sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Por que personagens da cultura de massa são apropriados por movimentos políticos?

Em novembro do ano passado, um homem usando vestes semelhantes ao do personagem Coringa morreu ao explodir fogos de artifício na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Por que movimentos políticos lançam mão de símbolos da ficção em sua empreitada?

O salto da ficção para a realidade às vezes é menor do que parece. O Brasil, por exemplo, viveu recentemente sua febre quando a ficção se encontrou com movimentos políticos. Nas jornadas de junho de 2013, as máscaras de Guy Fawkes, personagem do filme e dos quadrinhos V de Vingança, inundaram as ruas da avenida Paulista, em São Paulo.

Embora possa ser classificado como um movimento heterogêneo e complexo, os protestos daquele ano marcaram contrariedades ao Partido dos Trabalhadores (PT), que estava à frente do poder no Brasil há cerca de 11 anos.

Se vertemos o olhar para nossos vizinhos ao sul, também encontraremos histórias onde personagens da cultura popular foram incorporados por movimentos políticos. Famosa na Argentina, a história em quadrinhos do Eternauta virou símbolo da esquerda do país, apropriada mais precisamente pelo kirchnerismo, na figura do ex-presidente Néstor Kirchner.

De volta ao Brasil, outro personagem das páginas e das telas esteve aludido em manifestações políticas. Francisco Wanderley Luiz, que morreu ao se explodir em Brasília, na Praça dos Três Poderes, usava uma roupa que remetia ao personagem Coringa. Em suas redes sociais, o homem publicava posts contra a Suprema Corte brasileira e contra o atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

·        A vida imita a arte?

De acordo com o cartunista Carlos Latuff, esses encontros acontecem pelo fato de "as obras fictícias não serem tão fictícias". Latuff, que se define como um cartunista político, está, sim, acostumado a ver suas obras presentes em manifestações de cunho político mundo afora.

Nesse sentido, Alexandre Linck, professor doutor e pesquisador de quadrinhos, criador do canal Quadrinhos na Sarjeta, salienta que as obras ficcionais denotam uma pluralidade de sentidos, permitindo que sejam interpretadas de inúmeras formas.

"As obras estão no mundo, elas não existem isoladas", diz, ressaltando que como a arte não está isolada da sociedade, é inevitável que se misture com uma série de movimentos.

Há ficções que estão diretamente inspiradas em determinados aspectos da sociedade, desafiando valores culturais preestabelecidos.

"Posso citar romances que viraram filmes e seriados como '1984', de George Orwell, e 'O Conto da Aia', de Margaret Atwood, que exploram regimes totalitários, expondo de maneira crua a opressão aos grupos minoritários, provocando reflexões sobre temas como a liberdade e os direitos humanos", relembra Luciene Carris, doutora em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), cofundadora do Box Digital de Humanidades e do Sarau da Casa Azul Podcast.

Além das obras citadas, Carris destaca alguns seriados, produtos com apelo, sobretudo entre os mais jovens, que abordam temáticas políticas. "No streaming destaco The Boys, The Umbrella Academy, House of Cards, Watchmen, O poder, Black Mirror", elenca.

"Black Mirror explora os impactos éticos e sociais das tecnologias nas nossas vidas, algo que não podemos mudar ou viver sem hoje em dia, se pensarmos na inteligência artificial. Essas produções conseguem abordar uma pluralidade de temas contemporâneos como igualdade, gênero, tecnologias e crítica social, entre outros aspectos do mundo em que vivemos", descreve a pesquisadora.

·        Ordem não é dada, mas disputada

Linck ressalta que há uma disputa de sentidos colocada, inerente à história, e que não é diferente com o mercado do entretenimento.

"O Tintim, por exemplo, que gerou polêmica recentemente, volta e meia gera polêmica de novo: mangás, animes, enfim, tudo isso está sempre em disputa", recorda.

O personagem Tintim, máxima do quadrinista belga Hergé, chegou a ser usado recentemente como símbolo da resistência ao terrorismo e à intolerância após os atentados de Bruxelas, em 2016, que deixaram mais de 30 mortos.

No entanto, obras do autor já retrataram o personagem em contextos anticomunistas e até mesmo racistas — como na história "Tintim no Congo".

Latuff, por sua vez, caracteriza que há projetos, como os filmes hollywoodianos, com a capacidade de introduzir ideologia disfarçada de entretenimento.

"A velha lógica do corações e mentes. Essa é a essência do soft power", destaca.

Em relação aos filmes e aos quadrinhos, Linck afirma que há entre essas duas modalidades um campo em disputa, possível de ser percebido entre os mesmos personagens, mas representados em diferentes perspectivas.

"O V de Vingança, que foi muito apropriado principalmente por movimentos, começou sendo uma coisa mais de esquerda e depois foi para a direita, principalmente essa nova direita. Isso é muito em função do filme, de uma certa ideia de massa, de fazer valer vontade à força por meio de um grupo, às vezes falsamente orgânico", explica.

Já o Coringa, que representa uma ideia de "antissistema", uma expressão "da nova direita bolsonarista", conforme retoma Latuff, já foi símbolo na periferia, desde sentidos atribuídos à violência quanto à figura de rebeldia e de contestação do Estado.

O Eternauta, símbolo da esquerda argentina, até o momento permanece com sua representação do lado progressista. Entretanto, com uma série a ser lançada por uma famosa plataforma de streaming, Linck afirma que não estranharia se a "direita se apropriar do personagem por algum motivo".

"Pela noção de fim do mundo ou […] porque o Eternauta tem uma coisa meio self-made man. Assim, diante do problema, ele vai lá e tenta resolver. Não duvidaria que o Eternauta pendulasse em termos políticos dentro do imaginário público", explica.

 

¨      Pelo bem público, Brasil é pioneiro na quebra de patentes de remédios; confira casos históricos

O Brasil é um dos pioneiros globais na quebra de patentes farmacêuticas em prol do bem público. Confira abaixo alguns dos medicamentos e das vacinas que tiveram suas licenças concedidas ao Estado nos últimos 30 anos.

O Brasil fez história mundial e incomodou muita gente ao quebrar as patentes dos medicamentos retrovirais usados no combate à AIDS, propriedades da farmacêutica Merck.

A medida — na época celebrada por países do Sul Global e malvista por países do Norte e, até mesmo, por alguns comentaristas brasileiros — se deu na legalidade, tanto dentro da lei brasileira quanto fundamentada nas diretrizes da Organização Mundial do Comércio (OMC).

No país, as patentes de medicamentos e outras invenções são outorgadas pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e regulamentadas pela Lei nº 9.279/1996, estabelecida há quase 30 anos.

No caso dos fármacos, os produtos ainda devem passar por aprovação paralela da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que verifica a segurança e efetividade médica das substâncias e libera a venda no Brasil.

Segundo a legislação brasileira, as empresas possuem um período de 20 anos no qual podem monopolizar a comercialização dos medicamentos desenvolvidos.

Contudo, dada a emergência nacional ou o interesse público pelo medicamento, o artigo 71 permite suspender esse direito e o licenciamento compulsório do produto, manobra popularmente conhecida como "quebra de patente".

A medida, no entanto, só pode ser tomada quando a fabricante não conseguir satisfazer a demanda do mercado ou a prática de preços abusivos, dificultando sua obtenção.

Dessa forma, o governo federal permite a produção temporária de alternativas genéricas locais, barateando os custos de produção e disponibilizando o medicamento em maior número para a população.

>>>> Confira abaixo os principais casos de patentes quebradas no Brasil.

<><> AIDS

O primeiro e mais célebre caso de licenciamento compulsório no Brasil foi o Efavirenz, antiviral para o tratamento da AIDS. Desde meados dos anos 1990, o Brasil incluiu o tratamento gratuito da AIDS no Sistema Único de Saúde (SUS).

Do coquetel de medicamentos utilizados, quatro eram responsáveis por 50% dos gastos públicos. Só o Efavirenz representava 11% de todos os gastos do Ministério da Saúde com medicamentos antirretrovirais.

Na época, o governo brasileiro tentou negociações com a Merck para abaixar o custo do medicamento. Com cada comprimido de 600 mg sendo vendido a US$ 1,59 na época (R$ 9,75 hoje), o governo pedia o valor de US$ 0,65 (R$ 3,98 na conversão atual), preço praticado na Tailândia.

A companhia, irredutível em uma redução máxima a até US$ 1,11 (atualmente R$ 6,80), teve sua patente quebrada em 2007 por meio do Decreto nº 6.108/2007. O primeiro lote ficou pronto em 2009 a um custo de R$ 1,35 por comprimido. Nesses dois anos de intervalo, versões genéricas da Índia foram importadas ao custo de US$ 0,42 (hoje R$ 2,57) por comprimido.

<><> Hepatite C

Outro remédio revolucionário que teve sua patente aberta foi o Sofosbuvir, que cura a hepatite C em 95% dos casos. O caso foi a segunda vez que o Brasil aplicou o licenciamento compulsório.

Lançada em 2014 pela Gilead, o tratamento com o medicamento chegava a custar R$ 35 mil por paciente. Já em um levantamento da Universidade de São Paulo (USP), entre 2015 e 2019, o preço médio cobrado pela Gilead foi de R$ 986,57 por comprimido.

Em 2018, uma decisão da Justiça Federal do Distrito Federal anulou a patente do medicamento, possibilitando o barateamento da droga a partir de uma concorrência com o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), da Fiocruz. Nessa época, o preço praticado pela Gilead chegou a ser R$ 64,84 por comprimido.

Em 2019, contudo, o monopólio retornou para a Gilead.

<><> Doenças autoimunes

No ano passado, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região decidiu que a patente do Stelara, nome comercial da Ustequinumabe, expirou em 2021.

Usado para tratar uma série de doenças autoimunes como doença de Crohn, psoríase, artrite psoriásica e colite ulcerativa, o medicamento teve sua patente estendida por três anos pela via judicial a pedido da Johnson & Johnson.

A patente do Stelara estava prevista para vencer apenas em 2027. No entanto, em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a extensão de patentes para além de 20 anos desde a data de registro. Antes disso, as empresas aproveitavam o atraso do INPI em conceder o registro para estender o período de monopólio nas vendas dentro do país.

Estima-se que o Ministério da Saúde economize R$ 130 milhões na compra de cada lote do medicamento, barateando e facilitando o acesso ao público.

<><> Soliris: o mais caro do mundo

Em 2018, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) quebrou a patente do Soliris, nome comercial do Eculizumabe, também conhecido informalmente como o remédio mais caro do mundo. Cada unidade custava aos cofres públicos R$ 21,7 mil.

Utilizado para tratar hemoglobinúria paroxística noturna (HPN), doença rara que atinge entre uma e duas a cada um milhão de pessoas. A doença destrói as hemácias do sangue, deixando o paciente anêmico, com cansaço, falta de ar, dores crônicas e sangue na urina.

O Soliris, desenvolvido pela Alexion, é o único remédio contra a HPN, não sendo disponibilizado em farmácias, apenas pelo SUS. Como cada paciente necessita de seis frascos ao mês para evitar os sintomas, em 2017 os 400 pacientes diagnosticados com a doença incorreram um gasto de R$ 644,4 milhões ao SUS.

Com a decisão do STJ, torna-se mais acessível a produção de genéricos do medicamento. Em 2022, a Anvisa estabeleceu o preço máximo de R$ 11.942,60 para as vendas ao governo federal, conforme os menores preços praticados internacionalmente.

Tensões geopolíticas ameaçam aumentar em até 20% os custos dos produtos básicos em 2025

O preço dos produtos básicos para o lar, eletrônicos, máquinas, produtos químicos e derivados do petróleo pode aumentar em 2025 devido à instabilidade global e ameaças de Donald Trump de impor tarifas a parceiros comerciais, alertou o Chartered Institute of Procurement and Supply (CIPS), que representa mais de 60 mil empresas de 150 países.

"Comprar e fornecer itens, incluindo alimentos e bebidas, pode custar às empresas até uma quinta parte a mais este ano, o que será repassado aos consumidores", disse o CIPS,

O preço dos produtos básicos para o lar pode subir até 20% em 2025, enquanto o custo de eletrônicos, máquinas, produtos químicos e derivados do petróleo também pode aumentar entre 5% e 20% nos próximos meses.

"O que está claro em nossa pesquisa é que existem uma série de desafios estratégicos que provavelmente interromperão o fluxo contínuo de bens e serviços", disse o CEO do CIPS, Ben Farrell. "Esses desafios representarão problemas particulares para os consumidores, que provavelmente serão afetados de forma desproporcional, a menos que essas questões sejam tratadas de forma eficaz", acrescentou.

Por exemplo, desde o outono de 2023, muitos navios que navegavam pelo mar Vermelho mudaram de rota por receio de ataques do movimento iemenita mais conhecido como hutíes.

Eles vêm realizando ataques repetidos com mísseis e drones contra dezenas de navios mercantes que tentavam atravessar essa rota, paralisando o transporte marítimo mundial e provocando o aumento dos custos. Os líderes do movimento confirmaram que continuarão os ataques até que Israel cesse suas operações militares na Faixa de Gaza.

A isso se somam as ameaças do presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, que em novembro advertiu que imporia tarifas sobre os bens que entrassem no país norte-americano após o dia 20 de janeiro, quando ele retornasse à Casa Branca.

De acordo com o jornal britânico The Guardian, as ameaças do republicano levaram diversas empresas a antecipar o envio de contêineres de mercadorias para evitar os aumentos. No entanto, especialistas consultados pelo veículo explicaram que as medidas preventivas, como o armazenamento, vão adiar temporariamente o impacto do aumento dos preços.

Enquanto isso, qualquer novo imposto poderia elevar os custos, perturbar os fluxos comerciais e provocar retaliações contra as exportações americanas, acrescentou o jornal britânico.

"O impacto das tarifas americanas nos fluxos comerciais, que levam a uma maior tensão política, a guerra global por talentos, esses e outros temas exigirão uma gestão habilidosa se quisermos manter o crescimento e a confiança dos consumidores nos principais mercados", disse Farrell.

 

Fonte: Sputnik Brasil

 

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