quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Comunidades Terapêuticas, recursos públicos e autorização para tortura

No dia 16 de dezembro de 2024, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 6.090, que institui um grupo de trabalho destinado a propor diretrizes para mapeamento e avaliação das Comunidades Terapêuticas Acolhedoras. No dia seguinte, o Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) — atual responsável pelo financiamento de vagas em Comunidades Terapêuticas (CTs) no âmbito federal —, publicizou a pesquisa “Monitoramento das Entidades de Apoio e Acolhimento atuantes em Álcool e Drogas (2023-2024)[1].

Durante a transmissão de lançamento do relatório, realizada pelo canal oficial do MDS, na plataforma YouTube, o ministro Wellington Dias destacou seu interesse de longa data pelos serviços das CTs, remontando ao período em que foi governador do estado do Piauí. Na ocasião, defendeu que o movimento em prol dessas instituições deve ser fundamentado cientificamente, e não apenas nas bases políticas. Tal argumento justifica a condução do MDS no incentivo à parceria com universidades para avaliar e monitorar a política de financiamento de vagas nas CTs, atualmente conduzida pelo Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas (DEPAD/MDS).

Atualmente, o DEPAD/MDS, por meio do Edital nº 08/2023, financia vagas em mais de 500 CTs brasileiras. O relatório divulgado apresenta dados do monitoramento realizado pelo Núcleo de Pesquisa em Vulnerabilidade e Saúde da Universidade Federal de Minas Gerais (NAVeS/UFMG). O documento, de 71 páginas, está dividido em cinco capítulos, nos quais são detalhados a metodologia de monitoramento, os resultados e suas análises.

Foram apresentados dados sobre localização, infraestrutura, vagas, recursos humanos, situação jurídica e impressões dos acolhidos. No entanto, o foco do relatório recai sobre os aspectos mínimos de infraestrutura e cumprimento básico de normas legais, deixando lacunas significativas em dimensões essenciais, como a qualidade da proposta terapêutica e a reinserção social dos acolhidos, princípios fundamentais da Lei 10.216/2011, que rege a Reforma Psiquiátrica brasileira e estabelece proteção às pessoas que possuem transtorno mental. Apesar de reportar que a maioria das entidades atende aos padrões mínimos, esses parecem baixos. Por exemplo, alojamentos coletivos com alta densidade de pessoas por quarto e banheiros compartilhados são apresentados como aceitáveis. Há registro de quarto com 80 pessoas. Elementos como alimentação insuficiente, limitação e privação de contato com a família, atividades laborais por tempo extenuante, obrigação de venda ou arrecadação de dinheiro, uso de castigos também aparecem, além da precarização dos vínculos dos trabalhadores.

Também é notável a fragilidade das análises dos registros dos Planos de Acompanhamento Singular (PAS), essenciais para construção de projetos de vida. Faltam evidências de ações robustas para fortalecer os laços familiares e comunitários, além de acompanhamento pós-acolhimento em serviços ambulatoriais. Essa lacuna reitera uma lógica assistencialista: as Comunidades Terapêuticas priorizam acolhimentos temporários e negligenciam intervenções a longo prazo que promovam autonomia e reinserção social.

O documento também apresenta uma crítica ao Relatório de Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, publicado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o Ministério Público, em 2018. Esse é um outro fato interessante: segundo o documento há discrepância entre o Relatório do CFP e o percentual de profissionais atuantes em Comunidades Terapêuticas. De acordo com o relatório, “enquanto essas entidades de classe dessas profissões têm se mostrado resistentes ao financiamento federal às entidades, os profissionais de suas bases têm ocupado amplo espaço de trabalho nelas, por meio do trabalho remunerado. Achado semelhante a este já foi referido pelo estudo do IPEA em 2017(DIEST/IPEA, 2017) (Garcia, 2024, p. 61)”. Mas ora, o fato de psicólogos estarem atuando nesses espaços não é reflexo da complexidade da relação entre a prática profissional e as condições oferecidas pelo mercado de trabalho? Afinal de contas, a própria UFMG, em seu relatório sinaliza que mais da metade dos profissionais das CTS estão em vínculos precários de trabalho ou na condição de voluntários, inclusive os próprios psicólogos.

O documento também evidencia que existem entidades financiadas pela União que realizam o acolhimento de adolescentes, mas deixa de mencionar a Resolução nº 249, de 10 de julho de 2024, do CONANDA, que dispõe sobre a proibição do acolhimento de crianças e adolescentes em Comunidades Terapêuticas. Essa resolução é resultado de um extenso debate realizado por órgãos do Sistema de Garantia de Direitos das Crianças e Adolescentes.

Outra questão crítica é a menção as violações de direitos humanos. Apesar de sucessivos investimentos públicos e a fiscalização, os direitos dos acolhidos continuam fragilizados. O relatório sugere que as violações diminuíram, mas ainda existem. O financiamento massivo justifica-se, então, pela “baixa frequência” de tortura e pelo “quase cumprimento” das normas vigentes?

Essa constatação torna o discurso do ministro Wellington Dias preocupante. Seu entusiasmo parece respaldar-se em métricas quantitativas que minimizam violações graves e enaltecem a ausência de tortura como um avanço suficientemente aceitável. A pergunta que fica é: em um país que luta pela garantia de direitos humanos e sociais, quanto vale a perpetuação de um modelo que “viola pouco” e “tortura às vezes”?

As CTs deveriam ser avaliadas não apenas pelo cumprimento mínimo de normas, mas pela suposta eficácia e eficiência de sua proposta terapêutica. Continuar a investir em um modelo que não entrega resultados consistentes na promoção da cidadania e autonomia dos acolhidos é insistir em uma lógica que está mais preocupada em conter corpos do que em cuidar de pessoas.

A avaliação dos serviços oferecidos pelas CTs é uma carência apontada em diversos estudos, que destacam a falta de transparência e de análise sobre a eficiência e eficácia dessas instituições. A proposta do MDS representa uma etapa necessária, pois é imprescindível avaliar e monitorar os serviços que se comprometeram a financiar. Entretanto, a utilização dessa pesquisa revela um cenário preocupante: instituições que promovem violência e violações de direitos passaram, a partir de 17 de dezembro de 2024, a utilizar o relatório como uma validação científica para assegurar a continuidade desse financiamento.

Nesse caminho, quando as luzes se apagaram para o recesso das festas de fim de ano, tivemos a publicização de um material que legitima o avanço das CTs como equipamentos de acolhimento e proteção, ao mesmo tempo que ocorre a expansão dos Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), no Ministério da Saúde. Portanto, os recursos dispensados pelo MDS seguem sendo utilizados para ampliar a contenção, a privação, a violência e o terror por meio das CTs. Reconhecemos a disputa de modelos de acolhimento, recursos públicos, direção técnica e cena política, o que nos mostra a correlação de forças no interior do governo. Para nós fica a seguinte questão: seguiremos na ampliação de um modelo que pauta-se pela lógica da destruição e da tortura, ou será defendido e legitimado o cuidado em liberdade, os direitos humanos e a desinstitucionalização? Afinal, quem lucra com a mercantilização da oferta do acolhimento de pessoas vulneráveis, em situação de rua e com histórico de uso prejudicial de drogas?

 

Fonte: Por Rachel Gouveia, Giulia Castro, Lucas Moura e Maria Luiza Lopes, no Le Monde

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário