quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Sérgio Ferrari: Saúde doente

O ano de 2024 terminou quase sem boas notícias para a humanidade. O aumento dos gastos militares é agravado pela diminuição dos orçamentos de saúde.

O último Relatório de 2024 da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre gastos globais nessa área, publicado em dezembro passado, conclui que, em 2022, os governos alocaram à saúde diminuíram em relação aos números de 2021.

A conclusão da OMS é o resultado de um processamento cuidadoso de informações abundantes e confiáveis disponíveis desde 2000, procedentes de 190 países. O relatório anual dessa organização das Nações Unidas é publicado regularmente desde 2017 e é uma referência essencial para a análise da situação da saúde no mundo.

Enquanto isso, em abril de 2024, o Instituto Internacional de Estudos para a Paz, de Estocolmo (SIPRI), informou que os gastos militares mundiais em 2023 aumentaram 6,8% em termos reais em comparação com 2022; foi o aumento mais acentuado dos últimos 15 anos. Essa tendência contrasta com a queda constante dos orçamentos de saúde.

·        Raio-X devastador

De acordo com o Relatório de 2024 da Organização Mundial da Saúde, 4.5 bilhões de pessoas –mais da metade da população do planeta– não têm acesso a serviços básicos de saúde e 2 bilhões enfrentam maiores dificuldades financeiras porque devem assumir privadamente uma parte significativa desses custos. O paradoxo revelado por essa agência das Nações Unidas é fundamental: embora o acesso aos serviços de saúde tenha melhorado ao longo do tempo, seu encarecimento representa uma carga financeira muito problemática para um vasto setor da população, a ponto de muitas pessoas caírem na pobreza porque precisam financiar seus cuidados médicos e de saúde.

De acordo com a OMS, os gastos diretos (pessoais e privados) continuam sendo a principal forma de financiamento da saúde em 30 países de baixa e média renda. Em 20 deles, "mais da metade do gasto total com saúde foi pago diretamente pelos pacientes, o que é um gatilho para o ciclo de pobreza e vulnerabilidade".

Os desafios colocados pela falta de proteção financeira para a saúde não se limitam aos países pobres. Também nos países de alta renda, os pagamentos diretos por salários de saúde geram sérias dificuldades. Como resultado, não é possível fornecer todos os cuidados médicos e de saúde necessários, especialmente em famílias de baixa renda.

Os dados não mentem: em mais de um terço dos países ricos, ou seja, aqueles com alta renda, pelo menos 20% do gasto total com saúde é assumido diretamente pelos pacientes. Em muitos casos, essa situação obriga os pacientes a minimizar seus custos médicos ou de medicamentos para evitar que seus orçamentos familiares explodam.

·        Um mau exemplo

Por exemplo, na Suíça –que goza de um sistema de saúde típico de um país altamente desenvolvido–, o que cada habitante paga mensalmente pelo seguro de saúde obrigatório (cerca de 500 dólares por adulto) varia de acordo com o valor da franquia (ou seja, o que o segurado deve pagar antes que seu seguro comece a funcionar). Quanto menor a franquia, maior o pagamento mensal. Cada vez mais, há um grande setor da população, especialmente jovens e pessoas de baixa renda, que optam por uma alta franquia de $ 2.750 (2.500 francos) por ano e, assim, buscam reduzir o pagamento mensal. Isso significa que as despesas médicas até esse valor terão que ser pagas individualmente pelo próprio segurado.

Assim, a saúde está hoje no centro das preocupações dos setores médios e baixos da população suíça, dado o aumento contínuo do pagamento mensal, entre 5 e 10% ao ano, dependendo de cada cantão (Província, Estado) e dependendo de cada uma das dezenas de fundos médicos, todos privados. Sindicatos e organizações sociais suíças se mobilizam há anos em favor de um Fundo Médico Único, com forte participação do Estado, com a perspectiva de redução de custos no setor. A maioria parlamentar de direita e extrema direita, com forte presença e intenso lobby de representantes de seguradoras privadas e da grande indústria farmacêutica, se opõe a tal proposta que reduziria substancialmente seus atuais lucros astronômicos no setor de saúde.

·        Fortalecimento da saúde pública

A OMS propõe que os governos priorizem a Cobertura Universal de Saúde (CSU, por sua sigla em espanhol) em nível nacional e reduzam o empobrecimento gerado pelas despesas relacionadas à saúde. Dessa forma, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio seriam alcançados e soluções substantivas seriam alcançadas até 2030. Essa prioridade na saúde pública em todas as suas esferas é condição fundamental para o alcance desses objetivos.

Já no final de 2023, a OMS alertou que mais de 1 bilhão de pessoas no mundo poderiam cair na pobreza devido às despesas diretas com saúde, que representam aproximadamente 10% ou mais, de seus orçamentos familiares. A agência da ONU defende a expansão da atenção primária à saúde, que, até 2030, poderia salvar 60 milhões de seres humanos em países de baixa e média renda e aumentar a expectativa de vida em 3,7 anos.

Entre as estratégias eficazes para fortalecer a proteção legal e financeira da saúde, a OMS enfatiza a necessidade de minimizar ou eliminar franquias para os usuários mais necessitados (incluindo pessoas de baixa renda e/ou com doenças crônicas) e estabelecer mecanismos de financiamento da saúde por meio de fundos públicos que beneficiem toda a população.

Segundo a OMS, a saúde pública envolve a definição de orçamentos para "serviços essenciais de saúde que vão desde a promoção à prevenção, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos, usando uma abordagem de atenção primária à saúde". Esse conceito "inclui toda a sociedade e visa garantir o mais alto nível possível de saúde e bem-estar e sua distribuição equitativa por meio de cuidados focados nas necessidades das pessoas".

A atenção primária, pilar essencial da saúde pública, inclui três componentes interdependentes e sinérgicos. Primeiro, o conjunto de serviços de saúde integrados e abrangentes que englobam esse nível básico de atenção. Em segundo lugar, políticas e iniciativas multissetoriais para abordar a saúde de forma abrangente e global. Em terceiro lugar, um elemento essencial baseado na participação cidadã e que a OMS define como "a mobilização e o empoderamento de indivíduos, famílias e comunidades para alcançar uma maior participação social e melhorar o autocuidado e a autossuficiência em saúde.

·        América Latina e Caribe: o déficit da medicina pública

Embora o investimento público em saúde na América Latina e no Caribe tenha aumentado na primeira parte do século, não foi suficiente para atingir os objetivos propostos. Em 2021, 4,5% do Produto Interno Bruto (PIB) foram alocados quando pelo menos 6,0% foram projetados. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), naquele mesmo ano, apenas 61% do que foi investido em saúde na região correspondeu a recursos financeiros públicos.

Como ambas as organizações apontam em seu relatório conjunto, de outubro de 2024, as contribuições diretas –ou seja, pagas do bolso dos usuários– chegaram a 28%. Em 14 países, os pagamentos diretos, ou com recursos dos pacientes, excederam 30% de seus respectivos investimentos nacionais em saúde. Cuba foi o país do continente com maior cobertura pública e menor gasto direto (8,4%). As famílias guatemaltecas, no outro extremo, tiveram que arcar com mais de 60% de seus gastos com saúde. Na Argentina e no Brasil, mais de 22% dos recursos familiares foram para a saúde-sal.

A OPAS e a CEPAL afirmam que esses números "são preocupantes, pois os gastos diretos reproduzem desigualdades no acesso e na qualidade do atendimento e podem se traduzir em despesas catastróficas ou empobrecedoras". Para essas duas organizações líderes em questões de saúde no continente, essas desigualdades destacam a necessidade urgente de "aumentar o gasto público em saúde, juntamente com uma gestão eficiente dos recursos".

A menos que os principais problemas estruturais do setor público de saúde sejam abordados –fundamentalmente o subfinanciamento crônico e a fragmentação e segmentação dos sistemas de saúde– essas desigualdades e o consequente empobrecimento de um vasto setor latino-americano e caribenho continuarão a piorar irremediavelmente, de acordo com a OPAS e a CEPAL.

É um panorama mundial no qual se instalam os altos e baixos da irracionalidade planetária. Em um dos lados da gangorra global, a saúde que cai, desconsiderando, assim, o esforço humano para cuidar e sobreviver. E no outro, armas mais sofisticadas, munições e a indústria militar em pleno andamento para alimentar as guerras espalhadas pelo planeta, responsáveis por milhões de vítimas e causadoras de retrocessos ambientais e civilizacionais.

 

Fonte: Brasil 247

 

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