Contra a captura financeira do desejo, a
ruptura e a imprevisibilidade da arte, diz
Hernán Borisonik
O livro
de Hernán Borisonik, Persistência da pergunta pela arte (Cultura
e Barbárie, 2024), traz uma discussão em tudo pertinente e atual, que são
precisamente as mudanças na relação entre arte, política e tecnologia.
Nesta entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o autor
lança um olhar sobre as questões em torno da arte na atualidade.“A pergunta
pela arte não se esgota em si mesma; ela opera como uma força que rompe e
deforma. Então, para encontrar sua multiplicidade, sua forma plural, em vez de
‘o que é’, hoje podemos explorar outras questões, como ‘quando isso acontece’,
‘como se manifesta’, ‘quais fibras mobiliza’, e somente a partir delas podemos
apontar para a configuração de uma dimensão que fundamenta e possibilita essas
outras questões”, explica Borisonik. “Se eu tivesse que citar alguns dos
temas centrais desenvolvidos no livro, eu diria que ele, sem dúvida, retorna à
relação entre arte e design, à pergunta da autonomia e às
relações tensas entre arte, mundo e subjetividade”, propõe.
“O desejo não é mais apenas uma força motriz de criação ou transgressão, mas
também uma produção gerenciada, modelada e otimizada de maneiras muito
específicas. Estamos constantemente à beira de sua captura pela lógica da
valorização econômica e do controle social. Na medida em que o desejo se torna
um mecanismo previsível, seu potencial emancipatório se dilui: ele não desafia
mais a ordem estabelecida, mas o alimenta”, complementa. É importante, no
entanto, não pensar a arte em um sentido de régua moral ou mesmo de
salvação de nossa humanidade. O caso é escapar ao imperativo da funcionalidade.
“Não é que a arte deva cumprir
uma função específica dentro da ordem social, mas que sem a arte a
experiência humana se empobrece. Se isso nos torna melhores ou não é uma
questão em aberto, em termos políticos e metafísicos, já que não considero que
nossa existência tenha significado em si mesma. No entanto, a arte continua
sendo um dos poucos espaços onde a humanidade pode perceber a si mesma além de
sua mera sobrevivência”, sublinha.
<><>
Confira a entrevista.
·
O
que é a arte hoje?
Hernán
Borisonik – É quase impossível responder “o que é arte?” de forma completa
ou fechada na atualidade. O fato de a pergunta já precisar ser relativizada (“o
que é arte hoje”, e não “o que é arte” em geral) é prova de tal dificuldade.
Para responder, precisamos nos aprofundar em um campo aberto, atravessado por
vetores muito diversos, que se intensifica e se complexifica a cada tentativa
de nomeá-lo. Se a arte contemporânea nos ensina algo, é que não estamos diante
de uma era de arte que questiona em busca de essências, mas sim que devemos
enfrentar uma interrogação que persiste, desmonta e reconfigura o próprio campo
que interroga.
A
pergunta pela arte não se esgota em si mesma; ela opera como uma força que
rompe e deforma. Então, para encontrar sua multiplicidade, sua forma plural, em
vez de “o que é”, hoje podemos explorar outras questões, como “quando isso
acontece”, “como se manifesta”, “quais fibras mobiliza”, e somente a partir
delas podemos apontar para a configuração de uma dimensão que fundamenta e
possibilita essas outras questões. Do meu ponto de vista, há algo como um
campo, um espaço ou uma intensidade da experiência humana de existir que
chamamos de “arte” desde o Renascimento, que existe além dos
campos profissionais ou comerciais que são estruturados a partir desse núcleo
evasivo. Justamente por isso, e hoje mais do que nunca, devemos ter em mente
que a experiência artística é atravessada pelas tensões entre a criação sensível
e sua captura pelos fluxos financeiros, linguagens de design e tecnologias de
autoleitura que moldam nossas práticas. É justamente nessa tensão que a arte
encontra seu poder, não de escapar, mas de insistir, de quebrar esses mesmos
códigos e mostrar que há algo irredutível no sensível, algo que não pode ser
completamente codificado ou traduzido. A arte, em sua forma atual, oscila
entre uma abertura para o não dito (o não formulado) e uma afirmação de certas
formas que são ameaçadas por um mundo muito hostil à diferença e à preservação
da vida em geral. Não podemos escapar da arte porque, mesmo que não a
definamos, ela passa por nós, nos afeta e nos transforma. Penso na famosa foto do buraco negro tirada em 2019,
que não era realmente uma “foto” (no sentido de uma captura), mas uma imagem
construída a partir de milhões de pacotes de dados, e o que é mostrado não é o
buraco negro em si, mas a luz que o cerca. Algo semelhante acontece com a arte:
talvez não consigamos chegar a uma definição definitiva, mas podemos observar
como ela afeta o mundo. Por isso, repito, acredito que é importante insistir na
questão, mantê-la viva e tensa, como forma de abrir caminhos para novos futuros
possíveis.
·
Você
publicou no Brasil um livro intitulado Persistência da pergunta pela
arte (2024). A obra lança um olhar rigoroso e criativo sobre questões
sociais, políticas e ambientais a partir do campo da arte. Pode nos falar do
livro e como ele surgiu?
Hernán
Borisonik – Talvez contar brevemente a minha trajetória possa ajudar a
entender a perspectiva na qual escrevi o livro. Por quase 20 anos, tenho
me dedicado a pesquisar e ensinar Filosofia Política e o foco
central das minhas explorações tem sido o dinheiro, desde suas primeiras
formulações na Grécia antiga até as criptomoedas e as
formas contemporâneas de trocas. Meu primeiro livro se chama “Dinheiro
Sagrado: uma crítica a partir de Aristóteles” (onde trabalhei
especificamente uma crítica à acumulação) e o segundo é “$uporte” (onde
a arte está vinculada à materialidade do dinheiro). Desse longo trabalho surgiu
uma hipótese que ainda estou desenvolvendo: a transição da desmaterialização
para a desimaginação. A ideia é que a opacidade em torno do significado
da padronização digital
e algorítmica obstrui
nossa capacidade de conceber o mundo de maneiras radicais. E embora se insista
que os processos de abstração (muito claros nos meios monetários, mas também na
arte e nas comunicações) implicam uma redução da materialidade (porque a
“experiência do usuário” é de imediatismo e imaterialidade), cabos, fibras
ópticas e servidores continuam sendo elementos físicos subjacentes e
necessários, tanto quanto a energia, as substâncias e o trabalho humano usados
para criá-los. Diante disso, senti que era importante revisitar a questão
da arte como campo de significação, para ver como ela se atualiza
hoje e quais fibras ela mobiliza. A escrita partiu de uma preocupação central:
o que podemos pensar depois da pós-modernidade, que categorias precisamos
convocar no século XXI? Diante da digitalização da
experiência de vida e
das evidências da crise ambiental, ocorrem
transformações radicais na subjetividade. No mundo da arte, se antes o artista
era concebido como uma ponte para o sublime, hoje seu lugar parece mais o de
uma testemunha do mundo profano. Mas, ao mesmo tempo, o foco da
arte mudou da obra para o artista. Estamos diante de uma nova
subjetividade centrada na figura do usuário, fundada na democratização de
baixa intensidade e
no controle que as plataformas exercem sobre a circulação das imagens.
Portanto, todo objeto cultural é lido como “conteúdo” em algum momento de sua
existência. Do ponto de vista metodológico, o livro se baseia em dois autores
centrais na minha abordagem dos objetos de
estudo: Aristóteles e Simmel. Ambos compartilham uma maneira de
pensar que busca cercar seu objeto, iluminando-o a partir de diferentes
perspectivas. A partir daí, busquei propor uma exploração que não se limitasse
a um único ângulo, mas que se desdobrasse em múltiplas relações e perspectivas:
não definir a arte, mas abordar seus efeitos, suas mutações, suas tensões. Se
eu tivesse que citar alguns dos temas centrais desenvolvidos no livro, eu diria
que ele, sem dúvida, retorna à relação entre arte e design, à pergunta da
autonomia e às relações tensas
entre arte, mundo e subjetividade.
·
Franco “Bifo”
Berardi é
um autor que aparece em alguns momentos do livro. Ele é citado para argumentar
que o desejo sem prazer “se converte em uma corrida sem fim e sem alegria”. O
que essa dimensão revela sobre o mundo que vivemos?
Hernán
Borisonik – A perspectiva de Bifo sintetiza um
mal-estar característico dos nossos tempos. Vivemos em um mundo onde o desejo
foi despojado de sua dimensão erótica, isto é, de sua capacidade de gerar
prazer, diversão e desfrute. O que resta é uma compulsão sem objetivo, uma
aceleração vazia que encontra satisfação apenas em sua própria perpetuação.
Isto é especialmente evidente na lógica financeira, onde a acumulação
não responde mais a necessidades concretas, mas ao princípio abstrato de crescimento
ilimitado,
de origem religiosa. No plano subjetivo, algo semelhante acontece:
o desejo fica preso numa dinâmica de produtividade infinita, na qual
cada objetivo alcançado se dissolve imediatamente na demanda pelo próximo;
parece impossível conceber uma experiência plena (que não é o mesmo que
eterna). No mundo da arte, isso se traduz em uma saturação de produção e
circulação de imagens, muitas vezes impulsionada mais pela lógica algorítmica
da visibilidade do que pela necessidade de exploração estética ou conceitual. Boris
Groys descreve isso claramente quando ressalta que hoje há mais pessoas
gerando imagens do que espectadores interessados em vê-las. Em outras palavras,
a arte, como tantas outras dimensões da vida, parece ter sido subjugada a
essa lógica financeira, onde o acúmulo de signos substitui a
intensidade da prática. A questão é, diante desse diagnóstico, como escapar
dessa dinâmica. Além do poder de interrupção, da capacidade de escapar do ciclo
de eficiência e lucratividade (coisas que valorizo muito, mas que hoje são
quase quiméricos), acredito ser essencial resgatar os aspectos mais eróticos da
ação. Pensar a arte dessa forma implica recuperar espaços de demora, de atrito,
de resistência à compulsão pela circulação.
·
Quais
os riscos de positivarmos o desejo, considerando-o que ele é um campo de
disputas de projetos políticos, em geral, antagônicos?
Hernán
Borisonik – Sim, o desejo é um campo de luta. Justamente por isso sua
positivação não é neutra ou inocente. Um dos temas que percorre o livro é como
as transformações contemporâneas na arte e na cultura foram acompanhadas por
uma reconfiguração do desejo em direção a formas padronizadas por plataformas globais muito
poderosas. O desejo não é mais apenas uma força motriz de criação ou
transgressão, mas também uma produção gerenciada, modelada e otimizada de
maneiras muito específicas. Estamos constantemente à beira de sua captura pela
lógica da valorização econômica e do controle social. Na medida em que o desejo
se torna um mecanismo previsível, seu potencial emancipatório se dilui: ele não
desafia mais a ordem estabelecida, mas o alimenta. Um desejo positivo, afirmado
e inabalável pode ser funcional para formas de sujeição, classificação e
exploração. Como Boris Groys aponta, a figura do artista
contemporâneo hoje se confunde com a de um designer de si mesmo, alguém que
deve administrar sua identidade, seu trabalho e sua visibilidade dentro de um
mercado saturado. O desejo, neste contexto, é
canalizado como autoexploração. E, como o livro sugere, isso também se estende
à esfera política, onde as lutas por visibilidade, relevância e reconhecimento,
embora necessárias, podem ser rapidamente neutralizadas ao serem transformadas
em nichos de mercado ou símbolos de consumo.É por isso que é necessário pensar
no desejo não apenas como uma afirmação, mas como um conflito. Nem
toda intensificação do desejo é emancipatória, e nem toda
institucionalização implica censura. O desafio é encontrar formas de mediar o
desejo que não se traduzam em violência contra minorias ou em frases
cativantes, mas estéreis.
·
Quais
os limites entre arte e design? O que os diferem, ainda que, cada vez mais,
pertençam a regimes de visibilidade muito próximos?
Hernán
Borisonik – A fronteira entre arte e design não é fixa nem
estável, mas sua diferenciação continua relevante em um contexto em que ambos
operam em regimes de visibilidade cada vez mais próximos. De muitas maneiras, o
design hoje substituiu a arte, não apenas nos modos de circulação, mas também
na própria lógica de produção e recepção.O design é baseado na
funcionalidade e otimização: suas formas são orientadas para resolver problemas
e serem eficientes dentro de um sistema que busca utilidade, clareza e
adaptação a um ambiente pré-configurado. Em outras palavras: o design tem como
premissa servir, fornecer soluções, o que o torna uma parte fundamental de
nossas vidas (pense em computadores, pernas protéticas, placas de trânsito,
etc.). A arte, por outro lado, não tem essa demanda por funcionalidade.
Não está subordinada a uma necessidade externa ou a um propósito
predeterminado. Assim, a fronteira não é apenas formal, mas política: enquanto
o design busca organizar a experiência e projetar futuros previsíveis, a arte
pode desorganizar e introduzir interrupções, falhas e questionamentos. Isso não
significa que a relação entre arte e design deva ser pensada em
termos puramente dicotômicos. De fato, em vários pontos do livro é reconhecido
que os movimentos históricos de vanguarda já haviam explorado essa fronteira:
do construtivismo soviético à Bauhaus, do pop a certas práticas contemporâneas
que tensionam a funcionalidade do design a ponto de esvaziá-lo ou subvertê-lo.
Mas o que diferencia a arte do design, mesmo nessas interseções, é que a arte
pode se dar ao luxo da ineficiência, ambiguidade e falta de resolução. Ela pode
existir sem ser imediatamente traduzida em uma função ou significado preciso.
No entanto, muitas formas de arte contemporâneas são vistas através das lentes
do design, pois são avaliadas com base em critérios como visibilidade, impacto,
viralidade, capacidade de integração aos canais de consumo e validação
imediata. O sistema da arte contemporânea vem adotando a lógica
do branding, da UX (user experience) e da produção de imagens
otimizadas para plataformas, buscando garantir sua circulação em formatos e
dispositivos que exigem legibilidade e parametrização. Além disso, a
onipresença do design levou cada indivíduo (até mesmo artistas) a se tornar seu
próprio designer. Cada “perfil” é um projeto com curadoria visual absorvido
pela estetização do capital.
No
entanto, isso não encerra o debate arte-design…
·
Claro,
você disse que considerando o ser humano como essa espécie que precisa
transformar suas condições imediatas para sobreviver, qual o papel da arte
nesse processo? Em suma, como a arte pode nos tornar pessoas melhores?
Hernán
Borisonik – Se entendermos o ser humano como uma espécie que para se
adaptar ao seu entorno o transforma ativa e radicalmente para sobreviver, a
arte desempenha um papel fundamental nesse processo. Não só porque nos permite
imaginar o que ainda não existe, antecipar realidades diferentes e questionar o
que é dado, ou porque cria formas de perceber e habitar o mundo, mas também
porque é parte fundamental de uma experiência que nos constitui. A arte é uma
das poucas práticas humanas que pode operar fora da lógica estritamente
instrumental, mas seu papel não é meramente decorativo ou ornamental, mas
profundamente estrutural na construção de subjetividades e comunidades. A arte faz
parte da necessidade humana de transformar o ambiente para poder habitá-lo, uma
espécie de ortopedia natural. Visto sob essa luz, o Antropoceno representa um
passo em falso nessa história: uma transformação ambiental que coloca a própria
sobrevivência em risco; não uma perturbação, mas uma versão extrema de uma
tendência inerente à nossa espécie. No entanto, isso não deve obscurecer a crítica
à arte mercantilizada, à biopolítica ou ao
solucionismo tecnológico: essas não são consequências inevitáveis da
criatividade humana, mas sim o resultado de lutas políticas muito específicas.
Nesse esquema, a acumulação e o lucro substituem o verdadeiro
significado da transformação: tornar a vida mais habitável e o mundo mais
habitável. Agora, considerar se a arte pode nos tornar “pessoas
melhores” pode implicar uma ideia de progresso moral que, em muitos aspectos, é
problemática. O que ouso afirmar é que a arte expande nossas capacidades e potencialidades,
que há algo que vibra dentro de nós e que não pode ser completamente
padronizado. Estética não é um luxo, mas uma necessidade. Não é que a arte deva
cumprir uma função específica dentro da ordem social, mas que sem a arte a
experiência humana se empobrece. Se isso nos torna melhores ou não é uma
questão em aberto, em termos políticos e metafísicos, já que não considero que
nossa existência tenha significado em si mesma. No entanto, a arte continua
sendo um dos poucos espaços onde a humanidade pode perceber a si mesma além de
sua mera sobrevivência.
·
Como
se caracteriza a era pós-textual e pós-teórica que dá forma às disputas
políticas contemporâneas? Como esse debate está ligado às artes?
Hernán
Borisonik – A ideia de uma era “pós-textual” ou “pós-teórica”
vem de algumas tradições muito textuais e teóricas. As principais referências
incluem Katherine Hayles, Rosi Braidotti e Claire
Colebrook, que postularam que a chegada do Antropoceno exige uma
reconsideração da teoria e da política para ir além das construções humanas e
textuais, incorporando uma compreensão mais profunda da materialidade e da
finitude. Isso sugere que devemos abordar as realidades pós-humanas e as
complexidades de um mundo em crise, superando as limitações de abordagens
focadas exclusivamente em texto e representação. Na Argentina e
no Brasil, vários grupos estão trabalhando nessas questões (principalmente
com base em Latour e Haraway), repensando a agência e sua distribuição entre
entidades humanas e não humanas. Há um artigo de Emmanuel Biset que aponta que
a teoria contemporânea está se movendo em uma “direção pós-textual”, contrária
à “virada linguística”, que se envolve com o realismo especulativo e busca
repensar o próprio status e sentido da teoria. Com isso, por meio do
pós-humanismo, novos paradoxos (e até mesmo aporias) colocam uma tensão
renovada nas intensidades do pensamento. No âmbito das artes, essa mudança se
manifestou em práticas que buscam transcender a representação simbólica para se
envolver diretamente com a materialidade, desafiando as distinções tradicionais
entre sujeito e objeto, teoria e prática. Como exemplo, posso pensar em El
libro de las diez mil cosas, apresentado pelo coletivo La Intermundial
Holobiente na Documenta 15. A obra se situa em uma área “que
escapa ao design humano”, onde foi proposto um habitat para um livro criado
coletivamente por humanos e não humanos que “contribuem para que o visitante
viva uma experiência contemplativa e relaxante”. O que parece emergir dessas
práticas é uma subjetividade mais incoerente e distribuída do que
autônoma e consciente. O corpo é questionado a partir de seus poderes e
relações, tanto de seus aspectos biológicos quanto de suas ligações com a tecnologia,
de modo que a distinção entre mediações humanas e não humanas se torna
problemática.
·
Em
um trecho do livro, está escrito: “Hoje tudo é verdadeiro (porque está aí) e
nada o é (porque existe na linguagem)”. O que essa encruzilhada demonstra e
como sairmos dela?
Hernán
Borisonik – Essa encruzilhada, ou paradoxo, entre ser e linguagem
evidencia uma das tensões centrais do nosso tempo: a coexistência entre uma
saturação do visível e uma crise da verdade. Por um lado, tudo o que
aparece no espaço digital ou midiático é considerado “real”
simplesmente porque existe como dados acessíveis. Por outro lado, a
proliferação infinita de discursos, imagens e interpretações dissolve qualquer
noção estável de verdade. Vivemos no reino das notícias falsas, mas não as
vivenciamos como rumores falsificáveis, mas sim como certezas que podemos
compartilhar a partir de nossos dispositivos. Esse colapso entre presença e
verdade é consequência direta de um regime de visibilidade em que a informação
não é mais filtrada ou distribuída com base em critérios de verificação, mas
sim com base em sua capacidade de circular e influenciar. A imediatez da
existência prevalece sobre a reflexão, e o fato de algo “estar lá” se torna
mais importante do que a questão de seu significado ou origem. Ao mesmo tempo,
a verdade se desintegra em uma multiplicidade de histórias que, longe de
dialogar, coexistem sem possibilidade de síntese. O livro sugere que não há
saída para esse impasse, mas existem estratégias para navegar por ele de forma
crítica. Uma delas é recuperar a arte como um espaço onde essa tensão
não se resolve, mas se intensifica. Em um mundo onde tudo é informação e nada é
sólido, a arte pode atuar como uma zona de atrito, onde a verdade não é tomada
como garantida, mas sim que se põe em crise de maneira produtiva. Em vez de
responder com mais afirmações ou certezas, a arte pode insistir em questionar,
em interromper, em criar espaços onde a verdade não seja simplesmente um dado
circulante, mas uma experiência a ser considerada, habitada, transformada.
·
Especialmente
nas redes sociais, as imagens que produzimos e publicamos são visíveis para um
grupo restrito de pessoas (a menos que sejam impulsionadas por tráfego pago).
No entanto, essas imagens, que são, sob certo sentido, invisíveis, nos
observam. Que mundo é este em que as imagens perdem a função de mediação ou
representação e passam a cumprir o papel de vigilantes?
Hernán
Borisonik – As imagens contemporâneas deixaram de ser apenas meios de
expressão ou representação e assumiram também o papel de nós dentro de uma rede
de vigilância e
controle.
Nas mídias sociais e ambientes digitais, imagens que circulam
inocentemente entre usuários são processadas por infraestruturas
algorítmicas que extraem informações, modelam comportamentos e reforçam
sistemas de classificação. Artistas como Trevor Paglen e Kim
Albrecht exploraram essas questões, entendendo que não se trata apenas do
que as imagens mostram, mas de como elas parecem: participar da circulação e do
consumo de imagens nos sujeita a dispositivos que registram, categorizam e
traduzem a realidade em dados operacionais. Estamos diante de uma exomatização
e automação da percepção humana em redes e circuitos invisíveis de exploração
algorítmica que poderiam ser cartografados. No livro, argumento que essa
mudança implica uma profunda transformação na relação
entre arte, política e tecnologia. Se antes a imagem tinha
um papel simbólico e narrativo, agora ela é primariamente funcional e
extrativa: não é tanto o que ela significa que importa, mas sim o que ela pode
fazer dentro de um ecossistema de fluxos e cálculos. As imagens funcionam então
como entrada para vigilância distribuída, operando em segundo plano para
otimizar os sistemas de controle social e econômico. Hoje sabemos que uma
resposta responsável não é exigir que o público abandone as mídias sociais ou o
consumo de imagens. Teremos que ver como podemos hackear seus
usos, desviar seus fluxos e explorar sua opacidade.
·
Como
a “potência do não” aparece como alternativa aos imperativos econômicos
contemporâneos? Como escapar desse mundo hipervigiado?
Hernán
Borisonik – A “potência do não” aparece em meus escritos como o reverso do
imperativo do crescimento e do acionismo contemporâneos. Não penso nisso como
pura “resistência”, mas como uma capacidade ativa de suspender, de não
atualizar certos poderes, de não responder automaticamente às lógicas de
produtividade e visibilidade que governam o capitalismo atual. Aristóteles já
distinguia entre dynamis (potência) como a capacidade de pôr
algo em ação (de “fazer algo”) e dynamis me einai (potência do
não), que é a possibilidade de não atualizar uma capacidade (aquela que às
vezes também chama de adynamia ou impotência). Agamben retomou essa
ideia para pensar a conservação de um poder que não se esgota em seu exercício.
Em geral, nos seres vivos, a potência é determinada biológica ou
morfologicamente como uma espécie de programação, mas os seres humanos podem
não ser ou não fazer. Não é o ato em si que mede seu poder, mas a possibilidade
de sua suspensão, sua capacidade de permanecer no limiar entre a atualização e
a reserva. Não é a ausência de poder, mas a capacidade de não agir (dynamis
me energein). Para Agamben, há uma dimensão de poder que
pode ser desfeita. Se existe algo como uma autonomia da arte, se isso é
concebível hoje, ela deve estar fora do design programado, da autoleitura da
linguagem financeira ou dos fetiches artísticos da moda que nos forçam a
definir, agir e nos atualizar constantemente. Não é uma renúncia absoluta, mas
uma maneira de operar. Esse princípio também pode nos ajudar a pensar como
escapar de um mundo hipervigilante. Nesta era digital, o poder não parece
estar na posse do programa, do algoritmo, de algo que é opaco até mesmo
para seus próprios donos. As pessoas são previsíveis, e os algoritmos são
imprevisíveis, então até mesmo expor o funcionamento de alguns meios e
programas tem potencial político, já que parte da função dos dispositivos é o
próprio ocultamento. O desafio é criar uma arte fora da “arte” e uma
vida fora da “vida”: a potência de não ser apenas o que se é hoje. Nem valor de
uso, nem valor de troca, nem valor de exposição.
·
Qual
a pertinência da arte hoje?
Hernán
Borisonik – Se separarmos a arte como instância, dobra ou
intensidade do mercado, sistema ou “mundo” da arte, será mais fácil ver sua
relevância. É claro que, vivendo em um sistema onde tudo se torna uma mercadoria, onde
o desejo é gerenciado por algoritmos e onde as imagens não mais
representam, mas monitoram, a arte pode parecer um espaço fútil. No entanto, é
um tipo de experiência que insiste em interromper ou distorcer essas lógicas ao
mostrar relações não lineares, unindo dimensões ou escalas que não parecem
relacionadas. Por isso mesmo, a arte retém um poder que não pode ser
completamente absorvido: o poder do não, a capacidade de abrir um “fora” a
partir de dentro, de não atualizar imediatamente as possibilidades, mas de
mantê-las em tensão. Nesse sentido, a relevância da arte hoje está menos em
seus objetos ou circuitos do que em sua persistência como forma de suspensão. A arte não
é algo necessário no sentido funcional do termo, mas é fundamental porque é a
maneira pela qual desenvolvemos outras relações com o tempo, com o contexto,
com a experiência de vida. Isso pode nos lembrar que ainda há algo imprevisível
e erotizar sua projeção. A arte pode nos colocar frente a frente com um
“universalismo particular” (oposto ao “particularismo universal” que prevaleceu
por tantos séculos) e restabelecer o conflito insolúvel da existência, expor
a beleza e a violência
da abstração e rejeitar as tentações da separação.
·
Deseja
acrescentar algo?
Hernán
Borisonik – Bem, além de tudo isso, acredito também que a arte e
a universidade, como instituições e espaços onde existe um tipo de conexão
social, merecem e devem ser defendidas hoje diante dos ataques que nossas
sociedades estão sofrendo, principalmente aqui no Sul, onde
as desigualdades são duplas. Então, muito obrigado por insistir nessa
tarefa.
Fonte: IHU
Nenhum comentário:
Postar um comentário