Mudança
na cidadania italiana frustra descendentes no Brasil
Governo
italiano afirma que decreto que endureceu regras pretende coibir abusos de
indústria milionária. Mas também estão em jogo memórias afetivas e
reconhecimento histórico, especialmente entre colonos.
A
gaúcha Geniana Finatto cresceu comendo polenta, tomando vinho caseiro e
cantando músicas em talian, o dialeto de base vêneta nascido e cultivado entre
colonos italianos no Sul do Brasil. Bisneta e tataraneta de emigrados
a São Domingos do Sul, onde a prefeitura estima que 65% dos quase 3 mil
habitantes sejam de origem italiana, ela sempre se sentiu brasileira em primeiro
lugar — e italiana, em segundo.
Mas, na
sexta-feira (28/03), ela viu parte da sua identidade colocada em xeque. Nesse
dia, o governo da Itália publicou um decreto que restringe a
obtenção da cidadania por direito de sangue, conhecido como "jus
sanguinis", a filhos e netos de quem nasceu no solo da Itália.
As
regras anteriores não impunham limite de gerações, contemplando descendentes
dos primórdios da imigração italiana ao Brasil, que completou 150 anos em 2024. Qualquer pessoa que
pudesse provar que teve um ancestral italiano vivo após 17 de março de 1861,
quando se formou o Reino da Itália, estava apto a solicitar a cidadania.
Vinte
pessoas da família de Geniana se preparavam para iniciar um pedido conjunto
para a obtenção da cidadania. Pelo menos por enquanto, está frustrado o sonho
de ver as raízes reconhecidas no papel.
"Toda
a minha família veio da Itália, por parte de mãe e de pai. Eles sempre foram
muito ligados à cultura italiana, e eu cresci no meio disso", diz Geniana.
"Isso mexe, pelo menos para mim, com o emocional. Com a minha história. É
como se eles falassem que eu não sou italiana."
Em
vigor imediato para novas solicitações de cidadania, o "pacote
cidadania" ainda precisa ser aprovado no Parlamento dentro de 60
dias. Observadores prevêem uma batalha difícil para os críticos que tentarem
reverter ou alterar a decisão pela via legislativa, sob o argumento da
inconstitucionalidade.
- Barrados na
última hora
A
notícia caiu como uma bomba para quem já fechara contratos com assessorias
especializadas, mas não abrira formalmente a solicitação de reconhecimento da
cidadania.
O custo
do serviço gira em torno de 10 mil reais no Brasil, onde 20 mil pessoas tiveram
a cidadania reconhecida só no ano passado. O governo italiano ainda dobrou
para 600 euros os custos administrativos em 2025.
Estima-se
que o Brasil tenha 32 milhões de ítalo-descendentes. Na Argentina, outro
destino comum dos colonos italianos nos séculos 19 e 20, foram outros 30 mil
reconhecimentos em 2024.
Para a
veterinária Isabella Cozadi, também bisneta de italiano em Minas Gerais, a
reviravolta foi rápida. Dois dias antes do decreto, ela havia decidido dar
início ao processo, 30 anos depois de os primeiros membros da família terem
buscado informações sobre a probabilidade de conseguirem comprovar a linhagem
italiana.
A
família foi desencorajada por várias empresas, uma vez que o antepassado
emigrante tivera o nome e o ano de nascimento modificados ao chegar ao
Brasil. Na quarta-feira (26/03), finalmente Isabella tinha achado um
advogado disposto a apostar no seu caso.
"Cresci
com meu pai contando histórias sobre o avô dele. Eu e minha irmã ouvíamos como
ele dizia com orgulho a sua origem: ‘Lauria, província de Basilicata,
Itália!'", relembra Isabella. "Nós nos reconhecemos como descendentes
de italianos, e nos empolgamos muito na semana passada. Depois, vivemos uma
montanha russa."
Os
cinco requerentes da família vão prosseguir com o processo, apostando que o
decreto será revertido. "Se depender da Constituição, ainda temos
esperança."
- A cidadania como
produto?
O
governo italiano argumenta que as novas restrições são urgentes para evitar
mais fraudes e a "comercialização" da nacionalidade italiana por uma
indústria milionária de assessorias especializadas, que atuam principalmente na
América do Sul.
A
atividade vinha sendo alvo da imprensa italiana, com críticas ganhando
tração após algumas empresas terem apostado em promoções na Black Friday do ano
passado.
Um
artigo do jornal italiano Corriere Della Sera chegou a chamar
de "pecado original" a lei de 1992 que permitiu aos descendentes de
emigrantes italianos reivindicar a cidadania, ao citar pequenos municípios do
Vêneto sobrecarregados com milhares de pedidos de brasileiros. A região é uma
das origens mais comuns dos ítalo-brasileiros.
É comum
a queixa de que os novos cidadãos nem mesmo vão à Itália para fazer a papelada
ou para se conectar com a cultura.
"A
discussão é positiva. Como cidadã, acho que as pessoas têm que aprender a
língua e conhecer a História italianas. Mas a lei pode intermediar isso sem um
decreto tão radical e abrangente, que não olha a situação como ela
verdadeiramente é", opina a advogada Kamila Lammoglia, reconhecida
italiana em 2020, junto com seus dois filhos.
Ela
agora teme que a sua terceira filha, de 10 meses, seja a única no núcleo
familiar sem a dupla nacionalidade. A família se prepara para passar um ano na
Itália a fim de aprimorar o idioma e o conhecimento sobre a cultura. "Como
você explica isso para uma criança? Como pedir que ela ame um país que lhe
negou esse direito?", diz.
- Mais que
passaporte, projeto de vida
Após a
aprovação do decreto, o ministro das Relações Exteriores, Antonio Tajani, disse
que a nacionalidade não pode ser "um instrumento para viajar a Miami"
com mais facilidade. "Não estamos dispostos a vender a cidadania, pois ser
italiano é uma coisa séria", afirmou o político, segundo a agência Ansa.
A
obtenção de cidadania, entretanto, passa longe de ser fácil, exigindo até
vários anos de trâmites burocráticos para requerentes. E também serve como
porta de entrada para quem deseja tentar a vida na Europa, a fim de suprir a
demanda por mão de obra num contexto de redução populacional.
Em
2024, a Itália bateu o recorde negativo da sua taxa de fecundidade, com apenas
370 mil nascimentos, de acordo com dados oficiais.
"A
sensação geral é de muita tristeza. Como se fosse um sonho roubado. Eu trabalho
com pessoas que enxergam na cidadania italiana uma possibilidade de vida nova.
É um projeto de vida", diz a advogada Gabriela Tremarin, especializada na
obtenção da cidadania italiana.
- Reconhecimento
histórico
Mesmo
admitindo a necessidade de coibir abusos e discutir a atualização da
legislação, críticos argumentam que o direito à cidadania não é tema a ser
legislado por decreto.
"As
fraudes e a banalização da cidadania são vergonhosas, que nada têm a ver com a
importância de um direito como o da cidadania. Tudo isso pode ser perseguido
através de uma modificação da lei, procedimentos e medidas para barrar
articulações fraudulentas", diz Fabio Porta, deputado eleito pelos
cidadãos italianos na América do Sul. "Mas você não pode jogar fora a
criança junto com a água da banheira."
Muitos
ainda argumentam pelo reconhecimento do papel
histórico dos colonos que fugiram da pobreza à América do Sul, onde
enfrentariam vidas de trabalho árduo e sacrifícios. E construiríam novas
famílias — não raro numerosas, como a de Geniana.
"Os
meus avós sempre trabalharam na roça, em condições bem humildes, com uma
família grande. Eles plantavam o que eles consumiam. Sempre foi uma história
difícil, com muitas restrições", diz Geniana. "É como se a cidadania
fosse uma reparação histórica."
Uma
petição online contra o decreto já reuniu mais de 85 mil assinaturas. O
texto afirma que o governo italiano "arrisca trair a herança"
italiana e "privar milhões de pessoas de um direito histórico", uma
vez que "a emigração italiana criou comunidades sólidas no exterior que
merecem ser reconhecidas e tuteladas".
Empresas
que prestam assessoria a descendentes de italianos também afirmam que vão
recorrer do decreto na Justiça italiana.
Fonte: DW Brasil
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