Leice Garcia: Uma única mulher no STF e uma
aula de defesa da democracia
A Ministra Cármen Lúcia, atualmente a única
mulher no Supremo Tribunal Federal (STF), proferiu um voto magistral no
julgamento da Primeira Turma sobre a denúncia da Procuradoria-Geral da
República (PGR) contra o ex-presidente Bolsonaro e outros sete acusados pela
tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022. Seu voto teve um fio
condutor claro: a defesa da democracia.
- Golpes não
acontecem em um dia
A Ministra iniciou sua manifestação citando a
historiadora Heloisa Starling, da UFMG, para reforçar um ponto essencial:
golpes não ocorrem em um dia e tampouco se encerram em uma semana. No Brasil,
há uma cultura de tentativas de ruptura institucional, uma espécie de
"máquina" golpista que opera ao longo da história. Essa dinâmica se
manifesta em tentativas de impedir posses de vice-presidentes, na destituição
de presidentes de forma questionável e na tentativa de uso do Judiciário como
instrumento de desestabilização.
No contexto dos ataques do 8 de janeiro de
2023, a Ministra apontou que sinais de instabilidade já estavam colocados. Ela
fala em “ruído debaixo dos pés”. Por isso o STF antecipou a diplomação do
Presidente eleito e a tensão cresceu na véspera dos ataques. A Presidente do
STF à época, Ministra Rosa Weber, telefonou insistentemente para autoridades,
alertando sobre ônibus, lotados de manifestantes direcionados à Praça dos Três
Poderes. O pedido de reforço na segurança não foi atendido.
As provas nos autos demostram que os
acontecimentos não foram atos espontâneos. Foi um movimento que incluiu
campanhas de desinformação contra as urnas eletrônicas, tentativas de impedir
eleitores de votar e ataques sistemáticos a instituições democráticas.
A democracia vive da confiança, a ditadura da
morte
Por que esses ataques podem ser aceitos como
evidências de tentativa do golpe? Para Cármen Lúcia, porque a democracia se
sustenta na confiança da sociedade em suas instituições. É a confiança na
garantia dos direitos individuais e coletivos, inclusive o da vida, que faz com
que a população rejeite regimes autoritários. Perdida essa confiança, a
população pode agir contra os próprios interesses. Em um dos momentos mais
fortes de seu voto, a Ministra nos alerta:
“Ditadura vive da morte. Não apenas da
sociedade, não apenas da democracia, mas de seres humanos, de carne e osso, que
são torturados, mutilados, assassinados, toda vez que contrariar o interesse
daquele que detém o poder para o seu próprio interesse.”
Sua reflexão reforça um ponto central:
independentemente da ideologia, toda ditadura massacra indivíduos e
coletividades. Quando o Estado de Direito é destruído, resta o arbítrio de quem
ocupa o topo do poder. Ainda que a democracia tenha falhas, nela se pode
resistir, lutar para promover mudanças, sem o risco do arbítrio.
O julgamento de um golpe fracassado e o
futuro da democracia
Assim, não basta que sejamos contra golpes;
precisamos enfrentar a cultura golpista que age no Brasil. Este julgamento é um
marco histórico: pela primeira vez, uma tentativa de golpe está sendo julgada.
E isso pode desmascarar justificativas oportunistas e manipuladoras sempre
utilizadas.
Não, o golpe de 1964 não visava salvar o
Brasil do comunismo. Em 2022, a questão não eram riscos de comunismo, ameaças
econômicas ou problemas morais da esquerda. Eram projetos pessoais de poder de
autoridades visando manipular a população para viabilizar mais uma ruptura
democrática.
Felizmente, o golpe não deu certo, e a
história está sendo contada não pelos golpistas, mas pela resistência
democrática.
¨
Por quem bate o coração
debaixo da toga? Por Sylvia Debossan Moretzsohn
O que inicialmente causou estranheza por
parecerem intervenções extemporâneas rapidamente passou a fazer sentido. Um
sentido que deve preocupar quem comemorou a decisão unânime da sessão da
Primeira Turma do STF, que deliberou pelo acolhimento da denúncia que tornaria
Bolsonaro e seus parceiros réus no processo de abolição violenta do Estado de
direito e tentativa de golpe de Estado.
Nessa sessão, o ministro Luiz Fux fez duas
observações aparentemente sem relação com o tema: sobre o julgamento da moça
que pichou com batom a estátua representativa da Justiça, em frente ao STF, no
ataque à Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, e sobre a discussão
relativa ao entendimento de que crime tentado já seria crime consumado, no caso
da tentativa de golpe que será objeto do julgamento – não sem antes, também,
discordar do julgamento de Bolsonaro pela primeira turma do STF, e não pelo plenário
da corte.
Sobre o julgamento da moça do batom na
estátua, Fux disse que pediu vistas do processo por considerar a pena
excessiva, e apelou ao sentimento:
“Nós julgamos sob violenta emoção após a
tragédia do 8 de janeiro, eu fui ao meu ex-gabinete, vi mesas queimadas, papéis
queimados. Mas eu acho que os juízes, na sua vida, têm sempre de refletir dos
erros e dos acertos, até porque os erros autenticam a nossa humanidade, debaixo
da toga bate o coração de um homem. Então é preciso que nós tenhamos também
essa capacidade de refletir, e que muitas vezes aqui é utilizado como evoluir o
pensamento, ou involuir, dependendo da ótica de alguns”.
Teria sido um erro, portanto, a decisão de
Alexandre de Moraes de sentenciar a moça a 14 anos de prisão.
Em momento nenhum, na discussão pública sobre
o tema, alguém levantou a questão da progressão da pena, que sempre é
questionada – com sinal trocado, no clássico argumento punitivista – quando se
trata de crimes comuns, às vezes muito graves, mas jamais tão graves quanto a
tentativa de abolição do regime democrático: teve a pena máxima, mas só vai
passar um terço do tempo preso, e terá outros benefícios, daqui a pouco já
estará na rua! Não, a ênfase foi sempre na desproporcionalidade da punição face
a um ato tão inofensivo como escrever uma frase inocente numa estátua. Coisa
que se apaga com uma escova e um balde d’água.
Inútil argumentar, como fez o ministro
Alexandre naquela sessão, em resposta a Fux, e como tantas vezes se fez diante
do protesto de bolsonaristas e certos juristas, jornalistas e articulistas, que
a condenação era pelo conjunto da obra, pelos vários crimes cometidos pelas
pessoas que participaram daquele ato.
O que pareceu, entretanto, apenas um desvio
da questão principal abordada naquela sessão do STF teve consequências
imediatas: dois dias depois, na sexta-feira, 28 de março, o procurador-geral da
República, Paulo Gonet, pediu prisão domiciliar para a moça, “ao menos até a
conclusão do julgamento”, agora suspenso, considerando que se trata de mãe de
duas crianças menores de idade. Foi imediatamente atendido por Alexandre.
(Isso levou um representante do grupo
jurídico Prerrogativas a pedir a extensão da medida à generalidade de mães de
menores presas por outro tipo de delito: as pretas e quase pretas de tão
pobres, das quais ninguém se lembra. Em 2018, o STF concedeu habeas corpus
coletivo a todas as presas grávidas e mães de crianças até 12 anos, desde que
obedecidas certas condições, e uma reportagem do Conjur sobre o
tema, demonstrou o quanto é complexa essa discussão).
Em suma: a cabeleireira que escalou a estátua
da Justiça para escrever nela o “Perdeu, Mané”, devolvendo ao ministro Luís
Roberto Barroso a resposta que ele deu a um bolsonarista que o abordou em Nova
Iorque após a vitória de Lula, para mostrar que quem ri por último ri melhor, a
cabeleireira que deixou sua marca de batom na estátua e desenhou em seu próprio
rosto o sorriso de escárnio do Coringa e pintou a palma das mãos com o mesmo
vermelho do batom e as exibiu ao público tal qual o personagem do filme diante
da multidão de rebeldes contra o “sistema”, essa cabeleireira não cometeu
nenhum crime grave. Venceu o discurso, ou melhor, a “narrativa” falaciosa de
que ela apenas pichou uma estátua, naquele dia em que a multidão de fanáticos
tentou promover o caos que levaria à decretação do estado de sítio e,
consequentemente, ao golpe.
Sobre esse caso, o ministro Barroso lembrou
de um verso do “Fado Tropical”: “O Brasil tem uma característica que na hora em
que os episódios acontecem as pessoas têm uma indignação profunda, e depois, à
medida que o tempo passa, elas vão ficando com pena. É um verso do Chico
Buarque que diz: ‘Se a sentença se anuncia bruta, mais que depressa a mão cega
a executa, pois que, senão, o coração perdoa’. Portanto, nós fomos da
indignação à pena, porém a não punição desse episódio pode fazer parecer que na
próxima eleição quem não estiver satisfeito pode pregar a derrubada do governo
eleito e pode invadir prédios públicos. Não é bom para a democracia nem para o
futuro do país que prevaleça esse tipo de visão”.
Restaria saber por que esse sentimentalismo
sempre foi seletivo na nossa história. Pois a mão só foi cega na execução à
esquerda. À direita, jamais. Pelo contrário, sempre a anistiou.
A justificativa prevalecente na análise dessa
medida é a de que o caso da moça do batom na estátua era um espantalho que
precisava ser afastado para que se esvaziasse o apelo à anistia no qual estão
empenhados os representantes bolsonaristas no Congresso. O efeito, entretanto,
parece ter sido o oposto: imediatamente após a notícia, o líder do PL na
Câmara, Sóstenes Cavalcante, pediu o benefício a outros presos pelos ataques no
8 de janeiro.
Já o questionamento sobre o entendimento de
que o crime (de planejamento de golpe de Estado) significaria a sua consumação
envolve o cerne da discussão do julgamento. Fux declarou: “Há aqueles que
entendem que a tentativa de golpe já é um atentado contra a democracia. Agora,
a partir do momento que o legislador cria o crime tentado como consumado, no
meu modo de ver há um arranhão na Constituição Federal, e também não se cogitou
nem de atos preparatórios nem de tentativa do crime tentado, que é em caso consumado”.
Pelo Código Penal, crime tentado é aquele que
se inicia e não se consuma devido a circunstâncias alheias à vontade do agente.
O criminalista Davi Tangerino, em entrevista ao podcast O Assunto,
de Natuza Nery, diz que Fux não precisaria ter dado esse recado na votação pelo
recebimento da denúncia naquela sessão do STF. Resolveu dar. E estaria correto
ao assinalar que “esse é o grande tema de direito penal material que será
enfrentado pelo STF no julgamento do mérito dessa ação”. Pois se trata de
discutir se houve o início da tentativa de cometer o crime, que não se
confundiria com a ideia (o planejamento?) de dar golpe. “Vamos ter de ver
quando é que o Estado democrático esteve em risco, e se esteve”.
Pois vamos, por mais que tenhamos provas
incontestáveis das inúmeras ameaças que Bolsonaro fez ao longo de seu mandato,
antes do plano do Punhal Verde e Amarelo descoberto pela Polícia Federal. O
devido processo precisa seguir, ainda que tardio, e um contraponto como o de
Fux vem sendo comemorado pelos advogados dos réus como a quase certeza de que a
decisão não será unânime, o que dará margem a recursos e à protelação do
resultado, que seria empurrado para o ano das eleições.
“In Fux we trust”, escreveu em 2016 o então
juiz da Lava Jato Sérgio Moro ao também então procurador Deltan Dallagnol, que
relatava uma conversa promissora com o ministro, exposta na série de
reportagens conhecida como Vaza Jato, do Intercept Brasil. Aqueles
procuradores, aqueles meninos de preto que abririam caminho aos kids pretos da
conspiração golpista.
O sensível coração que bate sob a toga,
comovido pelo destino da cabeleireira do batom na estátua e cara e mãos
pintadas de Coringa, será também sensível ao idoso cuja prisão significará a
morte? Aquele idoso que o tempo todo ameaçou fechar o tempo (“acabou, porra!”)
e desdenhou da morte das milhares de pessoas que sucumbiam sufocadas durante a
pandemia?
Quem sabe.
Será que algum dia esta terra ainda vai
cumprir seu ideal?
Fonte: Brasil 247/Come Ananás
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