Isabela Callegari: Um poder
que o mercado não tem
Este artigo foi iniciado quando o pacote de ajuste
fiscal do governo foi primeiramente anunciado, em 29 de novembro. Tendo em
conta o caráter amplo e nocivo das medidas propostas, entende-se que essas
deveriam ser estudadas e debatidas com calma. No entanto, a urgência com que
foram votadas foi tanta, que envio essas linhas para a publicação já após a sua
aprovação, às vésperas do Natal.
Nos grupos de militância à esquerda, ficou evidente que
trabalhadoras e trabalhadores tampouco tiveram tempo de se inteirar dos
projetos de lei e de entender o que estava acontecendo, sendo que muitos apenas
se afiançaram nas afirmações
de representantes do governo, no qual confiam. À exceção de poucas
pessoas, a maioria supôs impossível que o governo Lula estivesse propondo a
precarização de parte da população mais vulnerável do país. Aponto, portanto,
de saída, a primeira característica antidemocrática e antipopular dessa
situação, o regime de urgência e a negação pública por membros do governo de
aspectos factuais daquilo que o próprio governo apresentou. O pacote, apresentado
pelo Ministério da Fazenda e materializado em dois Projetos de Lei, de
autoria do líder do governo na Câmara, José Guimarães, o PL 4.614/24 e o PLP
210/24, posteriormente inseridas na PEC 45/24, desenharam um cenário desolador
e politicamente injustificável para o governo petista, pelo seu impacto sobre
trabalhadoras/es e, especialmente, sobre pessoas com deficiência e idosas/os em
situação de pobreza, e pessoas cuidadoras, majoritariamente mulheres.
Demagogias à parte, na prática, figuras como Michelle
Bolsonaro, Bia Kicis, Nikolas Ferreia, Damares Alves, Sergio Moro, e outras/os
à direita, responderam às pressões de suas bases eleitorais e se mobilizaram
para atenuar e barrar o ajuste, a despeito de serem representantes de frações
da burguesia e costumeiros defensores da austeridade fiscal. Assim, está
explicitado que a pressão para o ajuste não veio do Congresso, pelo contrário.
Na verdade, a situação tomou contornos de surrealidade quando o governo
liberou as pressas mais de R$8 bilhões adicionais em Emendas Parlamentares –
chegando à cifra recorde de R$40 bilhões e adicionando ao escândalo da captura
de recursos públicos e de um parlamentarismo implícito -, para que o Congresso
aprovasse o pacote de precarização da classe trabalhadora. Portanto, para
avaliarmos precisamente a atuação do governo, temos que examinar as medidas que
foram por ele propostas e qual o seu impacto concreto sobre a população, além
de nos perguntarmos o que é, de fato, o tal “mercado”, e qual é a pressão que ele
é, efetivamente, capaz de exercer, à luz da teoria macroeconômica e do
entendimento do sistema monetário.
Primeiramente, observa-se na tabela abaixo, divulgada
pelo Ministério da Fazenda, que a ideia era economizar R$17,2 bilhões em 2025 e
R$239,8 bilhões até 2030 cortando gastos sociais de extrema relevância para a
maioria da população (abono salarial, Fundeb, Desvinculação de Receitas da
União, salário mínimo, Bolsa Família, BPC e atualização de cadastro por
biometria), para não dizer da tentativa de cortes no Fundo Constitucional do
Distrito Federal (FCDF) – que caiu na redação final da PEC –, da retenção de
recursos a projetos culturais da Lei Aldir Blanc, e destinados a provimento e
criação de cargos públicos.
·
Sobre o ataque e suas principais consequências
A prorrogação da Desvinculação de Receitas da União
(DRU) seguirá suprimindo o que seria destinado à assistência social,
previdência, educação e saúde, para atender a gastos financeiros, bem como, a
limitação de recursos federais ao Fundeb deixa o orçamento da educação mais
dependente de estados e municípios, que sofrem, eles sim, graves restrições
fiscais reais. Por sua vez, os dois maiores programas sociais brasileiros, BPC
e Bolsa Família, juntos atendem aproximadamente 56 milhões de beneficiários,
enquanto 724 mil pessoas têm direito ao abono salarial e a renda média de toda
a população é afetada pela valorização do salário-mínimo, uma vez que a ele
estão vinculados programas sociais, aposentadorias e salários. Estimativas
indicam que se a regra proposta para a valorização real do salário-mínimo, de
no máximo 2,5%, estivesse vigorando desde 2003, o salário-mínimo seria
hoje ao menos 25% menor. Isto é, o equivalente a menos de R$1.000.
Muitos buscaram argumentar que o pacote anunciado se
trataria apenas de um “pente fino”. Cabe salientar que isso já seria muito
grave, quando feito sem a busca ativa de beneficiários, constituindo uma
política típica de governos à direita, que com argumento de adequação técnica,
na prática cortam o benefício das pessoas mais vulneráveis, incapazes de se
adaptar às exigências. Lembro da experiência pessoal de, em 2017, estar
trabalhando em uma ocupação e ver justamente as pessoas que eram analfabetas,
que não tinham acesso à internet, ou com graves problemas de saúde, terem seus
benefícios cortados, pelo “pente fino” no Bolsa Família promovido pelo governo
Temer, ao mesmo tempo em que rareavam assistentes sociais no local, também
devido aos cortes de gastos. Ou seja, qualquer exigência de recadastramento
para o recebimento de benefícios, sem o acompanhamento e responsabilização da
assistência social governamental, acarreta perda de renda e direitos para quem
mora nos rincões do país, em área rurais, em terras indígenas, tem pouco acesso
às notícias, baixa conectividade, problemas de locomoção, está internado,
doente, tem deficiência ou é analfabeto/a. E esse ataque brutal é comemorado
como se estivesse sendo promovida a justiça fiscal e a moralidade contra
fraudadores. O Bolsa Família, por sua vez, vai também ser subjugado a um pente
fino feito por um limite percentual de famílias constituídas de apenas uma
pessoa (famílias unipessoais) por município.
Agora, vejamos aquilo que muitos negaram, as mudanças
de critérios que foram propostas, para além desse corte com aparência técnica.
A começar pelo abono salarial. O benefício anual, hoje recebido por
trabalhadores formais que ganham até dois salários-mínimos (R$2.640), vai ter o
limite de renda congelado no valor de hoje, até chegar em 1,5 salário mínimo,
sendo que a valorização do salário mínimo também foi restringida. Isto é, a
economia para o governo vai se dar na medida em que pessoas que hoje recebem o
abono deixarão de receber nos próximos anos. A
apresentação do Ministério da Fazenda justifica a medida alegando que
trabalhadores/as formais que ganham até dois salários-mínimos estão sendo
privilegiados, uma vez que sua renda é equivalente a 85% do salário médio dos
trabalhadores brasileiros e que 60% dos trabalhadores formais hoje têm direito
a esse benefício. Com isso, ao invés de reconhecer que o salário médio da
população em geral é muito baixo, os beneficiários é que foram entendidos pelo
governo como o problema a ser corrigido.
Em seguida, o ponto considerado o mais grave, o das
mudanças de critérios para o recebimento do Benefício de Prestação Continuada
(BPC). Inicialmente, como consta da apresentação do Ministério e dos projetos
de lei apresentados, houve a proposta inédita de que fosse incluída a renda de
“cônjuge ou companheiro não coabitante” no cálculo de renda per capita. Para
não falar da incerteza de como seria definida essa categoria, é simplesmente
absurdo, em um contexto de alarmante violência masculina, feminicídios diários
e abandono paterno em ascensão, sugerir a inclusão da renda de alguém que não
mora na mesma casa e que pode ser um pai ausente, que não paga pensão, ou um
homem violento, do qual a mulher está fugindo, no cálculo da renda para que ela
acesse o benefício. Além disso, a proposta inicial também previa que fosse
contabilizada a renda de parentes que não vivem sob o mesmo teto, caso esses
ajudassem financeiramente o/a requerente do benefício, sem que ficassem eles
mesmos com renda inferior a um salário-mínimo. Tais propostas representavam uma
afronta à segurança e à dignidade das mulheres e de pessoas em situação de
pobreza, e felizmente foram derrotadas no Congresso. Houve ainda a tentativa de
mudar a definição de pessoa com deficiência, estabelecida pelo Estatuto da
Pessoa com Deficiência como “aquela que tem impedimento de longo prazo de
natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma
ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdade de condições com as demais pessoas” para que o benefício abarcasse
apenas as pessoas com deficiências graves, definidas como aquelas
“incapacitadas para a vida independente e para o trabalho”. Essa ofensiva
capacitista foi denunciada pela grande mobilização da comunidade de pessoas com
deficiência e, justiça seja feita, pela forte atuação de parlamentares
ligados/as a essa base, com destaque para Damares Alves (Republicanos) e Mara
Gabrilli (PSD), nas discussões internas e públicas. Finalmente, o projeto
enviado pelo governo previa a revisão da Lei nº 8.742, para que não fosse mais
permitido o acúmulo de benefícios na mesma família e a dedução de valores com
medicamentos, tratamentos e alimentação especial, algo que foi conquistado
durante a pandemia, no governo de Jair Bolsonaro, expresso na Lei nº 13.982, de
2020. Caso aprovado na sua forma inicial, o projeto reduziria pela metade a
renda de uma família composta por dois idosos ou um idoso e uma pessoa com
deficiência, que tivessem apenas os benefícios como renda. Esse ponto foi
severamente criticado e alterado na redação final. Ainda assim, passou a ser
incluída a renda de todos os coabitantes, como irmãos/ãs e enteados/as, mudando
a definição atual e, portanto, dificultando o acesso ao benefício.
Tanto o acesso ao BPC foi dificultado, que mesmo após
todas as mudanças, a bancada do PSOL orientou voto contrário, e parlamentares
do próprio PT, como Erika
Kokay,
votaram contra, admitindo que o projeto prejudica pessoas com deficiência e
restringe a valorização do salário mínimo. Ainda assim, agora a PEC está
aprovada e é lamentável que dias antes os mesmos parlamentares à esquerda
estivessem alegando ser “fake news” que o projeto afetava pessoas vulneráveis e
prejudicava o salário mínimo. Foi graças a essas manifestações públicas que a
base de trabalhadoras e trabalhadores não se mobilizou e optou por defender o
governo, de modo que a PEC, ainda que com melhorias, foi aprovada. Outras
figuras expressivas na esquerda, como Lindbergh Farias, Randolfe Rodrigues,
Jandira Feghali e Maria do Rosário votaram a favor do projeto, ou se abstiveram
da votação e não comentaram nada publicamente, como Erika Hilton. Dessa forma,
o governo deu a oportunidade para que a direita argumentasse não ser aceitável
que o corte de gastos se torne um corte de gente, como disse Sergio Moro
(União), ou que o ajuste deveria vir de quem pode contribuir mais, não da parte
mais frágil da sociedade, como disse Rogério Marinho (PL). Após as
mobilizações, o líder do PT, Jacques Wagner, disse que o governo irá vetar a
modificação do critério de pessoa com deficiência e o cancelamento do benefício
por desatualização de cadastro.
·
Pessoas com deficiência e mulheres
cuidadoras
As pessoas com deficiência, assim como mães de pessoas
com deficiência, tendem a estar organizadas em associações que buscam a
judicialização ou doações para acessar medicamentos, terapias, cirurgias e
direitos básicos, sendo que vereadores e parlamentares, bem como grupos de
caridade à direita, costumam estar mais próximos dessa comunidade do que a
esquerda. Isso é um fato observável. Portanto, a esquerda não apenas promove um
ataque desumano como também adota uma linha politicamente irracional. Em vez de
se aproximar dessa comunidade, se distancia mais ainda dela, paradoxalmente,
pouco após aprovar o Projeto
Nacional de Cuidados.
De nada adianta estabelecer grandes diretrizes, teoricamente embasadas no
anticapacitismo e no feminismo, se na luta concreta pelo orçamento, pelo acesso
a bens e serviços, e frente às diferentes capacidades, as pessoas são deixadas
à própria sorte, a depender de advogados e doações.
Por estarem sujeitas ao trabalho de cuidados não
remunerado, as mulheres têm menos tempo disponível e logo, menos acesso ao
mercado de trabalho e menor renda. Igualmente, têm mais dificuldade em
contribuir com a previdência, de forma que sua aposentadoria, em situação de
baixa renda, costuma ser o BPC. Ainda, sendo as grandes cuidadoras compulsórias
da sociedade, quando é necessário o cuidado permanente, as mulheres passam a
viver do BPC de outra pessoa. Ou seja, estamos falando não apenas de uma pessoa
em situação de pobreza, o que já seria terrível, mas sim, de duas pessoas
pobres, que se encontram impossibilitadas de trabalhar, uma por necessitar de
cuidados e outra por estar cuidando. Portanto, o critério de renda é
indiferente às diversas capacidades físicas e às desigualdades de tempo
disponível para o trabalho remunerado.
Em casos de crianças com deficiência intelectual,
doenças raras ou deficiências graves, as poucas pesquisas que temos apontam
para uma assustadora estatística de até 95% de abandono paterno, ficando
evidente os vieses machistas e capacitistas nos critérios de concessão do BPC
(Callegari, 2021). Além disso, essas famílias incorrem em gastos extras com
medicamentos, tratamentos, terapias, locomoção e itens de higiene. Por essas
características, existem diversos Projetos de Lei, apresentados nos últimos
anos, que na contramão do ajuste fiscal, buscam facilitar o acesso ao BPC para
pessoas com deficiência. As pessoas com deficiência e mulheres cuidadoras, que
se conectam pelas associações e grupos de apoio, não esquecerão que tiveram
seus poucos direitos ameaçados sob um governo de esquerda, e foi a atuação do
Congresso que atenuou essa ameaça.
·
Sobre injustiças dentro do ajuste fiscal
Enquanto os cortes sobre os mais pobres serão
imediatos, as medidas positivas anunciadas, como isenção de IR para quem ganha
até R$ 5 mil, e a sobretaxação para quem ganha acima de R$ 50 mil, não são
suficientes para atingir a progressividade necessária na renda, e ainda
precisarão passar pelo Congresso, para que, caso aprovadas, vigorem somente em
2026. Ou seja, a tática de negociação parece ter sido liberar emendas para que
o Congresso aprovasse um pacote contra os mais pobres, e a direita saísse como
defensora da população, em vez de liberar emendas para promover mudanças
estruturais no andar de cima, o que ao menos faria algum sentido no longo
prazo. Ao mesmo tempo, outros números são tão escandalosos que não podem mais
ser escondidos. Como diversos analistas vêm apontando, temos
aproximadamente R$1,7
trilhão em
perdidos anualmente em benefícios tributários, sonegação e juros da dívida,
além de aproximadamente R$615 bilhões distribuídos a acionistas, por meio de
lucros e dividendos, de forma totalmente isenta, enquanto trabalhadores pagam
até 27,5% de imposto sobre seus salários. Poderia se argumentar que os cortes
sobre o povo são uma demanda do Congresso para que aprove reformas estruturais,
mas como vimos, tampouco o Congresso demandou os cortes, quanto se comprometeu
com as reformas.
Quanto aos juros da dívida pública, temos a cifra
assustadora de aproximadamente R$50 bilhões pagos aos detentores de títulos da
dívida pública a cada 1% de aumento da taxa Selic, e para isso, basta uma
canetada, a portas fechadas, do Copom (Comitê de Política Monetária), que não
foi eleito por ninguém. Inclusive durante essa ofensiva contra o povo, o Comitê
decidiu novamente subir em mais um ponto a taxa de juros, o que equivale a um
gasto maior do que toda a economia que o governo pretendia com o ajuste em
2025. No entanto, a conta de juros não entra na meta fiscal, que fica
ideologicamente restrita aos gastos não financeiros (gastos primários). Agora,
se é verdade que o
presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, é um bolsonarista e tem
explícitos conflitos de interesse, atuando em causa própria, é também
verdade que o governo não fez nenhum movimento para rever a autonomia do Banco
Central e mudar a sua presidência. Igualmente, não buscou alterar a meta de
inflação, que nos primeiros governos petistas era significativamente menos
dura, e que é determinada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) – composto por
Fernando Haddad, Simone Tebet e Campos Neto. Muito menos houve esforço no
sentido de questionar o sistema de metas de inflação em si, que é um
instrumento ortodoxo destinado à subordinação da política fiscal e dos gastos
sociais, e não ao controle inflacionário. Por fim, a indicação de Gabriel
Galípolo para assumir a presidência do Banco Central não deveria ensejar
otimismo, dado que ele divergiu muito pouco de Campos Neto nas decisões
internas que promoveram o aumento constante da taxa Selic. Enquanto isso,
a Confederação
Nacional da Indústria (CNI) e até membros
do setor financeiro e analistas insuspeitos de heterodoxia acharam
injustificada e desmedida a subida na taxa.
·
A austeridade como uma mentira em si
Então, em um breve resumo, a iniciativa do ajuste
fiscal não partiu do Congresso. Pelo contrário, grande parte deste se mobilizou
para atenuar a proposta ou simplesmente votou contra. Em segundo lugar, ainda
que a proposta original, de mudanças extremas nos benefícios, não tenha sido
aprovada, o governo já perdeu muito para 2026 no que depender da comunidade de
pessoas beneficiárias de BPC e abono salarial, especialmente entre mães,
pessoas com deficiência e idosos/as.
E finalmente, frações da burguesia e do próprio setor
financeiro criticaram a voracidade da política monetária, que vem sendo apoiada
por Gabriel Galípolo, indicado pelo governo para o Banco Central. Portanto,
aparentemente, o governo faz tudo para agradar a uma parcela muito específica
da burguesia, de poucos e grandes atores financeiros, denominada Mercado. Mas
qual é o real poder desses atores em termos de manipulação do câmbio e de
determinação do gasto público?
Responder a essa pergunta parece ser algo fundamental
se quisermos sair da armadilha contrafactual permanente de nunca saber o que
poderia ter sido feito à esquerda, já que assumimos a premissa de que o Mercado
nada permite. O que sim, já sabemos, é que governar concedendo ao setor
financeiro, à mídia, aos militares, às igrejas e ao agronegócio tudo o que
desejam não foi capaz de garantir mudanças estruturais em troca, e ao fim,
resultou em um golpe – baseado, aliás, na falácia da responsabilidade fiscal.
Decorre também de um raciocínio lógico que se o governo
nada pode fazer, porque ao Mercado tudo pertence, quando um governo de direita
estiver no poder, ele também será apenas um refém, e portanto, esquerda e
direita seriam indiferentes. Ainda, se um governo de esquerda governa
objetivamente à direita, e a população tende a aderir à ideologia neoliberal
hegemônica, não temos como ser uma opção viável. Se essa tática e estratégia
vêm nos levando à derrota permanente, parece imprescindível governar buscando
mudanças estruturais, sem conceder aos atores financeiros mais poder do que de
fato têm, mesmo dentro de um cenário reformista. Para tanto, é fundamental
avaliarmos a pressão conjuntural sobre o câmbio e a pressão para ajuste fiscal,
frente ao funcionamento do sistema monetário e financeiro. É comum que
situações de coordenação financeira para a manipulação cambial, principalmente
na América Latina, remetam ao sentimento, de que algo incontrolável e
insustentável está acontecendo, devido às nossas experiências históricas com
espirais inflacionárias, crises cambiais e de dívida externa. Embora a mídia e
a narrativa econômica ortodoxa sigam se utilizando desse sentimento, ele não
tem lastro na realidade de um país sem dívida externa, com soberania monetária
(ou seja, não dolarizado) e que tem câmbio flexível.
Ainda que os grandes agentes do mercado financeiro (o
Mercado) possam coordenar uma manipulação para intensificar momentaneamente a
desvalorização – que o Real compartilha com outras moedas por fatores
geopolíticos -, essa manipulação só pode ser sustentada por um curto período de
tempo, uma vez que esses atores perdem dinheiro mantendo essa posição.
A dívida interna, por sua vez, é um ponto central, cuja
natureza e dinâmica devem ser entendidas pelos movimentos sociais e pela
população, para que não sejamos eternos prisioneiros de discursos
mistificadores da realidade econômica. Os títulos da dívida interna, em países
que emitem sua própria moeda, não são apenas uma contrapartida dessa criação de
moeda, mas também e fundamentalmente, instrumentos de gerenciamento de liquidez
(da quantidade de moeda na economia). Ou seja, os títulos da dívida são
instrumento tanto de política fiscal quanto de política monetária. Portanto,
são distintos de títulos de dívida externa em diversos sentidos. Por um lado,
porque não podem simplesmente ser auditados, questionados e cancelados, já que
são instrumentos que afetam toda a economia. Por outro, a dívida interna não é
algo a ser quitado ou que corra risco de não ser pago, já que ela é denominada
na moeda que o próprio governo emite.
Serrano e Pimentel (2017) mostram que países de moeda
soberana sempre conseguem rolar sua dívida interna e se financiar, dado que
mesmo que os agentes do mercado primário de títulos (no
Brasil, atualmente, 12 dealers) não queiram comprar os títulos de longo
prazo à taxa de juros oferecida, o mercado interbancário, onde o Banco Central
atua diariamente, sempre irá operar com títulos da dívida pública de curto
prazo, pois as instituições financeiras não vão perder dinheiro deixando suas
reservas bancárias paradas de um dia para o outro. Assim, o que ocorre é que
caso o governo não venda seus títulos de longo prazo à taxa de juros desejada,
ainda assim, o Tesouro realiza os gastos públicos normalmente, ampliando a
oferta de moeda na economia. Essa ampliação de moeda resulta em aumento de
reservas bancárias, que serão trocadas por títulos de curto prazo no mercado
interbancário. O Banco Central, por sua vez, é obrigado a intervir no mercado
interbancário, frente ao aumento ou à diminuição de reservas, comprando e
vendendo títulos, para atingir a meta Selic.
E para realizar essa atuação de política monetária, ele
deve ter títulos do Tesouro em quantidade suficiente na sua carteira. Assim, o
Tesouro sempre emite títulos para o Banco Central e o Banco Central sempre
realiza um financiamento indireto ao Tesouro, ainda que o financiamento direto
seja proibido por lei, como é o caso do Brasil.
Se o Banco Central não operasse dessa forma ou se os
agentes financeiros realmente negassem títulos da dívida, inclusive os de curto
prazo, o que aconteceria é que não seria atingida a meta Selic e não seria
feita a gestão de política monetária. Isso contradiria a própria narrativa do
Mercado, que privilegia tanto a gestão monetária e a importância da Selic. Fato
é que no sistema monetário contemporâneo, em países de moeda soberana, a dívida
interna é um instrumento de política macroeconômica, não tendo as mesmas
características daquilo que denominamos dívida em outros contextos. Um título
de dívida interna representa uma dívida no sentido de que ele é um compromisso
do governo com a pessoa que o detém, porque, para gerir a quantidade de moeda
na economia, o governo trocou título por moeda e prometeu devolver essa moeda,
acrescida de juros, nas condições especificadas no título. Mas, diferentemente
do que comumente se entende por dívida e do que são as outras dívidas, isso não
significa que o setor privado emprestou ao governo e que sem novos empréstimos,
o governo fica sem a sua própria moeda e pode vir a quebrar. Igualmente, não
significa que é o setor privado quem determina a taxa de juros. Sendo assim, é
economicamente impossível que a dívida do governo se torne impagável ou um
ativo inseguro, pois a dívida apenas deixaria de ser paga caso se optasse
politicamente por isso, nunca por falta de recursos. Na prática, os agentes do
Mercado, os mesmos que dizem que a dívida está insustentável, sabem disso, e
sempre vão manter investimentos em títulos do governo, que são rentáveis e têm
risco zero, sendo preferíveis a manter dinheiro parado.
A pressão que fazem na mídia e, eventualmente, no
mercado de títulos de longo prazo, é inteiramente política e visa aumentar
juros e cortar gastos sociais para a vulnerabilização da classe trabalhadora,
não melhorar indicadores financeiros abstratos do governo, para que a dívida se
torne “segura”. Eles também sabem que o governo não precisa arrecadar impostos
para pagar a dívida, a não ser que a própria regra fiscal estabeleça isso. A
partir desse entendimento, a Teoria da Moeda Moderna mostra que o fato de o
governo não ter limites financeiros para a criação de moeda e para seu próprio
financiamento, não significa que ele possa emitir moeda sem consequências reais
na economia. Pelo contrário, a economia real deve ser a base para um
planejamento de gastos públicos, já que o impacto dos gastos importa frente aos
seus efeitos na sociedade e nos indicadores macroeconômicos, e não no resultado
contábil do próprio governo. Os juros que incidem sobre os títulos, por sua
vez, acarretam um problema real de concentração de renda, como vimos. Porém,
uma vez que não é possível simplesmente auditar e cancelar a dívida interna,
temos que pensar em outros meios de gerir a quantidade de moeda na economia que
não sejam tão custosos. Muito provavelmente, a partir da maior estatização do
setor bancário e de outras regras para o mercado interbancário.
Portanto, na ausência de um poder real imposto por uma
moeda estrangeira, a austeridade é uma amarra ideológica, que recria o poder
inexistente e o internaliza por meio da legislação fiscal. O papel das regras
fiscais é mimetizar as constrições econômicas de países dolarizados ou
endividados externamente, determinadas por órgãos multilaterais, como o FMI,
por exemplo. Nesse sentido, o grande poder do mercado foi impor a ideia de
tetos de gastos, que não existia nos primeiros governos petistas, e que foi
acatada pelo Novo Arcabouço Fiscal. Sim, os agentes financeiros e a burguesia
como um todo detêm o grande poder político de direcionar a mídia, pressionar e
derrubar governos de diversas formas, inclusive quando a política econômica
está a seu favor. No entanto, a ideologia atua para criar ilusões em espaços
vazios de poder. Assim, romper com a chantagem permanente da austeridade requer
criar consciência popular a respeito do sistema monetário e financeiro. O poder
que o Mercado não tem se concretiza pelo medo de enfrentá-lo.
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