Eleutério F. S Prado: Do
neofeudalismo ao capitalismo
Faz-se aqui um comentário sobre um escrito de Jodi Dean
em que essa autora do campo crítico explica por que pensa que o modo de produção
capitalista está se transformando num novo outro que denomina de neofeudalismo.
O seu artigo From
neoliberalism to neofeudalism recém-publicado se mostra bem
apropriado como objeto de crítica porque está construído com base numa
ingenuidade metodológica.
Eis que apresenta essa tese partindo de uma definição
de capitalismo: “É importante deixar claro como entendo o capitalismo.
Acompanho Ellen Meiksins Wood quando ela enfatiza que a especificidade do
modo de produção capitalista vem do mercado, do modo como ele obriga certas
formas de comportamento, tais como “competição, acumulação, maximização do
lucro e aumento da produtividade do trabalho”. Wood explica, em adição, que o
sistema capitalista como um todo “impulsiona de maneira especial a elevação da
produtividade do trabalho por meios técnicos”.
Depois de bem fixar essa acepção, examina certas
caraterísticas do modo de produção atualmente existente para concluir que ele
está se transformando num outro que reproduz certas determinações constitutivas
do feudalismo.
O imperativo da acumulação sob condições de declínio da
taxa de lucro (estagnação secular) está colocando as leis capitalistas de
movimento em contradição consigo mesmas; por meio desse processo está
ocorrendo, também, uma remodelação da sociedade e da política. Os lucros, a
melhoria continua e a vantagem competitiva não ditam mais as estratégias de
acumulação; em vez disso, assoma o rentismo, a privatização e o entesouramento,
os quais estão requerendo coerção extraeconômica. Uma formação social impulsionada
por privilégios e dependência está, assim, sendo construída. Ademais, uma
subversão ocorre à medida que as leis capitalistas obrigam agora os agentes a
adotar comportamentos não capitalistas. As relações capitalistas e as forças
produtivas estão, pois, passando por uma transição sistêmica rumo a um modo de
produção diferente. Eu chamo esse modo de “neofeudal”.
Ora, como sabe, pode-se percorrer as centenas de
páginas de O
capital sem
descobrir uma definição de capitalismo. Karl Marx, como também se sabe, nem
mesmo usou esse termo ao longo desse escrito talvez porque temesse –
justamente, por assim dizer – a petrificação desse conceito por meio do
entendimento comum.
Pois, a noção usual de definição é incompatível com o
método empregado na construção dessa obra singular. Pois, como também é bem
sabido, a dialética que vem de Hegel não toma o objeto de investigação prévia,
e de posterior exposição, como um “ser fixo”, mas como um “ser em processo de
desenvolvimento”. Por isso mesmo esses autores não constroem teorias no sentido
tradicional, mas apresentações dialéticas que reproduzem o objeto como
conceito, ou seja, “em seu si mesmo e em seu próprio devir”.
Se se quer, portanto, compreender o capitalismo não se
pode buscar uma definição, mas é preciso acompanhar a exposição conceitual em
que consiste propriamente O capital. Eis que nele se
pratica a arte do desvelamento progressivo do objeto. Como se sabe, o modo de
produção capitalista, na abertura do Livro I, aparece como aquele em que se
produz sobretudo mercadoria. A riqueza aí aparece como uma “imensa coleção de
mercadorias”. A mercadoria individual – diz expressamente esse autor – consiste
em sua forma elementar. A interação social por meio de mercados, portanto, é
uma característica primeira desse modo de produção.
Contudo, essa primeira descrição é bem insuficiente
para compreender esse objeto. Como mostra a seção IV do primeiro capítulo, a
mercadoria não é “uma coisa simples, trivial e evidente”, pois, na verdade, vem
a ser de algo misterioso porque, além de ser coisa, parece ser que tem valor;
por isso mesmo, ela não se oferece de pronto para um conhecimento científico
rigoroso. Ao notá-la é preciso ver que se está na presença de uma “coisa muito
complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas”.
O mistério da forma mercadoria, explica Marx em
sequência, consiste em que o trabalho social dos humanos está posto por meio
dela como valor objetivo aí existente, algo que figura, portanto, como
determinação objetiva dos produtos do trabalho. O fetiche da mercadoria
decorre, assim, da confusão praxiológica entre a forma social assumida pelo
trabalho, manifestada como valor de troca, e o suporte dessa forma, o valor de
uso.
Até o capítulo IV do Livro I, o capitalismo figura como
um sistema em que imperam “relações reificadas entre pessoas e relações sociais
entre coisas”, ou seja, M – D – M; por isso, a economia vulgar apreende o
capitalismo apenas como “economia de mercado”. Ora, nesse capítulo essa
aparência é desmitificada. Marx, desenvolvendo o conceito, vai aí da aparência
do sistema para a sua essência, ou seja, da circulação de mercadorias para
examinar criticamente a produção de mercadorias.
Ao examinar a produção de mercadoria, ele encontra a
relação social de capital, cujo movimento D – M – D’ é infinito em princípio.
Apresenta, então, o capital como “valor que se valoriza” e, por isso mesmo,
como um “sujeito automático” que não prescinde do capitalista como agente que o
personifica. Mostra em sequência que esse movimento só é possível porque o
capital compra uma mercadoria especial que tem como característica particular
ser fonte de valor: a força de trabalho; ora, o valor de uso dessa capacidade,
o trabalho já como trabalho abstrato, pode ser acumulado sob invólucros
diversos: meios de produção, dinheiro, ações, títulos etc.
Nesse momento da exposição, Marx apresenta, pela
primeira vez, o que ele vai chamar de capital industrial, momento do sistema da
relação de capital, que vai receber atenção principal ao longo dos Livros I e
II e das três primeiras seções do Livro III. Cita-se aqui em sequência um
momento dessa apresentação em que Marx indica como o capital industrial marca
toda uma época história do processo social da produção, ou seja, do
capitalismo.
As formas específicas do dinheiro, seja como mero
equivalente de mercadorias ou como meio de circulação, seja como meio de
pagamento, tesouro ou dinheiro mundial, remetem (…) a estágios muito distintos
do processo social de produção. No entanto, uma circulação de mercadorias relativamente
pouco desenvolvida é suficiente para a constituição de todas essas formas,
diferentemente do que ocorre com o capital. Suas condições históricas de
existência não estão de modo algum dadas com a circulação das mercadorias e do
dinheiro. Ele só surge quando o possuidor de meios de produção e de
subsistência encontra no mercado o trabalhador livre como vendedor de sua força
de trabalho, e essa condição histórica compreende toda uma história mundial. O
capital anuncia, portanto, desde seu primeiro surgimento, uma nova época no
processo social de produção.
Bom, é bem evidente nesse ponto que Jodi Dean
privilegia esse momento para encontrar uma suposta definição de capitalismo.
Contudo, se ela está certa sobre o núcleo do conceito de capital, é preciso observar
que esse conceito, como tal, ainda não está completo: eis que o capital
industrial não pode prosperar sem o capital de financiamento. Na seção IV do
Livro III, Marx apresenta o capital de comércio e o capital de comércio de
dinheiro.
Na seção seguinte, ao examinar o sistema de crédito,
mostra como o capital de empréstimo, ou seja, o capital dinheiro em busca de
valorização, colabora com o processo de acumulação. Para tanto, ele assume as
formas de capital portador de juros e sua forma derivada, o capital fictício.
No primeiro caso, ele financia a produção, retirando uma parte do lucro
industrial na forma de juros; no segundo, ele acelera o consumo privado e
estatal, podendo incentivar também a especulação.
E aqui é preciso indicar que o capital dinheiro tem
outro valor de uso além daquele que permite a compra de mercadorias em geral e
da força de trabalho em particular. Como diz o próprio Marx, ele tem um “valor
de uso adicional, a saber, aquele de funcionar como capital”. Eis que na
“condição de capital possível (…) ele se torna mercadoria”. Ao invés de D – M –
D’ tem-se simplesmente D – D’, de tal modo que “a formula geral e ordinária do
capital, [fica assim] condensada de modo absurdo”. Ora, é da própria lógica do
sistema que D – D’, ao se desenvolver, venha subsumir D – M – D’; ao invés de
meramente servir o capital industrial ou de supervisionar a aplicação produtiva
de capital, o capital de financiamento tende a se transformar em comandante do
capital industrial.
Eis que, nessa forma, o capital é por excelência
capital, um vampiro sobretudo. Nas palavras de Marx isso está dito assim: nessa
forma “produz-se em toda a sua pureza esse fetiche automático do valor que se
valoriza a si mesmo, dinheiro que gera dinheiro, mas que ao assumir essa forma,
não traz mais nenhuma cicatriz de seu nascimento”. Contudo, se se atenta apenas
para essa aparência, pode parecer que não se está mais diante do capitalismo;
pode-se julgar que se entrou já num outro sistema econômico baseado na extração
e não na produção de riqueza especificamente capitalista. Pois, o capital de
financiamento se apresenta agora como um grande súcubo formado por direitos de
saque
Em consequência, já aqui é bom adiantar o seguinte: a
financeirização, que se consolida apenas na segunda metade do século XX, não é
um evento que vem negar o capitalismo. Mas antes dela – é bom perguntar aqui –
o que se tinha?
Do ponto de vista histórico, o capitalismo no século
XIX e boa parte do século XX, em que domina a grande indústria aparece como
capitalismo industrial por excelência. Contudo, como bem se sabe, já na segunda
década no século passado, Rudolf Hilferding mostra que o grande capital
industrial estava já se transformado em capital financeiro.
Ele examina o caso da Alemanha imperialista, notando
que o grande capital industrial deixava de ser propriedade privada de
capitalistas para se tornar propriedade de bancos e de sociedades anônimas,
transformando-se, assim, em propriedade coletiva de frações mais ou menos
numerosas da classe capitalista. “Uma parte cada vez maior do capital empregado
na indústria” – nota ele – agora “é capital financeiro”, ou seja, capital que
foi socializado e que passa a ser comandado, por meio da propriedade bancária e
acionária, por capitalistas financeiros. É assim que o capitalista por
excelência deixa de ser o capitalista industrial para se tornar o capitalista
financeiro, dono de grandes somas de dinheiro, ações, títulos públicos e
privados.
Ora, o que Rudolf Hilferding descobre na realidade
histórica já estava anunciado como possibilidade conceitual na própria
apresentação de O
capital. No
capítulo 27 do Livro III, comentando a criação da sociedade por ações, Marx
encontra-se o seguinte trecho: “O capital que, como tal, tem como base um modo
social de produção e pressupõe uma concentração social de meios de produção e
forças de trabalho, adquire, assim, diretamente a forma de capital social
(capital de indivíduos diretamente associados) em oposição ao capital privado,
e suas empresas se apresentam como empresas sociais em oposição a empresas
privadas. É a suprassunção [Aufhebung] do capital como
propriedade privada dentro dos limites do próprio modo de produção
capitalista”.
Portanto, Marx, ainda que não observasse isso na
realidade de seu tempo, previu a vinda de uma nova época no processo social de
produção em que o capital socializado passa a dominar de modo abrangente o
capital privado em sentido estrito. Ora, como se sabe, esse processo, que não
deixou de se desenvolver ao longo do século XX, ganhou uma dimensão nova com o
advento do neoliberalismo a partir dos anos 80 desse século. Mesmo
se o neoliberalismo é mais complexo como fenômeno histórico, ele leva o
processo de socialização do capital à culminação.
A partir de então, o capitalismo, portanto, já não pode
mais ser considerado como o domínio por excelência do capital industrial.
Diferentemente, precisa ser apreendido como um sistema em que domina o capital
de financiamento sob diversas formas. E esse capital aparece na forma de
direitos de saque sobre a riqueza produzida, o que enseja o domínio das
finanças sobre a produção e a repartição, ou seja, aquilo que é chamado desde
os tempos de Marx de rentismo.
Os seus veículos são o capital portador de juros que
extrai mais-valor do lucro gerado na produção mercantil e o capital fictício
que o faz capturando dividendos das empresas corporativas, parte dos impostos,
por meio do financiamento dos gastos públicos, e dos rendimentos privados, por
meio de empréstimos aos consumidores. Mas também o que tem sido chamado de capital
de plataforma já que este, em larga medida, está na forma de “capital como
mercadoria” e, por isso, não funciona mais, meramente, como o velho capital
industrial.
Ademais, como a forma de capital assim posta adere à
tecnologias de informação e comunicação, ele se torna capaz de exercer domínio
sobre todas as atividades humanas, econômicas e não econômicas, e de extrair
delas rendas extraordinárias sob diversas formas.
Não há, pois, nenhuma boa razão, encontrável na
apresentação dialética em que consiste O capital, para pensar que
está havendo uma transformação espontânea do capitalismo seja em neofeudalismo
seja em tecnofeudalismo. Esse modo de pensar é simplesmente um equívoco do
entendimento. Há, contudo, uma boa razão – e bons argumentos – para julgar que
se observa atualmente o ocaso do capitalismo.
Fonte: A Terra é
Redonda
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