proibir sua saída do presídio para
se tratar em uma clínica cardiológica, após ter sofrido uma cirurgia
complexa em São Paulo.
- Juiz e
Procurador que denunciaram Lula pela licitação FX, fechada no governo
Dilma, e cuja decisão pelo Gripen foi do brigadeiro comandante da
Aeronáutica.
- Procurador que
ordenou a condução coercitiva de dezenas de funcionários do BNDES.
- Juiz e
Procurador que ordenaram o fechamento do Instituto Lula.
- Juíza e Delegado
responsáveis pela condução coercitiva de reitor e professores da
Universidade Federal de Minas Gerais.
- Delegado que
algemou pés e mãos do ex-governador Sérgio Cabral Filho.
- Juiz que ordenou
o desligamento de água e luz de escola ocupada por alunos do ensino médio.
- Juiz e
Procurador que tentaram apreender passaporte de Lula.
- Juíza e Promotor
que arruinaram a vida de estudantes, acusados falsamente no episódio em
que se envolveu um espião do Exército.
- Juiz e
Procuradora que denunciaram o Museu do Trabalhador.
- Juíza que
autorizou escuta que chegava até o Palácio do Planalto, a pretexto de
grampear o telefone de presos da Papuda.
- Presidente de
vários Tribunais Regionais Eleitorais, que autorizaram a invasão de
universidades por policiais militares, na véspera das eleições de 2018.
- Delegado que
invadiu a casa de filho de Lula, tendo como álibi uma denúncia anônima.
- Delegado que
invadiu Instituto Florestan Fernandes, do MST.
E muito
mais. Jamais foram apurados os atentados contra o Instituto Lula e contra o
ônibus que transportava uma comitiva de Lula no Rio Grande do Sul.
Tudo
isso se enquadra na psicologia de massa do fascismo, nas análises sobre a
banalização do mal. Criado o clima, só os caráteres mais fortes resistem. Os
demais se curvam aos seus interesses, ao espaço público conquistado e tratarão
de aderir, para não correr riscos. Entram no embalo e passam a normalizar todas
as práticas imorais.
A sorte
da democracia brasileira é que, na ponta fascista, estavam pessoas de baixo
nível político e intelectual. Houvesse um Golbery no grupo, a esta altura
teríamos ingressado irreversivelmente no período AI-5. Todos os demais
personagens reagiram da mesma maneira em 1994 a 2014.
¨
61 anos do golpe militar de 1964: lembrar nossos mortos
para que nunca mais aconteça. Por João Ricardo Dornelles
Mais um
dia 31 de março, mais um dia 1º. de abril, afinal tudo se passou há 61 anos
atrás naquela madrugada do dia da mentira.
Já são
61 anos daqueles acontecimentos dramáticos que mudaram a história do Brasil e
afundaram o país em um longo período de trevas que durou 21 anos. Muita coisa
aconteceu naqueles anos de chumbo, muita gente foi perseguida, muita gente
perdeu o seu emprego, muita gente foi presa, muita gente foi exilada, muita
gente foi torturada, muita gente foi morta, muita gente foi desaparecida:
Rubens Paiva, Stuart Angel, sua mãe Zuzu, Fernando Santa Cruz, Eduardo Collier
Filho, Mário Alves, Honestino Guimarães, Paulo Stuart Wrigth, Helenira Resende
de Souza Nazareth, Vladimir Herzog, Manuel Fiel Filho, Oswaldo Orlando da Costa
(Osvaldão), Iara Iavelberg, Marighella, Lamarca, Soledad Barrett Viedma e
muitos mais tiveram o mesmo destino trágico. Também temos a multidão das
vítimas desconhecidas, trabalhadores pobres, moradores das favelas, camponeses
e populações indígenas chacinadas pela expansão das fronteiras agrícolas do
agronegócio em formação e das atividades mineradoras. Foram 1.654 camponeses
mortos e desaparecidos na ditadura, segundo um estudo coordenado pelo
pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) e ex-preso político Gilney Viana,
número bem maior do que o constatado pela Comissão Nacional da Verdade.
Segundo
Eugênia Augusta Gonzaga, do Ministério Público Federal e Presidente da Comissão
Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), vinculada ao Ministério
dos Direitos Humanos e da Cidadania, passam de 10 mil o número de mortos e
desaparecidos políticos no Brasil, número bem superior aos 434 listados no
Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, de 2014. Em relação às
populações originárias, a Comissão Nacional da Verdade só conseguiu investigar
dez povos indígenas chegando a uma estimativa, já que não existe números
oficiais, de cerca de 9 mil mortos em decorrência de ações da ditadura. Todos
os pesquisadores, entidades indígenas e movimentos de direitos humanos informam
que os números são bem superiores. Um verdadeiro genocídio.
Aos
mortos e desaparecidos juntamos o grande número de torturados, exilados,
demitidos, censurados (homens, mulheres e crianças) pelo regime ditatorial. O
golpe de 1964 deu o sinal verde para a implementação da barbárie através de um
modelo de desenvolvimento fundado nas práticas da acumulação primitiva
permanente em nome de uma modernização autoritária e conservadora que
concentrou a riqueza e acumulou capital nas mãos de uma burguesia colonial
oligárquica e predadora.
Assim,
para (des)comemorar essa data tão vergonhosa, lembrar os mártires do povo
brasileiro e representar todo esse sofrimento imposto pelos bolsonaros da
época, relataremos um caso que poucos conheciam e que pode ser tão simbólico
como o de Rubens Paiva, a Chacina de Quintino.
O golpe
militar começou na madrugada de 31 de março para 1º. de abril de 1964,
instaurou um regime ditatorial, suprimiu direitos, prendeu, perseguiu, torturou
e matou desde os seus primeiros dias. No entanto, a partir do dia 13 de
dezembro de 1968, com a edição do AI-5, os generais-ditadores aprimoraram e
ampliaram a sua política de extermínio das esquerdas, de quaisquer formas de
oposição e do povo brasileiro. Era a fase da ditadura militar escancarada, com
uma perseguição, iniciada no dia 1º. de abril de 1964, que se ampliou
imensamente a partir de 1969. Foi o momento em que a repressão se expandiu,
onde não apenas os militantes revolucionários e oposicionistas políticos foram
perseguidos, mas também intelectuais, artistas, profissionais liberais etc. Foi
o momento do exílio de Chico Buarque, da prisão e exílio de Gil e Caetano, da
prisão de advogados de presos políticos como Heleno Fragoso. Também foi o
momento da guerra suja, do terror de Estado, da criação dos DOI-Codis, da
Operação Oban, das Casas da Morte, com a prática generalizada da tortura, das
execuções e dos desaparecimentos. Foi o período em que desapareceram Rubens
Paiva, Stuart Angel, Fernando Santa Cruz e muitos mais.
E foi
assim que, no dia 29 de março de 1972, em uma vila de casas no subúrbio carioca
de Quintino, na casa 72 do número 8988 da Av. Dom Helder Câmara ocorreu um
episódio que muitos só vieram a conhecer décadas depois. Naquele dia os jovens
militantes da organização VAR-Palmares, Lígia Maria Salgado Nóbrega, Antônio
Marcos Pinto de Oliveira e Maria Regina Lobo Leite Figueiredo foram executados
à sangue frio por agentes do DOI-CODI. Durante décadas esse episódio foi
esquecido. Ninguém o conhecia, nem mesmo muitos dos que lutaram contra a
ditadura militar. Foram mais de 41 anos para que a história fosse revelada após
uma intensa investigação da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro
(CEV-Rio).
Somente
após a rigorosa coleta de documentos, provas, visitas no terreno, entrevistas
com moradores do local e com o médico legista responsável pelos documentos
sobre os óbitos, a CEV-Rio em conjunto com a Comissão Nacional da Verdade (CNV)
realizou no dia 29 de outubro de 2013 o evento “Testemunho da Verdade”, onde
foram escutadas as falas de Fátima Setúbal, Lília Lobo e Iara Lobo de
Figueiredo, familiares e amigos das vítimas Antônio Marcos Pinto de Oliveira,
Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo e Lígia Maria Salgado Nóbrega,
assassinados pelas forças militares. A CEV-Rio apresentou os resultados da
investigação que revelou a verdade, desmoralizando a versão oficial de que
teriam sido mortos em meio à troca de tiros, mostrando como os militares
impediram que fossem divulgados os laudos cadavéricos que comprovavam a prática
de tortura e as execuções. O que se confirmou foi que foram presos, espancados
e executados no local, inclusive com o esmagamento das mãos das vítimas por
coronhadas de fuzil. A investigação foi realizada pela jornalista Denise Assis,
sob a minha responsabilidade como membro da Comissão da Verdade do Rio de
Janeiro. Vale a pena um pequeno parêntesis em relação ao trabalho de assessoria
da Denise junto à CEV-Rio. A conheci naquele momento e imediatamente percebi
que se tratava de uma das maiores e mais competentes jornalistas e
pesquisadoras do mundo, sendo uma especialista nas questões referentes à
ditadura militar no Brasil.
Voltando
à pesquisa da CEV-Rio, o trabalho realizado demonstrou que se tratava de uma
execução, com os três sendo mortos, após terem se rendido, com tiros na cabeça
e que em nenhum momento os militantes efetuaram disparos contra as forças da
repressão. A documentação referente à Chacina de Quintino foi cedida para a
Comissão Nacional da Verdade.
Lembrar
os 53 anos da Chacina de Quintino é um ato político de luta pela Memória,
Verdade e Justiça que se junta ao filme “Ainda Estou Aqui”, à lembrança de
outras vítimas da ditadura, seus familiares e contra os que continuam ameaçando
as liberdades democráticas e os direitos humanos no nosso país. E é muito
significativo que essa demonstração de repúdio à ditadura militar, aos
ditadores e torturadores ocorra na semana em que o STF tornou réus os
admiradores da barbárie Jair Bolsonaro e generais das forças armadas.
Mais
uma vez, no final de outro mês de março, é um dever da cidadania relembrar tudo
isso para que ninguém esqueça e para que nunca mais aconteça. Se eles ainda
andam por aí é bom lembrar que também nós estamos aqui.
Fonte:
Jornal GGN/Brasil 247
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