quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

AGRONEGÓCIO: Rotulagem Climática — A cadeia da carne bovina e seus desafios

Não há dúvida de que o maior desafio contemporâneo são as mudanças climáticas. Catástrofes cada vez mais recorrentes, como a que se abateu sobre o Rio Grande do Sul em 2024, com grande impacto social e econômico, estão colocando à prova a capacidade governamental, a resiliência ambiental e a coesão social. Não obstante, essas catástrofes mostram deficiências na capacidade de resposta dos governos, na fragilidade dos ecossistemas pressionados pela ocupação humana e nas fissuras sociais, especialmente em relação à polarização e disputas políticas.

No centro dos acontecimentos estão as negociações pelo clima, as chamadas COPs (Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima — Conferência das Partes), já estão em sua 29º edição e rumo à 30º, no Brasil, em 2025. No debate sobre o papel dos Sistemas Alimentares no agravamento das mudanças climáticas, o Brasil ocupa um lugar de destaque. Segundo dados do relatório do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) do Observatório do Clima de 2023, os Sistemas Alimentares respondem por 21% a 37% das emissões globais dos GEE. No Brasil, o índice de contribuição dos Sistemas Alimentares para essa realidade é de 73,7%, sendo que destes, 78% é atribuído à pecuária, em razão da dimensão do rebanho bovino nacional e das áreas de pastagens. Para a pecuária, o principal vetor a impulsionar esse índice é o desmatamento, que corresponde a 70,6% do total das emissões do setor, seguido pelas emissões diretas do rebanho, 29,2% e 0,2% para os setores de energia e resíduos.

O Brasil é o terceiro maior consumidor de carne bovina do mundo, com uma média de 36,7 quilos por habitante ao ano. O mercado interno consome cerca de 72,1% da produção total, enquanto 27,9% é destinada à exportação, com destaque para a China, que responde por 54,7% das exportações. Ressalta-se, ainda, que o Brasil está entre os países que mais cresceram em termos de produção pecuária no mundo nos últimos dez anos, se tornando o maior exportador, representando uma participação de 27,7% nas exportações mundiais, segundo dados do Beef Report de 2023.

Tais dados colocam a pecuária brasileira em um lugar estratégico para o Brasil e para o mundo, visando contribuir ainda mais efetivamente com a diminuição na emissão dos GEE e alcançar as metas previstas nas NDCs (Contribuição Determinada Nacionalmente). Porém, os desafios colocados à cadeia produtiva da carne bovina nacional são enormes e com poucas ações que habilitem avançar na velocidade que a emergência climática impõe, já que não há, até o momento, uma meta climática para o setor da carne no Brasil vinculada à NDC brasileira, com mecanismos auditáveis.

Pesquisas internacionais que investigam possibilidades de enfrentamento das mudanças climáticas, atentas ao papel que os Sistemas Alimentares ocupam neste debate, destacam que a criação de sistemas de rotulagem climática é uma iniciativa promissora, por meio de transformações nos padrões de consumo alimentar e, indiretamente, de práticas produtivas. Atentos a esse debate e com essas preocupações, entre 2023 e 2024 conduzimos uma pesquisa (que resultou em dois relatórios, o primeiro sobre o cenário internacional e o segundo sobre o cenário brasileiro de rotulagem climática para o setor da carne) sobre as possibilidades e desafios para elaboração de uma rotulagem climática para o setor da carne no Brasil, a partir de revisão da literatura especializada e entrevistas com variados atores do setor no país.

No contexto brasileiro, uma política de rotulagem climática para os alimentos tem o potencial de não só engajar consumidores, mas também de criar oportunidades para o setor produtivo. Assim, do ponto de vista do consumidor, tal iniciativa proporciona escolhas mais bem informadas e pode gerar demanda pública por informações sobre a origem e a conformidade ambiental da carne que consumimos. Do ponto de vista do setor produtivo, um sistema de rotulagem climática permitiria identificar e valorizar os produtores que adotam boas práticas e estão em conformidade com a legislação brasileira. Em um contexto de críticas e pressões por maior responsabilização ambiental, a rotulagem climática, amparada em sistemas públicos de informação, pode ser uma das frentes a produzir respostas a tais demandas, distinguindo os bons produtores e empresas no país daqueles que cometem e consentem com crimes ambientais e sociais. Além disso, os produtos com rotulagem climática ingressariam mais facilmente em novos mercados internacionais, cada vez mais exigentes. Tal sistema poderia assumir uma governança pública e/ou privada e incorporar mensagens, tais como: “carne rastreada até a origem”, “carne livre de desmatamento”, “carne que respeita os direitos humanos e territoriais” ou “carne carbono neutro”. Assim, não seria preciso determinar uma mensagem única, mas poderia normatizar um conjunto de mensagens climáticas que seriam agregadas na parte frontal das embalagens de produtos que atendessem a certos critérios. No entanto, a criação de uma rotulagem climática no Brasil enfrenta desafios e entraves institucionais que merecem atenção. Ademais, embora a rotulagem seja uma estratégia interessante para o enfrentamento às mudanças climáticas por meio de alterações no consumo e incentivo a transformações em práticas produtivas, ela deve estar articulada com outras iniciativas.

O primeiro grande entrave é a carência de uma política pública nacional de rastreabilidade obrigatória e com foco socioambiental no país, o que permitiria produzir informações sobre a origem da carne e, com isso, interditar a carne produzida a partir de propriedades contaminadas por crimes ambientais, como o desmatamento. A trajetória da discussão sobre rastreabilidade com foco socioambiental no país é marcada pela criação de dois compromissos públicos a partir de 2009: o chamado TAC da Carne, firmado entre o Ministério Público Federal e os frigoríficos da Amazônia Legal, e o Compromisso Público da Pecuária, elaborado pelo Greenpeace, após operações de autoridades públicas que co-responsabilizaram frigoríficos pela compra de carne associada a desmatamento, invasão de terras indígenas, madeireiras ilegais e uso de trabalho em condições análogas à escravidão. Desde então, embora os principais frigoríficos do país tenham criado seus próprios programas corporativos de rastreabilidade e assinado tais acordos – o que aponta para o reconhecimento do setor sobre a importância da rastreabilidade socioambiental -, tais iniciativas ainda enfrentam fragilidades e limites nos sistemas de monitoramento, nas formas de reportar publicamente os resultados e na falta de alinhamento do setor quanto à data de corte para determinar a interdição de fornecedores.

Em 2023 e 2024, no entanto, assistimos a propostas e promessas de criação de políticas públicas de rastreabilidade em nível nacional e estadual. A Mesa Brasileira da Pecuária Sustentável, juntamente com a Coalizão Brasil, Clima e Agricultura, fóruns que reúnem representantes do setor produtivo, grandes frigoríficos e organizações da sociedade civil, divulgaram em 2023 uma proposta de política nacional de rastreabilidade individual obrigatória para a pecuária brasileira, inclusive com indicação de realizar uma rastreabilidade socioambiental juntamente com a sanitária. O Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA), todavia, recebeu a proposta e criou um Grupo de Trabalho (Portaria SDA/MAPA n.º 1.113/2024) visando elaborar um plano estratégico para implementação da política pública para rastreabilidade individual de bovinos e bubalino, o que resultou, até o momento, em uma proposta que contempla apenas a dimensão sanitária, relegando a questão ambiental e social a um instrumento de cadastro voluntário, chamado de Plataforma AgroBrasil+Sustentável. No nível estadual, o Pará, como parte de suas promessas enquanto estado sede da próxima COP em 2025, se comprometeu a rastrear individualmente todo o seu rebanho de gado até o final de 2026, integrando programas ambientais. No entanto, o programa está em fase inicial, realizando a brincagem e rastreabilidade sanitária, sem uma estratégia bem delimitada de monitoramento sobre os crimes ambientais e sociais que resultam da atividade pecuária no estado. Assim, embora tais anúncios renovem esperanças de avanços rumo a políticas públicas de rastreabilidade com foco socioambiental no Brasil, ampliando o acesso à informação sobre a origem da carne que consumimos, a inclusão de questões de monitoramento socioambiental ainda não está consolidada. No que diz respeito à rotulagem climática, um sistema nacional de rastreabilidade possibilitaria a produção de informações e garantiria a integridade dos dados socioambientais, dando lastro a diferentes possibilidades de rotulagem.

O destaque dado à rastreabilidade obrigatória do gado, individual, sanitária e socioambiental, se deve ao fato de que é uma condição ímpar para se pensar qualquer outro tipo de política pública que incida sobre a cadeia produtiva da carne no Brasil. Mesmo o Programa Nacional de Conversão de Pastagens Degradadas em Sistemas de Produção Agropecuários e Florestais Sustentáveis (PNCPD), lançado em 2023 pelo Governo Federal, com uma meta de melhorar 40 milhões de hectares de áreas degradadas, apresenta limites quanto à efetividade no combate ao desmatamento, sem uma política pública de rastreabilidade ativa, ampla e efetiva.

A intensificação sustentável da pecuária no Brasil é outro grande desafio – e também uma promessa – por visar fomentar a adoção de práticas regenerativas, adaptadas aos biomas brasileiros para reduzir o volume de emissões e potencializar a remoção de carbono emitido pelas práticas de produção, por meio do manejo adequado do solo, das pastagens e das florestas. Pesquisadores do tema apontam, entretanto, que existem limites quanto ao aumento do rebanho nacional, capacidade de retenção de CO2 pelo solo e mecanismos de controle auditáveis por parte do mercado e do governo. A prática de manejo da Integração Lavoura, Pecuária e Floresta (ILPF) é um sistema conhecido que vem ganhando destaque nacional, especialmente em pesquisas conduzidas pela Embrapa.

Outro desafio a ser enfrentado é a ausência de metodologias e métricas oficiais para o cálculo de emissões no setor da pecuária. No Brasil, já há inúmeras metodologias de cálculo, métricas e formas de reportar os resultados dessas mensurações, o que resulta em um cenário de cacofonia metodológica e dificuldades de comparação entre as abordagens existentes. Isso contribui para a produção de diagnósticos distintos sobre a pecuária brasileira e, consequentemente, interpretações e narrativas conflitantes sobre as responsabilidades do setor em relação às mudanças do clima. Neste cenário, é fundamental que o cálculo e/ou balanço de emissões vinculadas à cadeia da carne no Brasil tenha uma normatização técnica oficial, em linha com as normas internacionais, para gerar comparabilidade (entre práticas, produtores e produtos), possibilitar um diagnóstico oficial sobre as emissões vinculadas às atividades agropecuárias e estimular o planejamento de medidas que visem atingir metas climáticas assumidas pelo país. Cabe destacar que o debate técnico tem implicações políticas importantes na definição de diagnósticos, responsabilidades e qualificações ambientais que podem ser atribuídas à pecuária brasileira. Por conta disso, para além da necessidade de normatizações oficiais, é fundamental garantir a participação qualificada, ampla e democrática em espaços de decisão sobre quais metodologias e métricas se pretende adotar.

Quando se trata de consumo, mais um desafio vem à tona. Os brasileiros geralmente não associam a produção de carne às mudanças climáticas. É importante destacar, que o consumo de carne é uma parte significativa da nossa cultura alimentar — somos o terceiro maior consumidor de carne bovina do mundo. Isso torna desafiador conduzir campanhas sobre os problemas ambientais relacionados à produção de carne no Brasil. O preço também é um fator decisivo nas escolhas de compra. Segundo os varejistas e produtores com quem conversamos, mesmo entre os consumidores com maior nível de instrução, o preço é considerado o principal fator, em conjunto com a aparência da carne. Além disso, independentemente do nível de renda, há pouca disposição em pagar um preço premium por uma carne com menor impacto climático, o que limita o potencial de mercados de nicho para impulsionar mudanças mais amplas.

Assim, nosso diagnóstico é o de que são necessários investimentos no letramento ambiental dos consumidores brasileiros – ou seja, a criação de campanhas direcionadas a diferentes grupos de consumidores, com foco na relação entre o consumo de alimentos e as mudanças climáticas. Essa é uma questão ainda pouco explorada por iniciativas públicas, pelo setor privado, como o varejo, e por organizações da sociedade civil que trabalham com pautas ligadas aos Sistemas Alimentares. Uma das primeiras campanhas sobre esse tema foi lançada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) no início de 2024, convocando consumidores brasileiros a refletirem sobre de onde vem a carne que comem. Ainda, há espaço para incluir a questão climática no Guia Alimentar para a População Brasileira, de modo a atualizar a liderança do Brasil na formulação de Guias Alimentares inovadores. Tal inclusão parte do reconhecimento de que os padrões de consumo alimentar podem – ainda que não intencionalmente – apoiar processos que promovem as mudanças climáticas, como o desmatamento e as queimadas.

Por fim, um último entrave são as operações financeiras que dão suporte econômico às atividades ligadas à pecuária. Atualmente, há poucas normas que corresponsabilizam o setor pelas práticas produtivas que financiam, a exemplo da Normativa SARB 026/2023 emitida pela Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), cuja a adesão é voluntária. As regulamentações bancárias carecem de medidas obrigatórias de monitoramento após a aprovação dos empréstimos, e todo setor deveria responder, em alguma medida, por crimes socioambientais praticados por seus credores, algo que demandaria uma normativa do Banco Central, inclusive. Ainda sobre o setor financeiro, percebemos em nosso estudo que a incorporação de uma agenda climática nas políticas fiscais para o setor da carne é incipiente. A exemplo disso, citamos a atual reforma tributária, em fase de regulamentação, que prevê “zerar” o imposto sobre a carne, sem distinguir quanto às formas de produção e nem incorporar preocupações climáticas, como a possibilidade de limitar a isenção às carnes provenientes de propriedades em conformidade com a legislação ambiental brasileira. Esta é uma agenda urgente e necessária, mesmo oportuna, cuja implantação de um sistema de rotulagem climática contribuiria no combate aos crimes ambientais e sociais ligados à pecuária.

Considerando que o enfrentamento às mudanças climáticas passa necessariamente por transformações em Sistemas Alimentares, cabe ao Brasil liderar a apresentação de propostas inovadoras, como a criação de uma rotulagem climática para o setor da carne. Nesse sentido, a rastreabilidade socioambiental é o principal desafio, embora sozinha não resolverá todos os problemas e desafios que pontuamos aqui. É preciso promover o letramento ambiental dos consumidores, criar regras referente às métricas de medição, aferição e auditoria sobre as emissões de GEE do setor da pecuária e pressionar para que os setores financeiros (bancos) e fiscais (reforma tributária) se comprometam ainda mais com a de redução dos crimes socioambientais vinculados à pecuária brasileira. A partir desta articulação, a rotulagem climática para a carne brasileira pode ser uma forte aliada às práticas que busquem maior transparência, melhor informação e mais controle sobre o que se produz, processa, comercializa, exporta e se consome.

 

Fonte: Por Maycon Noremberg Schubert, Marília Luz David e Frederico Salmi, no Le Monde

 

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