sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Trocas sinistras: conceito-chave para compreender a população em situação de rua

Grupo de pesquisa lança nova pesquisa chamada "Trocas sinistras" e traz uma mudança de perspectiva sobre a população em situação de rua

O grupo reúne universidades brasileiras, entre pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade de São Paulo (USP), Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-IUPERJ) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Universidade do Distrito Federal (UnDF), Universidade Federal do Ceará (UFCE), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal de Viçosa (UFV), Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), UNIFACIG, Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO).

A pesquisa foi Coordenada pelos sociólogos Dr. Igor de Souza Rodrigues (UNIFACIG) e Dr. Dmitri Cerboncini Fernandes (UFJF).

Confira os principais resultados da pesquisa. 

1. Finalizamos uma pesquisa sobre a situação de rua. O relatório é fruto de mais de 10 anos de investigação, teórica e empírica sobre a vida nas ruas.

2. A pesquisa foi realizada em Volta Redonda-RJ, Manhuaçu-MG, Passos – MG, Barbacena-MG, Coretolândia e Sagrado Altar (cidades ocultadas pela questão ética científica) – para entender o avanço da situação de rua para as médias cidades e pequenas cidades do Brasil.

3. Mostramos o aumento na assistência nos últimos anos; mostramos o aumento dos estudos sobre a situação de rua; o aumento dos serviços prestados. Mostramos também como a quantidade de pessoas em situação de rua aumentou nos últimos anos;

4. O trabalho procura inicialmente explicar então "onde o Brasil está errando": o fracasso das políticas públicas, apesar do aumento dos serviços, dos investimentos na assistência, houve aumento expressivo no número de pessoas vivendo nas ruas, ao mesmo tempo, o debate público passa por uma crise de alternativas - o que chamamos de "panorama sombrio".

5. Uma boa parte da sociedade desconhece ou ignora o fato de que a situação de rua não é produto apenas do comportamento daqueles que vivem nestas condições, a sociedade como um todo tem colaborado para engendrar e produzido o grupamento.

6. A pesquisa mostrou como os mitos construídos sobre os cidadãos em situação de rua retiram a dignidade na medida em que massacram o grupamento e levam subjetividades à ruína (destruição de autoestima, autoconfiança, disciplina).

7. Inovamos em diversas questões: descartamos a teoria da multicausalidade da situação de rua (que a situação de rua tem múltiplas causas), assim como a teoria da exclusão (que são excluídos da sociedade - apontamos como fazem parte do sistema).

8. A pesquisa mostrou como a situação de rua decorre, em suas manifestações, dos processos de ruptura das trocas, simbólicas e materiais, e da fragmentação da reciprocidade com o social, a sociedade tem tido dificuldades em absorver estes indivíduos com vínculos que garantam direitos e cidadania.

9. O aumento da situação de rua tem tido grande interferência da eliminação dos postos de trabalho, da automação, dos sistemas informatizados de operacionalização mecânica. Cada vez mais, tem-se observado uma questão central do processo que estamos discutindo: a informatização e a informalidade empurrar pessoas para a condição de extremidade e vulnerabilidade social. A eliminação do trabalho. O capitalismo tem descartado não apenas matérias, mas seres humanos que não servem ao processo em questão.

10. Descobrimos como a questão da troca é um epicentro do problema da vida nas ruas. Entendemos que as “trocas sinistras”, relações pelas quais a sociedade tem se guiado são uma das principais causas do fenômeno. A QUESTÃO DAS TROCAS SINISTRAS É CHAVE NO PROCESSO.

11. Criamos uma nova teoria do valor para entender como a sociedade tem construído tipos de vulnerabilidade e criado sistema de descarte de pessoas.

12. As trocas sinistras se dão e refletem a contradição entre a tentativa de cuidado e a de violência com quem vive nas ruas. Trocas sinistras são relações que se alimentam da humilhação e de uma espécie de “sadismo social”. A sociedade se relaciona com alguém, fica frente a frente e, ao mesmo tempo, deseja a sua eliminação, o descarte, a sua morte, um misto de piedade, sadismo e humilhação.

13. Há certa dubiedade entre a mão que acolhe e a mão que bate, uma compreensão mal resolvida em relação à miséria, entre o ódio e a promoção de direitos, entre a generosidade e a perversão.

14. As políticas do Estado, em grande medida, têm se organizado sob o vergalhão deste tipo de relação – por um lado, cria-se albergues, aluguel social, Centro Pop, distribuição de alimentos, por outro lado, viola-se, desconsidera e se tritura direitos dos cidadãos em situação de rua. Há proximidade física, mas distinção, distância moral, simbólica e material, bombardeia-se a subjetividade do indivíduo com uma série de rotinas humilhantes, tornando-os produtos humanos descartados do capitalismo. Destina-se instituições para a assistência, cuidados, realiza-se doações, cria-se políticas públicas, mas se quer afastar, inexiste o elemento base da relação de pertencimento, a reciprocidade.

15. A ausência de reciprocidade nas trocas humanas também é motivada pelo processo de animalização dos cidadãos em situação de rua, considerados “sujos”, “feios” e “maldosos”

16. No contexto de vida nas ruas, o cachorro representa, em boa medida, resquícios de reciprocidade em um deserto de laços fragilizados, interrompidos, de trocas sinistras e impedimentos, empatia em campo de indiferença.

17. Mostramos como estas pessoas têm uma expectativa negativa em relação ao Estado e por isso, na grande maioria das vezes, o Estado está falhando.

18. Mostramos como os cidadãos em situação de rua não gozam de prestígio perante a sociedade para alimentar as expectativas que a própria sociedade exige para a plena inserção.

19. Mostramos como a sociedade reserva para a situação de rua um permanente estado de inconstitucionalidade, uma dimensão localizada no banimento da ordem de direitos, como se um lugar fosse montado para tolerar, naturalizar e aceitar o massacre de direitos de determinados indivíduos não considerados cidadãos. Cria-se, então, uma “redoma da violação”, tanto pelo Estado penal, que realiza opressões de toda ordem, quanto pelo Estado social, que ignora e não realiza ações necessárias para evitar violações de direitos dos não absorvidos em cidadania.

20. A visão da sociedade sobre a vida nas ruas também contribui como responsável por estas trocas sinistras e pela redoma da violação e pelo banimento de direitos dos cidadãos em situação de rua.

21. Detectamos algo que chamamos de exploração dos fundos de vida: uma relação de trabalho explorativa, exaustiva sem vínculos formais, jurídicos e de baixíssima recompensa material, que consome o indivíduo e o aprisiona em um ciclo não sustentável. O trabalho por quase nada.

 

Fonte: Por Igor Rodrigues, doutor em ciências sociais e pesquisador sênior do Ministério da Justiça/SENAD, em IHU 

 

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