Anselm Japp: Narcisistas por todo lado?
O presidente Emmanuel Macron, sempre preocupado com a competitividade da
indústria francesa, certamente deu um impulso a uma produção muito específica:
a da palavra “narcisista”. Do livro La pensée perverse au pouvoir de
Marc Joly (Anamosa, 2024), que se baseia no conceito de “perversão narcísica”
do psicanalista Paul-Claude Racamier, ao infatigável ensaísta Alain Minc, um
macronista arrependido, para quem as ações do presidente agora simplesmente
“refletem um narcisismo levado a um nível patológico, com o corolário de uma
negação total da realidade” (Le Monde, 11. 12. 2024), a palavra
“narcisista” nunca foi tão utilizada na política como nos últimos anos.
Na vida cotidiana, tanto em relação à esfera do trabalho quanto às
relações sociais ou à vida conjugal, há décadas se fala do “pervertido
narcisista” e de sua capacidade de manipular os que o cercam. A lista de
publicações dedicadas a este tema, tanto profissionais como para o público em
geral, continua aumentando.
O termo “narcisista”, introduzido em 1914 por Sigmund Freud em seu
ensaio epônimo e durante muito tempo confinado à esfera psicanalítica e ao seu
jargão, tornou-se de uso comum: isso significava então, grosso modo, “egoísta”,
“egocêntrico”, “ganancioso”, “manipulador”, “sem empatia”, “sem consideração
pelos outros”, mas também “excessivamente preocupado com a autoimagem e com a
procura de reconhecimento”, ou simplesmente “apaixonado por seu corpo e
desejoso de seduzir”.
O narcisismo evoluiu ao longo do século XX: tratado por Freud como uma
patologia bastante marginal, em comparação com a importância das neuroses
devidas à repressão dos desejos em seu tempo, o narcisismo “conquistou” pouco a
pouco um papel cada vez mais importante, tanto no discurso psicanalítico como
na consciência comum.
Parece bastante óbvio que esta evolução está ligada ao aprofundamento
das relações capitalistas em todas as esferas da vida e, em particular, à fase
neoliberal do capitalismo, a partir dos anos 1980: qualquer noção de
solidariedade coletiva é explicitamente rejeitada, o Estado social e outras
estruturas de ajuda mútua são desmanteladas e a lógica da empresa e da
concorrência é estendida para toda a vida. Cada um é convidado a conquistar individualmente
seu lugar na vida, utilizando todo os meios e sem se preocupar com as
consequências para os outros ou para a sociedade como um todo.
O “individualismo possessivo”, pilar da teoria política liberal, pode
ser resumido na frase de Margaret Thatcher: “A sociedade não existe”. Ele
triunfa por todo lado: não apenas nas esferas de comando, onde sempre reinou,
mas em todos os níveis da sociedade. A perversão narcísica seria, então, não
mais do que o lado abertamente patológico desta mentalidade competitiva que o
capitalismo contemporâneo encoraja permanentemente, e até a torna indispensável
para nele sobreviver. Ela indica o ponto em que os comportamentos necessários
ao funcionamento do sistema correm o risco de se tornarem não funcionais e de
perturbarem o funcionamento da mega-máquina, pois resultam numa negação da
realidade e destroem o mínimo de confiança entre os indivíduos, sem o qual nem
mesmo o modo de vida capitalista poderia continuar.
No entanto, a ligação entre o aumento da “taxa de narcisismo” e o
desenvolvimento do capitalismo no século XX existe também em outro nível. Freud
fazia distinção entre um “narcisismo primário” e um “narcisismo secundário”. O
narcisismo primário constitui uma etapa fundamental do desenvolvimento psíquico
de cada indivíduo. A criança pequenina ainda não pode se confrontar com o mundo
exterior e compensa sua impotência real com uma onipotência imaginária: ela
nega sua separação da figura materna e sente-se unida ao mundo. Os objetos
externos, especialmente as pessoas, são percebidos apenas como extensões de si
mesmo, e as frustrações são negadas através de satisfações alucinatórias.
Segue-se a fase “edipiana”, em que a criança experimenta um mundo
exterior que se opõe aos seus desejos ilimitados (a formulação inicial de Freud
de um pai que impede o acesso do filho à mãe foi posteriormente reconhecida
como sendo apenas um caso particular, e ligado ao contexto da época, de uma
lógica psíquica bem mais vasta).
Esta renúncia à onipotência representa uma dura derrota para a criança,
mas abre a ela também o caminho para o reconhecimento da realidade exterior – o
“princípio de realidade” – e, assim, para a obtenção de satisfações limitadas,
mas reais. No entanto, esta renúncia aos desejos infantis também pode ser
sentida como insuportável – e, neste caso, o sujeito poderia limitar-se a um
reconhecimento mais ou menos fingido da realidade, para continuar, sem se dar
conta, a interpretar a realidade de acordo com sua anterior não-separação do
mundo e sua anterior onipotência. Assim, ele vê as pessoas e os objetos como
meras projeções de seu mundo interior. Em casos graves, esta atitude pode levar
a sérias dificuldades – mas, muitas vezes, ela não é identificada e pode até
trazer vantagens na vida social. Especialmente na vida contemporânea.
De fato, o “narcisismo secundário” – resultante da negação da situação
edipiana – encontra-se “em fase” com o capitalismo pós-moderno, neoliberal, tal
como a personalidade marcada pela neurose edipiana – objeto quase exclusivo da
investigação freudiana – era o correspondente psíquico da fase “clássica” do
capitalismo. A renúncia aos desejos ilimitados em troca da identificação com
uma figura de proteção e de autoridade permite um conhecimento realista de si
mesmo e de seus próprios limites, e, eventualmente, uma oposição ponderada ao
mundo tal como ele é. Mas ela também pode resultar numa submissão cega às
autoridades e ao ódio aos próprios desejos – e esta estrutura psíquica pode
durar a vida toda.
O capitalismo clássico, que nasceu com a “ética protestante”,
desenvolveu-se no século XIX e encontrou sua realização na fase chamada
“fordista”, exigia que os indivíduos trabalhassem duro, poupassem, desfrutassem
o menos possível e se submetessem durante toda a vida a figuras de autoridade:
pai, professor, policial, padre, patrão, funcionário público, presidente ou
rei. Esta injunção permanente criava com frequência escravos submissos ou mesmo
entusiastas (por exemplo, no nacionalismo), mas também podia estimular a
oposição e a revolta.
Mais ou menos a partir dos anos 1960, o capitalismo promoveu uma
profunda transformação que se acelera permanentemente. As estruturas baseadas
na submissão à autoridade, nas hierarquias piramidais, na repetição do mesmo e
na repressão dos desejos não desapareceram completamente – e até regressaram
recentemente – mas diminuem no “terceiro espírito do capitalismo”
(Boltanski/Chiapello).
Em seu lugar, celebramos a flexibilidade, as redes, o consumo
desenfreado (mesmo a crédito), a horizontalidade, a diferenciação dos estilos de
vida, a criatividade, a autonomia, o individualismo. Mesmo que a realidade
esteja muitas vezes longe destas promessas, é verdade que o indivíduo-tipo da
sociedade contemporânea não é “rígido”, não submete seus desejos a um supereu
que consiste em proibições interiorizadas, não “proíbe nada a si mesmo” e é
constantemente encorajado a “acreditar na realidade de seus desejos”.
Muitas vezes, as identidades já não se definem pelo trabalho, que pode
mudar facilmente, mas pelo consumo, seja ele material ou simbólico. Na
“sociedade líquida” (Bauman), o “homem sem gravidade” (Melman) que efetua um
“trabalho sem qualidade” (Sennett) flutua de acordo com os estímulos que lhe
desfere a máquina de consumo.
Caráter assertivo, convicções inabaláveis, lealdade às origens, à
família, ao trabalho, ao lugar, ao modo de vida, eram os traços que definiam
uma pessoa “sólida”, “séria”, “confiável” na fase anterior do capitalismo.
Hoje, são mais um obstáculo à “autorrealização” do indivíduo, impedindo-o de
aproveitar todas as “oportunidades” que a vida parece oferecer. O narcisista
enquadra-se perfeitamente a essa situação: sem personalidade profunda, sem
apegos, apenas à procura de um prazer imediato e empenhado na construção e
reconstrução permanente de sua “personalidade” de acordo com as exigências do
momento, ele não ama realmente nada, porque as pessoas e os objetos são
intercambiáveis a seus olhos.
É mérito do sociólogo estadunidense Christopher Lasch ter dado ao
conceito de narcisismo uma dimensão social, e não apenas individual, em seus
livros A cultura do narcisismo (1979) e Le moi
assiégé. Essai sur l’érosion de la personnalité (1984). Ele constata
uma regressão psíquica generalizada, em que o caráter “adulto”, nascido do
conflito edipiano, com seus trunfos e defeitos, dá lugar a comportamentos
marcados pelo desejo arcaico de negar magicamente a separação original. Ele
encontra esta forma de narcisismo em fenômenos tão diferentes como a gestão
completa da vida por organismos burocráticos e grandes corporações, o pseudomisticismo New
Age, a arte minimalista, o uso massivo de psicoterapias, a onipresença das
tecnologias na vida cotidiana e a clausura na esfera privada.
No entanto, embora Christopher Lasch tente compreender a relação entre a
difusão do narcisismo e o capitalismo, não o consegue totalmente. Para isso, é
preciso remeter à lógica do valor de mercado, do trabalho abstrato e do
dinheiro, que está no cerne do capitalismo, ontem como hoje. Esta lógica apaga
todas as diferenças, reduzindo cada mercadoria, independentemente de suas
qualidades concretas, à porção do trabalho que foi necessária para sua criação
e que está representada numa soma de dinheiro.
O mercado não vê qualquer diferença entre uma bomba e um brinquedo, nem
entre os trabalhos necessários para produzi-los. Esta indiferença em relação a
todos os conteúdos é uma diferença essencial entre o capitalismo e os sistemas
precedentes de exploração e opressão. Por muito tempo, o capitalismo lutou para
se libertar dos resquícios pré-capitalistas e atingir sua forma “pura”, onde os
sujeitos flutuam livremente, tendo as mercadorias – materiais e imateriais –
como único horizonte e guia. É aí que o narcisismo triunfa, oscilando entre a
angústia da impotência e a embriaguez da onipotência.
A lógica narcísica, tal como a lógica da mercadoria, reduz tudo à mesma
coisa e nega a autonomia dos objetos e das pessoas. Assim como as mercadorias
são meros “suportes” intercambiáveis de uma quantidade de trabalho e dinheiro,
para o sujeito narcísico, o mundo exterior a si próprio consiste apenas em
projeções e extensões de seu mundo interior – e este mundo interior é pobre,
pois não é enriquecido pelo contato com objetos e pessoas exteriores,
reconhecidos como tal.
No entanto, o narcisista não pode escapar ao sentimento de vazio e às
frustrações que o sonho impossível de onipotência lhe proporciona: é por isso
que o ressentimento, resultado inevitável do narcisismo, domina hoje o panorama
político sob a forma de racismo e populismo, nacionalismo e fundamentalismo
religioso, e ainda de outras formas de descarregar seu ódio sobre os
presumíveis responsáveis.
Assim, o narcisista é muito mais do que um tolo que sorri para si
próprio no espelho: é uma figura central de nosso tempo. E seria muito fácil
atribuir isso apenas aos ricos e poderosos, aos Macron e Musk: o desejo de nos
libertarmos de todos os limites que nos são impostos pela nossa condição
biológica, a ideia de termos de esgotar todas as “oportunidades” da vida, a
utilização das tecnologias para resolver o menor problema da vida são todos
formas de narcisismo. Há narcisistas por todo lado.
Fonte: A Terra é Redonda
Nenhum comentário:
Postar um comentário