Aracy P. S. Balbani: Os
tigres, o dragão e nós
Pouco tempo depois do desgaste da imagem das Forças
Armadas provocado pelo vídeo institucional sobre supostos privilégios dos civis
em relação aos servidores públicos da Marinha, uma nova polêmica surgiu.
A linguagem da mensagem de final de ano do Comandante
da Marinha, Almirante Marcos Sampaio Olsen, divulgada em vídeo há poucos dias,
abre espaço vasto para observações.
Várias expressões destacam-se na fala do Ministro da
Marinha. Pinçamos: “com os propósitos de enaltecer os feitos perpetrados”; “No
decurso, alicerçada nos princípios”; “indelegáveis preceitos constitucionais”;
“sobrepujou”; “mitigando prejuízos”; “a alocação de investimentos que
robusteçam”; “concretizando realizações de inestimável envergadura”; “operações
no entorno estratégico brasileiro”; “a incorporação dos meios navais no estado
da arte”; “águas jurisdicionais brasileiras”; “combate a ilícitos
transnacionais”; “sob a égide do apoio às ações do Estado, destacou-se pela
atuação diligente, com especial relevo à população assolada por intempéries
climáticas severas”; “a Marinha logrou reconhecimento internacional’; “O Poder
Naval consolida-se como instrumento irrefutável de projeção de poder e
salvaguarda dos interesses do Estado”; “O ano de 2024 reiterou, de maneira
categórica, a impreterível necessidade de uma Marinha crível, dotada de
tecnologias autóctones”.
Entre os dois momentos da fala do Ministro, a narradora
do vídeo cita “O lançamento de armas valida a letalidade e a eficácia dos
sistemas em cenários críveis” e “foco na interoperabilidade”.
A mensagem pode ter sido dirigida ao oficialato ou ao
corpo técnico da Marinha do Brasil. Mas, como o conjunto da população civil
financia as Forças Armadas para a Defesa Nacional, ou seja, para a defesa de
todas as famílias brasileiras, nada mais justo do que adequar a forma e o
conteúdo do vídeo a uma prestação de contas capaz de ser entendida pela maioria
do povo.
A realidade da sociedade brasileira ainda é muito
diferente da dos países Tigres Asiáticos. Singapura, por exemplo, adotou a
democracia parlamentar após a independência, em 1965. Desde então, priorizou a
educação formal da população e prosperou na economia e no desenvolvimento
social.
Idem na Coreia do Sul, que firmou educação de
qualidade, desenvolvimento tecnológico e fomento industrial como pilares do
governo. Lá, houve mobilização popular contra a tentativa recente de golpe de
Estado.
Cabe lembrar que a imigração coreana para o Brasil
completou 61 anos em 2024. Mais de 100 empresas daquele país fazem negócios
aqui, e pelo menos três grandes indústrias coreanas, dos setores automotivo e
tecnológico, têm fábricas instaladas no nosso país.
A China, que celebrou a tradição do Ano do Dragão em
2024, dispensa apresentações e comparações conosco, seja no impacto da educação
pública para reduzir o analfabetismo e acelerar o desenvolvimento, na
importância no cenário econômico global atual ou no poderio militar.
Em contrapartida, o Censo Escolar brasileiro, divulgado
no início deste ano, mostrou que o ensino médio teve os maiores índices de
evasão e repetência escolar do País: 5,9% e 3,9% respectivamente. Isso motivou
o Governo Federal a implementar o Programa Pé-de-Meia, tentando atrair os
jovens para a escola e reverter a situação.
Há exatamente um mês, a imprensa nacional divulgou
perfis públicos de adolescentes que ganham a vida como influenciadores
digitais. Eles ofereciam cursos nas redes, com a promessa de prosperidade sem
necessidade de estudo. Um deles afirmava: “Qual faculdade você pensa em fazer
no futuro? Faculdade? Eu já ganho mais que cinco médicos no mês”.
Que contraste com o privilégio dos alunos do Colégio
Naval do Rio de Janeiro, mencionado no vídeo institucional como um dos melhores
do ensino brasileiro.
De outro lado, o Projeto de Lei n° 6256, de 2019, da
Deputada Federal Érika Kokay (PT-DF), que “institui a Política Nacional de
Linguagem Simples nos órgãos e entidades da administração pública direta e
indireta de todos os entes federativos”, está, nesse momento, aguardando
emendas no Senado Federal.
Se a proposta for aprovada no Congresso Nacional, “a
linguagem simples, clara e de fácil entendimento, deverá ser utilizada por
órgãos e entidades governamentais para evitar “uma comunicação cheia de
formalidades e de difícil compreensão”.
Segundo a Agência Senado, “o projeto elenca algumas
técnicas de linguagem simples, como o uso da ordem direta nas orações, o
emprego de frases curtas, a exposição de uma única ideia por parágrafo, o uso
de palavras comuns e de fácil compreensão e a organização do texto de forma
esquemática”.
Essa iniciativa vem de encontro à tendência mundial de
facilitar a comunicação. Basta de burocratês. Sobretudo num país como o Brasil,
com grau de letramento abaixo do desejável e índice alto de analfabetismo
funcional.
Tendo tudo isso em mente, será que nossos cidadãos que
abandonaram os estudos na adolescência para ajudarem a sustentar a família
decifraram o significado de palavras como “perpetrados”, “indelegáveis”,
“égide”, “crível”, “irrefutável”, “impreterível” e “autóctones”, entre outras,
presentes na fala ministerial?
Como foi o entendimento dessa mensagem da Marinha pelos
influenciadores digitais juvenis que preferem a internet à escola, seja esta
pública ou privada? O vocabulário usual deles não ultrapassa “msg”, “obg”,
“ctz”, “fechou”, “tks” ou “fds”. Os “manos” e “manas” excluídos da sociedade,
que acabaram cooptados pelo tráfico de entorpecentes, compreenderam o vídeo?
“Belê” pra eles?
Que interpretação do vídeo institucional se pode
esperar dos letrados com diploma universitário que adquirem armas de fogo? Ou
os que insistem em queimar o próprio dinheiro soltando fogos de artifício com
estampido, mesmo nos municípios que divulgam exaustivamente que o uso desses
artefatos é proibido por lei? Diploma de curso superior não é garantia de
inteligência. Nem de discernimento. Menos ainda de ética. Essa gente não
entende o que lê ou despreza a democracia, a Constituição e as leis ordinárias?
Não apenas essas pessoas, independentemente de serem
civis ou militares, da ativa ou inativas, do seu grau de inteligência ou
escolaridade, da sua ideologia, de sua ética, ficaram encafifadas ao tomarem
conhecimento da mensagem do Almirante Olsen e do restante do vídeo.
Qual o sentido prático de “necessidade de uma Marinha
crível”, “incorporação dos meios navais no estado da arte” e “O lançamento de
armas valida a letalidade e a eficácia dos sistemas em cenários críveis”? É
preciso esclarecer em linguagem simples e direta.
Ao ouvir a frase da narradora do vídeo da Marinha sobre
“validar a letalidade”, lembrei-me do rebuliço que um professor de Medicina
causou na turma ao dizer, numa aula, que o doente, “apesar do tratamento,
evoluiu para êxito letal”. Falar de sucesso da morte costuma incomodar. Mesmo
quem é “do ramo”. Ainda que se apele às metáforas.
Se sobraram formalidade, jargão técnico e rodeios, pelo
menos não houve mesóclises no vídeo mais recente da Marinha. Já é um auspício.
Melhor dizendo, é um bom sinal. Há um fio tênue de esperança.
O crescimento das tensões militares e da associação do
nazifascismo com o crime organizado ao redor do mundo, até com o financiamento
de tentativas de golpes de Estado, torna crucial o Brasil consolidar a
democracia e a defesa da soberania nacional.
Promover uma reforma militar e desenvolver ciência e
tecnologia nacionais nos setores de defesa, inteligência sanitária,
telecomunicações e tecnologia nuclear, incluindo o Reator multipropósito
brasileiro, são ações inadiáveis.
A participação da Marinha é fundamental não só nesses
processos, mas também para expandir a excelência da educação e saúde públicas a
toda a população brasileira; trabalhar no resgate e salvamento de seres vivos
nas enchentes e nos acidentes com embarcações, e conscientizar os brasileiros
para o cuidado com o mar, nossos rios e lagos.
O trabalho da nossa Marinha em defesa da paz de todas
as famílias brasileiras merece uma comunicação clara e mais simples. E com
quanto mais empatia pelo povo, melhor.
Fonte: A Terra é
Redonda
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