Comunidades Terapêuticas, recursos públicos e
autorização para tortura
No dia 16 de
dezembro de 2024, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 6.090, que
institui um grupo de trabalho destinado a propor diretrizes para mapeamento e
avaliação das Comunidades Terapêuticas Acolhedoras. No dia seguinte, o Ministério
do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) — atual
responsável pelo financiamento de vagas em Comunidades Terapêuticas (CTs) no
âmbito federal —, publicizou a pesquisa “Monitoramento das
Entidades de Apoio e Acolhimento atuantes em Álcool e Drogas (2023-2024)”[1].
Durante a
transmissão de lançamento do relatório, realizada pelo canal oficial do MDS, na
plataforma YouTube, o ministro Wellington Dias destacou seu interesse de longa
data pelos serviços das CTs, remontando ao período em que foi governador do
estado do Piauí. Na ocasião, defendeu que o movimento em prol dessas
instituições deve ser fundamentado cientificamente, e não apenas nas bases
políticas. Tal argumento justifica a condução do MDS no incentivo à parceria
com universidades para avaliar e monitorar a política de financiamento de vagas
nas CTs, atualmente conduzida pelo Departamento de Entidades de Apoio e
Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas (DEPAD/MDS).
Atualmente, o
DEPAD/MDS, por meio do Edital nº 08/2023, financia vagas em mais de 500 CTs
brasileiras. O relatório divulgado apresenta dados do monitoramento realizado
pelo Núcleo de Pesquisa em Vulnerabilidade e Saúde da Universidade Federal de
Minas Gerais (NAVeS/UFMG). O documento, de 71 páginas, está dividido em cinco
capítulos, nos quais são detalhados a metodologia de monitoramento, os
resultados e suas análises.
Foram apresentados
dados sobre localização, infraestrutura, vagas, recursos humanos, situação
jurídica e impressões dos acolhidos. No entanto, o foco do relatório recai
sobre os aspectos mínimos de infraestrutura e cumprimento básico de normas
legais, deixando lacunas significativas em dimensões essenciais, como a
qualidade da proposta terapêutica e a reinserção social dos acolhidos,
princípios fundamentais da Lei 10.216/2011,
que rege a Reforma Psiquiátrica brasileira e estabelece proteção às pessoas que
possuem transtorno mental. Apesar de reportar que a maioria das entidades
atende aos padrões mínimos, esses parecem baixos. Por exemplo, alojamentos
coletivos com alta densidade de pessoas por quarto e banheiros compartilhados
são apresentados como aceitáveis. Há registro de quarto com 80 pessoas.
Elementos como alimentação insuficiente, limitação e privação de contato com a
família, atividades laborais por tempo extenuante, obrigação de venda ou
arrecadação de dinheiro, uso de castigos também aparecem, além da precarização
dos vínculos dos trabalhadores.
Também é notável a
fragilidade das análises dos registros dos Planos de
Acompanhamento Singular (PAS), essenciais para construção de projetos de
vida. Faltam evidências de ações robustas para fortalecer os laços familiares e
comunitários, além de acompanhamento pós-acolhimento em serviços ambulatoriais.
Essa lacuna reitera uma lógica assistencialista: as Comunidades Terapêuticas
priorizam acolhimentos temporários e negligenciam intervenções a longo prazo
que promovam autonomia e reinserção social.
O documento também
apresenta uma crítica ao Relatório de
Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, publicado pelo Conselho Federal de
Psicologia (CFP) e o Ministério Público, em 2018. Esse é um outro fato
interessante: segundo o documento há discrepância entre o Relatório do CFP e o
percentual de profissionais atuantes em Comunidades Terapêuticas. De acordo com
o relatório, “enquanto essas entidades de classe dessas profissões têm se
mostrado resistentes ao financiamento federal às entidades, os profissionais de
suas bases têm ocupado amplo espaço de trabalho nelas, por meio do trabalho
remunerado. Achado semelhante a este já foi referido pelo estudo do IPEA em
2017(DIEST/IPEA, 2017) (Garcia, 2024, p. 61)”. Mas ora, o fato de psicólogos
estarem atuando nesses espaços não é reflexo da complexidade da relação entre a
prática profissional e as condições oferecidas pelo mercado de trabalho? Afinal
de contas, a própria UFMG, em seu relatório sinaliza que mais da metade dos
profissionais das CTS estão em vínculos precários de trabalho ou na condição de
voluntários, inclusive os próprios psicólogos.
O documento também
evidencia que existem entidades financiadas pela União que realizam o
acolhimento de adolescentes, mas deixa de mencionar a Resolução nº 249,
de 10 de julho de 2024, do CONANDA, que dispõe sobre a proibição do
acolhimento de crianças e adolescentes em Comunidades Terapêuticas. Essa
resolução é resultado de um extenso debate realizado por órgãos do Sistema de
Garantia de Direitos das Crianças e Adolescentes.
Outra questão
crítica é a menção as violações de direitos humanos. Apesar de sucessivos
investimentos públicos e a fiscalização, os direitos dos acolhidos continuam
fragilizados. O relatório sugere que as violações diminuíram, mas ainda
existem. O financiamento massivo justifica-se, então, pela “baixa
frequência” de tortura e pelo “quase cumprimento” das normas vigentes?
Essa constatação
torna o discurso do ministro Wellington Dias preocupante. Seu entusiasmo parece
respaldar-se em métricas quantitativas que minimizam violações graves e
enaltecem a ausência de tortura como um avanço suficientemente aceitável. A
pergunta que fica é: em um país que luta pela garantia de direitos humanos e
sociais, quanto vale a perpetuação de um modelo que “viola pouco” e “tortura às
vezes”?
As CTs deveriam ser
avaliadas não apenas pelo cumprimento mínimo de normas, mas pela suposta
eficácia e eficiência de sua proposta terapêutica. Continuar a investir em um
modelo que não entrega resultados consistentes na promoção da cidadania e
autonomia dos acolhidos é insistir em uma lógica que está mais preocupada em
conter corpos do que em cuidar de pessoas.
A avaliação dos
serviços oferecidos pelas CTs é uma carência apontada em diversos estudos, que
destacam a falta de transparência e de análise sobre a eficiência e eficácia
dessas instituições. A proposta do MDS representa uma etapa necessária, pois é
imprescindível avaliar e monitorar os serviços que se comprometeram a financiar.
Entretanto, a utilização dessa pesquisa revela um cenário preocupante:
instituições que promovem violência e violações de direitos passaram, a partir
de 17 de dezembro de 2024, a utilizar o relatório como uma validação científica
para assegurar a continuidade desse financiamento.
Nesse caminho,
quando as luzes se apagaram para o recesso das festas de fim de ano, tivemos a
publicização de um material que legitima o avanço das CTs como equipamentos de
acolhimento e proteção, ao mesmo tempo que ocorre a expansão dos Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS), no Ministério da Saúde. Portanto, os recursos
dispensados pelo MDS seguem sendo utilizados para ampliar a contenção, a
privação, a violência e o terror por meio das CTs. Reconhecemos a disputa de
modelos de acolhimento, recursos públicos, direção técnica e cena política, o
que nos mostra a correlação de forças no interior do governo. Para nós fica a
seguinte questão: seguiremos na ampliação de um modelo que pauta-se pela lógica
da destruição e da tortura, ou será defendido e legitimado o cuidado em
liberdade, os direitos humanos e a desinstitucionalização? Afinal, quem lucra
com a mercantilização da oferta do acolhimento de pessoas vulneráveis, em
situação de rua e com histórico de uso prejudicial de drogas?
Fonte: Por Rachel
Gouveia, Giulia Castro, Lucas Moura e Maria Luiza Lopes, no Le Monde
Nenhum comentário:
Postar um comentário