Brasil flagra mais
de 1,6 mil escravizados em 2024, do Rock in
Rio à BYD
O BRASIL encontrou,
pelo menos, 1.684 trabalhadores em condições análogas às de escravo em 2024. O
número é menor que os 3.238 resgatados de 2023 e os 2.507 de 2022. Com eles, o
país ultrapassou 65,2 mil trabalhadores flagrados desde a criação dos grupos
especiais de fiscalização móvel, segundo dados do Ministério
do Trabalho e Emprego.
Em maio deste ano, essa força-tarefa, base do sistema de combate à escravidão
no país, completa 30 anos.
As operações são
coordenadas pela Inspeção do Trabalho em parceria com o Ministério
Público do Trabalho, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o
Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, entre outras
instituições. Ou por equipes ligadas às Superintendências
Regionais do Trabalho nos
estados, que também contam com o apoio das Polícias Civil, Militar e
Ambiental.
A totalização está
passando por revisão e pode oscilar para cima. O final do ano ficou marcado
por três resgates que ganharam repercussão nacional.
O primeiro foi o de
163 chineses em condições análogas às de escravo trabalhando nas
obras da fábrica de automóveis da BYD em Camaçari (BA). Tanto a
Jinjiang, prestadora de serviços para a construção, como a empresa foram
responsabilizadas pela situação pelos auditores
fiscais do trabalho e
notificadas pelo grupo móvel em 23 de dezembro.
Contratos
analisados pela fiscalização previam jornada de dez horas por dia, seis dias
por semana, com possibilidade de extensão, o que levava a uma jornada semanal
de 60 a 70 horas — muito maior do que o limite legal no Brasil de 44 horas. A
jornada exaustiva criava um ambiente propício a acidentes
de trabalho –
houve pelo menos quatro, inclusive com amputação de membros e perda
de movimentos nos dedos.
Um dos alojamentos
registrava 31 trabalhadores para um único vaso sanitário, levando os operários
a terem que acordar às 4h para enfrentar uma fila e começar o dia. Muitos
dormiam sem colchões, outros com produtos tão finos que era como se dormissem
sem nada. As cozinhas estavam em condições precárias de higiene.
Além
das condições degradantes, a fiscalização também configurou trabalho
forçado,
que ocorre quando são impostas condições que impedem que as vítimas se
desvinculem de seus patrões e do serviço por medo de não receberem pelo tempo
trabalhado e terem que arcar com os custos de retorno. “Eles não têm a liberdade
de escolha finalizar o contrato de trabalho”, afirmou à coluna Liane
Durão, auditora fiscal do trabalho que coordenou a operação. “Isso é um
limitador da vontade do trabalhador de encerrar o seu contrato de trabalho,
direito que é garantido por lei”, diz.
“A BYD Auto do
Brasil reitera seu compromisso com o cumprimento integral
da legislação brasileira, em especial no que se refere à proteção dos
direitos dos trabalhadores. Por isso, está colaborando com os órgãos
competentes desde o primeiro momento e decidiu romper o contrato com a
construtora Jinjiang”, afirmou Alexandre
Baldy,
vice-presidente sênior da BYD Brasil, em nota à imprensa.
·
Vereadora
manteve doméstica negra em escravidão por 28 anos
Em outra operação,
conduzida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em parceria com o Ministério
Público do Trabalho e
a Polícia Federal, uma trabalhadora doméstica, negra, de 61 anos, foi resgatada
de uma situação análoga à escravidão da casa da vereadora Simone Rezende
Rodrigues da Silva (União Brasil), conhecida como Simone Cabral, de
Além Paraíba (MG). De acordo com a fiscalização, ela estava há 28 anos
trabalhando para a família.
A vítima é uma
mulher pobre, oriunda da zona rural de Leopoldina (MG). Sem acesso
à educação formal, ela nunca aprendeu a ler ou a escrever. Durante a
inspeção, realizada em dezembro, foi constatado que ela trabalhava sem descanso
e não tinha direito a lazer ou vida social.
“As violações
encontradas no presente caso vão além da simples negação de direitos
à trabalhadora.
Ao lado da ausência de condições justas, do não-pagamento de salários, da
usurpação dos períodos de descanso e lazer, à trabalhadora foi negado o básico
para a sua existência como pessoa”, afirma o relatório de fiscalização,
coordenada pelo auditor fiscal Luciano Pereira de Rezende. A coluna tentou
contato com a vereadora na época do resgate, mas não teve sucesso.
A trabalhadora relatou
aos agentes públicos que nunca recebeu salário e que, quando precisava comprar
algo, pedia à Simone. Segundo ela, a patroa teria dito que o dinheiro de
sua remuneração estava guardado em um banco. A vereadora, que está em
seu terceiro mandato, durante depoimento presente no relatório de
fiscalização, negou a exploração e disse que a trabalhadora era uma “pessoa da
família”. E contradizendo o que havia relatado a doméstica, afirmou que ela não
tinha conta aberta em banco.
·
Força-tarefa
resgata 14 da escravidão no Rock in Rio
Auditores fiscais
do trabalho da Superintendência Regional do Trabalho no Rio de Janeiro e
procuradores do Ministério Público do Trabalho da 1ª Região concluíram, também
em dezembro, uma operação que resultou no resgate de 14 pessoas submetidas a
condições de trabalho análogo ao de escravo na edição 2024 do Rock
in Rio.
A empresa organizadora foi diretamente responsabilizada, mas negou as
acusações.
Parte dos
trabalhadores eram levados a dobrar a jornada por dias seguidos na esperança de
receber mais, chegando a trabalhar por 21 horas em um único turno e descansando
por apenas três horas.
“Eles começavam a
jornada às 8h e iriam até as 17h. Quando dava o horário, o supervisor
perguntava: quem quer dobrar? E eles iam até as 5h da manhã. O problema é que
já retornariam três horas depois. Então, em razão dessa oferta de pagamento
maior, falavam sim. E onde é que dormiam? Lá, no chão, em cima de jornal,
papelão, usando mochila de travesseiro, utilizando um banheiro improvisado,
absolutamente um lixo”, afirmou à coluna o auditor fiscal do trabalho Alexandre
Lyra,
um dos coordenadores da operação.
Os fiscais do
trabalho encontraram os 14 trabalhadores precariamente sobre papelões, sacos
plásticos ou lonas, alguns com cobertores, demonstrando que havia um
planejamento prévio para pernoitar no local. Parte das trabalhadoras resgatadas
tomavam banho de canequinha no banheiro feminino pela falta de
chuveiro. Para garantir que homens não entrassem no local durante seu banho,
tinham que tirar a maçaneta da porta do sanitário.
As vítimas atuavam
como carregadores de grades, equipamentos, bebidas e estruturas metálicas,
na montagem do festival e na limpeza de alguns espaços. “Sabe aquela fotografia
clássica do barraco de lona, das necessidades fisiológicas no mato, do consumo
de água compartilhadas com os animais, do trabalho
escravo rural?
Por incrível que pareça, vimos mais ou menos essa fotografia no ambiente urbano
do Rock in Rio. Os trabalhadores estavam largados”, explica Alexandre
Lyra.
Em nota,
a Rock World negou as acusações de trabalho escravo e disse que as
autoridades “lançaram sérias acusações contra a Rock World, de maneira
precipitada, desrespeitando o direito constitucional ao contraditório, ampla
defesa e presunção de inocência, já que os fatos ainda estão sob o crivo de um
processo administrativo recém-iniciado”. A empresa ressaltou que nenhuma
alegação foi comprovada até o momento.
A respeito da
denúncia, a Rock World declarou que o episódio envolveu apenas
trabalhadores de uma empresa terceirizada, a Força Bruta, e que “agiu
prontamente” após tomar conhecimento dos fatos. A empresa diz ainda ter
instruído as terceirizadas e fornecedoras a realizar contratações respeitando a
legislação. A Força Bruta foi procurada, mas não retornou. O espaço segue
aberto.
·
Resgates
de trabalhadores no café em MG têm ataques e ameaças
O ano também foi de
tensão para os servidores públicos que verificam denúncias e resgatam
trabalhadores. Após 24 trabalhadores serem resgatados de condições análogas às
de escravo em três fazendas de café em Nova Resende, Juruaia e Areado, no Sul
de Minas Gerais, em junho, o deputado federal Emidinho
Madeira (PL-MG)
foi à tribuna da Câmara pedir apoio do seu partido e da bancada ruralista para
mudar a norma que orienta a fiscalização trabalhista no campo.
Em seu
pronunciamento, acusou a fiscalização de causar pânico e criticou que os
policiais e servidores públicos envolvidos no combate
à escravidão portem
armas pesadas e fiquem um longo período em cada propriedade. Produtores de café
do Sul e Sudoeste de Minas são parte da base eleitoral do deputado, que é
coordenador da Frente Parlamentar do Café.
“Senhores
auditores, a tinta da caneta, essa multa, é muito pesada e tira muita gente da
atividade. Onde vocês passaram nessa semana, a colheita desse ano e do ano que
vem dos pequenos produtores já estão comprometidos com a justiça e o nome
travado”, afirmou. Propôs que, ao invés das operações
de resgate,
houvesse “orientação” e “diálogo” com produtores.
A “dupla visita”,
quando a fiscalização primeiro orienta e só em outro dia pune no caso
de manutenção da irregularidade, é antiga demanda de alguns setores econômicos.
Ela já é prevista pela legislação em casos de infrações leves, mas segue
barrada para o crime de escravidão e trabalho
infantil.
Em 6 de junho, uma
operação da Polícia Federal teve como alvo um homem que disparou
áudios com ameaças contra a fiscalização do trabalho que atua na região
cafeeira de Minas Gerais. Ele prestou depoimento e teve o celular apreendido.
Os áudios chegaram aos servidores públicos durante fiscalização em lavouras na
região do município de Muzambinho, em maio, e foram encaminhados à PF, que
identificou o autor.
“Se juntar todo mundo,
os trabalhadores, 30 pessoas pegando café, na hora em que a fiscalização chegar lá,
quebra o carro deles, mete o pau neles e desce o cacete neles. Aí, vai parar
com essa pouca vergonha aí”, diz um dos áudios.
·
Trabalho
escravo contemporâneo
A Lei
Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que
o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra
pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos
descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.
Desde a década de
1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas
dá-se o nome de trabalho
escravo contemporâneo,
escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.
De acordo com o
artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão
contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do
direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a
dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições
degradantes (trabalho
que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida)
ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento
dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Os mais de 65
mil trabalhadores
resgatados estavam
em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola,
sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na
extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura,
em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.
No total,
a pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde
1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem
ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção
do Trabalho no Brasil.
Fonte: Por Leonardo
Sakamoto, no UOL
Nenhum comentário:
Postar um comentário