A crise climática tem cor e CEP, afirma Igor
Travassos
Conversa
em podcast discute o lado político das mudanças climática, as diferenças de
impactos em cada território e a importância do trabalho em conjunto entre
sociedade e poder público
“Não
estamos todos no mesmo barco.” É assim que responde Igor Travassos,
do Greenpeace Brasil, quando perguntado sobre os impactos mundiais da
crise do clima. As causas dessa desigualdade climática, formas de atuação da
sociedade civil e o papel do poder público são os principais temas da conversa
entre Igor e o geógrafo Bruno Araújo para o
podcast Planeta A.
Para o
integrante do Greenpeace, é fundamental que
as populações mais vulnerabilizadas tenham maior amparo do poder público no
enfrentamento aos impactos da mudança climática, já que são os mais atingidos. “Essas
populações que são mais impactadas não são vulneráveis, elas são
vulnerabilizadas pela omissão das políticas públicas. Elas já criaram condições
de coexistência. O que elas precisam é de estrutura, de que várias dessas
soluções, dessas tecnologias sociais que já foram desenvolvidas no território,
tenham o suporte da política pública. Que os governos, os tomadores de decisão,
enxerguem e não façam política pública para essas pessoas. É fazer política
pública com essas pessoas. Para e por essas pessoas e esses territórios”,
explica ele no podcast, republicado na íntegra em ((o))eco.
Igor é
cineasta e comunicador e atualmente lidera a frente de Justiça Climática do Greenpeace
Brasil.
“Se a gente olhar para os históricos de eventos extremos no Brasil, vemos
sempre que quem morre tem uma cor, tem um CEP, e essa cor e essa
localização são sempre pessoas negras ou indígenas em contexto urbano, falando
especificamente dos centros urbanos, e estão nas periferias”, disse.
<><> Eis a entrevista.
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A crise climática é um
fenômeno global que atinge o planeta inteiro. Estamos todos no mesmo barco?
Igor Travassos: Não, não estamos no mesmo barco.
A crise
pode existir para todos, mas tem gente que está de caiaque, enquanto tem gente
que está de transatlântico. Então, as condições são diferentes, porque nós
vivemos numa situação de desigualdade no mundo todo.
Então, tem gente que, em uma alta temperatura, por exemplo, vai ter condição de
uma climatização, vai ter condição de comprar um ar-condicionado e manter esse
custo de energia e isso é uma situação muito básica. E tem gente que não, que
vive numa precariedade, não tem condições mínimas para lidar com isso. Só
trazendo esse exemplo. Mas, na verdade, são exemplos muito mais complexos,
situações muito mais complexas do que essa. Porque a gente vive num estado de
desigualdade.
Se a
gente olhar para a realidade brasileira, por exemplo, ela é constituída a
partir de uma situação de desigualdade. Na geopolítica internacional, a gente tem um
histórico de colonização e exploração do norte global, tanto de recursos
naturais, como também da exploração da mão de obra, da exploração humana do
norte global para o sul global. Então, a gente não tem a mesma capacidade
e estrutura de responder, então não estamos no mesmo barco.
·
Queria que você falasse
agora um pouco sobre o trabalho que vocês vêm desenvolvendo na frente do
Greenpeace. Como é o trabalho? Como vocês se articulam? Qual é a prioridade do
Greenpeace nesse momento?
Bom,
o Greenpeace é uma organização que, no Brasil, atua mais de 30
anos na defesa e na proteção da sociobiodiversidade e faz isso a partir de
campanhas de mobilização, de engajamento da população para incidência política,
para a cobrança dos tomadores de decisão e para essa proteção da sociobiodiversidade. Existe um trabalho
reconhecido na proteção dos biomas, no caminho para um desmatamento
zero, da não continuidade da exploração do petróleo, na mudança da matriz
energética… Enfim, caminhos que são de mitigação. No entanto, acho que não só
o Greenpeace, mas o ecossistema de organizações, e organizações não só
socioambientais, mas de direitos humanos, têm entendido que a crise climática,
ela é agora, ela está acontecendo agora, e que as pessoas estão morrendo por
causa da crise climática.
Então,
a gente precisa agir agora por precisar garantir os direitos fundamentais e
constitucionais da população. Não só o Greenpeace, mas várias organizações
da sociedade civil, começaram a pensar e pautar sobre adaptação. Então, se a
crise está posta, a gente precisa continuar os esforços na preservação do meio
ambiente, na restauração, basicamente, no replantar, na reconstrução, mas
também a gente precisa se adaptar a essa nova realidade. E se adaptar a essa
nova realidade não é simplesmente aumentar a capacidade de resiliência urbana, infraestrutura
urbana, mas na verdade é adaptar a sociedade, adaptar vários setores econômicos
e sociais para lidar com esse cenário que a gente está vivendo, que como a
gente tem repetido muitas vezes, vai ficar cada vez mais intenso e mais
frequente e que a gente precisa, sobretudo, garantir o direito à vida das
pessoas.
·
A palavra adaptação, na
verdade, essa ação de adaptar, ela está muito em alta, tanto nas discussões
internacionais, com a discussão sobre, por exemplo, o Fundo Internacional de
Adaptação e Perdas e Danos, mas também tem chegado na escala local, tendo em vista
que a crise climática já produz os seus efeitos no nosso dia a dia. Surgiu lá
no Rio Grande do Sul, depois das enchentes, várias propostas de adaptação,
várias iniciativas do Governo do Estado de Adaptação e algumas muito criticadas
pela sociedade. O que a gente está falando ou o que a gente precisa mobilizar
quando fala de adaptação? Que adaptação é essa que a gente precisa construir?
Quais são as características dessa adaptação?
A crise é global, mas os efeitos,
quem sente, é local. A gente não tem adaptação, ela não é receita de bolo. A
gente não simplesmente adapta todos os territórios da mesma forma. Estamos
falando de territórios, de regiões, cidades, que têm características culturais,
sociais, geológicas e hidrológicas completamente
diferentes. Se a gente olhar para um país com a dimensão continental que a
gente tem, como o Brasil, a gente não pode achar que as soluções serão as
mesmas para todo lugar. Se a gente olhar para o próprio estado do Rio
Grande do Sul, as soluções que vão ser desenvolvidas para Porto
Alegre já são diferentes para o Vale do Taquari. As soluções para
Porto Alegre não vão ser as mesmas para o Rio de Janeiro, para São
Paulo, para Recife ou para Belém.
Cada
território tem sua composição, sua constituição. Então, a gente precisa
justamente considerar isso e considerar as pessoas que estão sendo mais
impactadas. As pessoas estão sendo impactadas de forma desigual, mas esse
convívio com esses impactos desiguais também não é de agora. Então, essas
populações que são mais impactadas, elas não estão sendo mais impactadas agora,
elas já vêm sendo mais impactadas há muito tempo. Essas populações que são mais
impactadas não são vulneráveis, elas são vulnerabilizadas pela omissão das políticas públicas. Elas já criaram
condições de coexistência. O que elas precisam é de estrutura, de que várias
dessas soluções, dessas tecnologias sociais que já foram desenvolvidas no
território, tenham o suporte da política pública. Que os governos, os
tomadores de decisão, enxerguem e não façam política pública para essas
pessoas. É fazer política pública com essas pessoas. Para e por essas pessoas e
esses territórios.
Então,
o que a gente tem pautado é que, como a adaptação não é receita de bolo, a
gente precisa que a adaptação, ela seja pensada e construída com quem mais é
impactado e que já tem várias soluções para convívio, para adaptação.
O que a
gente tem olhado e pesquisado é o maior programa de adaptação do mundo, que é
o programa de cisternas. É um programa de
desenvolvimento social que foi construído a partir de organizações da sociedade
civil para a convivência no semiárido com a escassez hídrica. E que isso, na
verdade, a escassez hídrica é um efeito das mudanças climáticas e tem
se intensificado também a partir das mudanças climáticas. E aí essa tecnologia
que foi implementada inicialmente para o semiárido brasileiro, ela pode hoje, a
gente está lidando com uma seca na região norte.
·
A gente falou sobre as
desigualdades dessa crise e como essa crise impacta de maneira diferente em
territórios diferentes. Então eu queria que a gente agora conversasse sobre um
termo que é muito utilizado quando se noticia esses eventos climáticos extremos,
que é o desastre natural. Existe de fato o desastre natural? Esses fenômenos
podem ser considerados desastres naturais?
Eu acho que a gente precisa desnaturalizar os desastres, porque se eles acontecem como acontecem no âmbito do
desastre é justamente pela falta de estrutura de políticas públicas destinadas
para estruturar aqueles territórios. Porque o que a gente mais vê, por exemplo,
é uma mesma cidade recebendo a mesma quantidade, mesmo milímetros de
pluviometria de chuva, por exemplo, e os efeitos são completamente diferentes.
O orçamento público, que é destinado
para áreas nobres das cidades, para fazer macro e microdrenagem, por exemplo, é
completamente diferente do que é destinado para as periferias. Por que a gente
fala muitas vezes sobre racismo ambiental? Justamente porque quando a gente vai
olhar sobre onde o poder público age, onde o poder público estrutura, prepara e
cria resiliência urbana, é justamente nos lugares onde as populações
negras não estão. O olhar da política pública, o investimento da política
pública tem sido para as áreas nobres, as áreas embranquecidas das
cidades. Se a gente olhar para os históricos de eventos extremos que a gente vê
no Brasil, vemos sempre que quem morre tem uma cor, tem um CEP, e essa cor
e essa localização, são sempre
pessoas negras ou indígenas em contexto urbano, falando
especificamente dos centros urbanos, e estão nas periferias.
O desastre natural já não é tão natural
assim. Na verdade, é um desastre político. Esse desastre da crise climática é
socialmente construído a partir de ações do poder público de alocação de
recursos em determinadas áreas da cidade e não em outras, e das inações do
poder público de promover ações de adaptação para esses territórios que estão
mais vulnerabilizados.
·
Isso tudo me faz
refletir que a crise climática é um vetor de potencializar as desigualdades que
já existem na nossa sociedade. A chuva, quando cai do céu, encontra uma
sociedade desigual e potencializa essas desigualdades por um conjunto de
fatores que a gente falou. É saneamento básico, localidade onde está a
residência, a drenagem daquele bairro, a relação daquele bairro, se ele está
perto de corpo hídrico ou se ele não está perto de corpo hídrico, enfim…Uma
série de fatores que estão muito relacionados à terra também, a ocupação da
terra urbana. Recentemente aconteceu o lançamento da rede de adaptação
antirracista em Pernambuco e eu queria que você dissesse para a gente o que é
essa rede e por que a gente precisa de uma adaptação antirracista?
Quando
a gente fala sobre as populações que são atingidas de forma desigual
pelas mudanças climáticas, a gente tem que olhar o porquê. E o porquê
disso está justamente ligado à desigualdade que acontece na formação da
sociedade brasileira, do território brasileiro. Então a gente está
falando, primeiro, desde a colonização por si só. Então olharam esse território
aqui como se fosse de ninguém, quando na verdade existiam os povos indígenas
aqui. Então essa terra tinha dono e uma propriedade que não era capitalista,
era propriedade compartilhada. Enfim, é a terra como parte da identidade de um
povo.
Então
já temos a colonização de uma forma geral sendo do jeito que ela é ainda hoje
esse olhar para a natureza como um produto e também para as pessoas como um
produto. E essa colonização traz a escravização junto.
Desse processo, a gente tem os povos indígenas e os povos negros,
de África que foram escravizados, colocados ali como de fato
sub-humanos, populações sem alma, sem direito a nada, então como indigentes.
Isso se constitui na sociedade brasileira, a ocupação do espaço urbano
desse território, ela se dá à base do extermínio, da violência, da negação da
vida. Nesse processo, quando a gente tem a abolição, por exemplo, da escravidão
no país, a gente não acaba com o racismo. Na verdade, a gente transforma. Ele
não está baseado mais no sistema escravocrata, mas está na base da sociedade.
Quando
a gente pensa sobre como que a gente faz para lutar por uma justiça climática,
como que a gente faz para que esses efeitos provocados pela crise climática não sejam
desiguais, sejam simplesmente as ações e práticas que a sociedade precisa ter
para enfrentar e para conviver de forma igualitária. Óbvio que isso é utópico,
porque a gente está baseado e constituído em desigualdade. Já que a gente está
baseado e constituído em desigualdade, a gente precisa corrigir isso com
equidade. Equidade é olhar para as diferenças, olhar para essas desigualdades e
entender que a gente precisa de mais esforços para corrigir erros, que
são erros históricos. Quando a gente fala sobre uma adaptação
antirracista, é uma adaptação que considere a perspectiva das pessoas mais
impactadas. E quem são as pessoas mais impactadas no Brasil? Racialmente
falando, são pessoas negras e indígenas. Quando a gente fala sobre gênero,
são mulheres. Quando a gente fala sobre perfil etário, são
as crianças e os idosos. Porque uma cidade, um território,
enfim, um país bom e preparado para lidar com as mudanças climáticas, da
perspectiva da população negra, é um país bom e preparado para qualquer pessoa.
Para a gente, não existe adaptação se ela não for antirracista.
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Recentemente, a Anielle Franco, que é ministra da
Igualdade Racial, fez um post nas redes sociais falando sobre racismo ambiental. E esse material
viralizou, tanto a direita quanto a esquerda começaram a debater sobre esse
tema. Eu queria que você explicasse o que é o racismo ambiental.
Em janeiro deste ano, 2024, a partir das
chuvas aqui da Baixada Fluminense, a Anielle publicou sobre
racismo ambiental, mas não é a Anielle que inventou esse termo.
O Benjamin Franklin Chavis, pensador norte-americano, que cunhou o termo
racismo ambiental. Mas também não é ele que inventa o racismo ambiental. Na
verdade, se cria o conceito, mas o racismo ambiental, se a gente pensar na
formação do Estado brasileiro, desde que
o Brasil é Brasil a gente vive o racismo ambiental. Quando
a colonização, os portugueses chegam aqui e acham que podem fazer o que
quiserem, não consideram inclusive a ocupação indígena, a existência dos
povos indígenas aqui, acham que eles são donos dessa terra, isso já mostra, já
é puro e simples racismo ambiental.
E aí, a partir disso, ano a ano dessa
ocupação, da colonização e da estruturação,
dessa urbanização colonial que a gente tem e que segue até hoje, a
gente só alavanca, só impulsiona, o que é o racismo ambiental. Hoje, na forma
da urbanização que a gente tem, da ocupação das cidades, da formação das
cidades, isso está muito presente na ocupação dos territórios. Então, como por
exemplo, racialmente, a cidade é ocupada.
A gente tem que, antes de tudo, voltar
algumas casinhas e pensar sobre racismo, sobre racismo enquanto ideia, não
enquanto estrutura ou sistema, mas enquanto ideia. Uma ideia de superioridade,
uma ideia de que um grupo é superior a outro em existência.
Então, eu posso fazer o que eu quero com
aquele outro grupo, porque ele é inferior a mim, eu sou superior. Essa ideia de
superioridade, de supremacia. Isso é colocado, inclusive, na própria condição
humana de se achar superior a outras espécies. Posso explorar a natureza porque
eu sou superior a ela. Isso está como ideia. Então, essa ideia estrutura um
sistema. E aí, a gente tem à disposição dos territórios o que a gente chama de
racismo ambiental. Que, na verdade, é um conjunto de coisas. A gente hoje, por
exemplo, fala que os eventos climáticos extremos materializam o racismo
ambiental. Porque eles mostram para todo mundo quem é que morre quando vem as
fortes chuvas. Que foi exatamente a pergunta, a explicação da ministra.
Ela justamente falando que só pessoas negras
periféricas morreram aqui no Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense,
em janeiro. E que isso evidenciava o que era racismo ambiental.
·
Igor, para a gente
terminar, eu queria te perguntar uma recomendação de leitura ou série. O que
você está lendo? O que você está vendo nesse momento?
Uma
leitura muito boa para mim é o livro Racismo Ambiental e Emergências
Climáticas, que foi desenvolvido pelo Instituto de Referência
Negra Peregum, organizado pela Mariana Belmont, com a Aura Leituras. Esse
livro está disponível online e gratuito.
Também eu acho que
uma série interessante para pensar sobre o futuro, acho que
é Extrapolations. É uma série que está na Apple TV, que fala a partir
desse contexto que a gente inclusive vai viver no próximo ano
de COP e futuro. O que a gente está lidando nessas discussões. Acho
que é ficção. Então a gente olha para frente nessa ficção. Acho que é
interessante da gente pensar um pouco.
E recomendo uma leitura que eu gosto muito,
O Caminho de Casa, de Yaa Giasi. É um livro que vai de geração
a geração acompanhando o fruto, na verdade, da separação e do racismo a partir
de duas pessoas, duas mulheres de uma mesma comunidade que a partir do racismo,
a partir da colonização, são separadas e tomam rumos diferentes.
E a gente acompanha capítulo a capítulo a
geração seguinte. E isso vai até a década de 70 nos Estados Unidos. E é
bem interessante da gente entender como o racismo opera em suas diferentes
esferas. Não é sobre racismo ambiental, mas é sobre racismo, sobre populações e
existências das subjetividades negras também. Então é isso.
Fonte: ((O))eco
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