quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Guardiãs da Biodiversidade: conhecimento ancestral e práticas sustentáveis

Mais de um terço das áreas de alta biodiversidade no mundo estão localizadas em territórios habitados por comunidades tradicionais. Na Amazônia, práticas ancestrais de manejo sustentável têm se mostrado tão eficazes quanto áreas protegidas formais na conservação de ecossistemas.

Essas populações, com suas práticas e profundo conhecimento sobre os recursos naturais, desempenham um papel crucial na preservação ambiental, mesmo sendo frequentemente negligenciadas nas políticas públicas.

Em um cenário onde as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade avançam em ritmo alarmante, reconhecer e incorporar as contribuições dessas comunidades é indispensável. Este tema torna-se ainda mais relevante diante do Acordo de Kunming-Montreal, que reforça a importância de soluções inclusivas baseadas no conhecimento local para preservar os ecossistemas e garantir um futuro sustentável.

Buscando entender o papel essencial das comunidades tradicionais indígenas e não indígenas na conservação da biodiversidade, realizamos uma análise sistemática da literatura científica, com a revisão de 519 artigos, entre 1994 e 2024. A análise deu origem ao artigo “The Importance of Traditional Communities in Biodiversity Conservation”, disponível na revista Biodiversity and Conservation.

Contribuições das comunidades tradicionais

Nos últimos anos, o interesse acadêmico pelas comunidades tradicionais cresceu exponencialmente. Em 2022, a produção científica sobre o tema atingiu seu pico, com o Brasil e a Índia liderando tanto em publicações quanto em estudos sobre as populações tradicionais.

Essas publicações demonstram que terras geridas por comunidades tradicionais apresentam níveis de biodiversidade comparáveis aos encontrados em áreas protegidas. As práticas sustentáveis, como o manejo florestal, a pesca responsável e o uso de plantas medicinais transmitidas entre gerações, bem como o desenvolvimento de estratégias de baixo impacto ambiental, como o ecoturismo de base comunitária e o extrativismo familiar, evidenciam a possibilidade de equilíbrio entre o uso humano e a conservação ambiental.

<><> Nosso estudo destacou cinco áreas principais em que as comunidades tradicionais contribuem para a conservação da biodiversidade:

1. Manejo agroflorestal: Sistemas agroflorestais que combinam árvores, cultivos agrícolas e vegetação nativa, promovendo a conservação do solo e aumento da biodiversidade. Ao mesmo tempo, práticas como a pesca sustentável garantem a renovação de estoques pesqueiros e o equilíbrio ecológico.

2. Tradições culturais e espirituais protegem florestas e espécies vulneráveis: Tabus, áreas sagradas e rituais espirituais protegem ecossistemas vulneráveis e espécies ameaçadas, reforçando a conexão humana com o meio ambiente.

3. Restauração de habitats: Técnicas como rotação de culturas e reflorestamento com o plantio de vegetação nativa, assim como as restrições temporárias de colheita e proteção de etapas vulneráveis de algumas plantas e animais, tanto terrestres quanto aquáticos, ajudam a recuperar áreas degradadas e a mitigar a perda de biodiversidade.

4. Monitoramento comunitário adapta práticas às mudanças ambientais: Observação e monitoramento local de mudanças ambientais permitem respostas rápidas e adaptativas para gerenciar os recursos. Essa abordagem pode aumentar a precisão dos dados coletados e fortalecer o engajamento comunitário na conservação.

5. Educação ambiental e integração de saberes: Transmissão de valores entre gerações e o desenvolvimento de programas híbridos que combinam conhecimentos tradicionais e científicos fortalecem práticas sustentáveis. Essas contribuições vão além da biodiversidade, são soluções práticas, adaptáveis e culturalmente relevantes para os desafios ambientais atuais.

<><> Desafios, injustiças e um chamado à ação

Apesar de suas contribuições, as comunidades tradicionais indígenas e não indígenas enfrentam sub-representação na ciência. Apenas 0,57% das publicações analisadas incluem autores dessas populações, expondo uma prática conhecida como “ciência ou pesquisa de paraquedas”, quando dados são coletados sem o envolvimento ou benefício justo para as comunidades locais.

O estudo destaca a urgência de mudar essa dinâmica, promovendo equidade, respeito aos direitos territoriais e a inclusão dessas comunidades como protagonistas na formulação de soluções ambientais.

Integrar o conhecimento tradicional às soluções científicas não é apenas eficiente, mas também é uma questão de justiça social. Essas comunidades mostram que é possível viver em harmonia com a natureza, oferecendo modelos concretos de gestão, sustentabilidade e conservação.

Agora é o momento de reconhecermos e valorizarmos esses guardiões da biodiversidade. Somente ao incorporarmos suas práticas e conhecimentos será possível enfrentar os desafios ambientais globais, promovendo um futuro sustentável onde justiça e conservação caminhem juntas.

<><> Autores

Everton SilvaDoutorando no Programa de Pós-Graduação em Ecologia, Universidade Federal do Pará (UFPA)

José Max B. Oliveira-JuniorProfessor Adjunto IV no Instituto de Ciências e Tecnologia das Águas (ICTA), Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA)

Leandro JuenProfessor Associado III de Ciências Biológicas, Universidade Federal do Pará (UFPA)

Mayerly Alexandra Guerrero MorenoDoutoranda em Sociedade, Natureza e Desenvolvimento, Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA)

 

¨      Proposta na Câmara quer transformar natureza em sujeito de direitos no Brasil. Por Tânia Passos

“Não há planeta B.” A frase dita pela deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG) retrata a preocupação urgente com a degradação do meio ambiente e justifica a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), de sua autoria, que pretende tornar a natureza sujeito de direitos fundamentais. A mudança significa imputar ao poder público o dever de defendê-la e preservá-la. A PEC dos Direitos da Natureza estabelece ainda a imposição de sanções penais e administrativas a quem agir contra os direitos a ela garantidos.

Com 40% assinaturas das 171 necessárias para que a PEC entre em tramitação, a deputada está otimista, mesmo diante de um Congresso com uma forte bancada ruralista. “Não existe vacina para as questões climáticas, isso está na mudança de consciência. […] O Congresso Nacional precisa tomar essa medida para não ser ‘futurocida’”, afirma.

A PEC conta com o apoio de organizações não governamentais como a Avaaz, comunidade internacional de mobilização social que tem como um de seus projetos a petição para reconhecimento do ecocídio. “O Brasil vive a oportunidade histórica de se posicionar como um verdadeiro líder climático. A aprovação desta PEC vai mostrar que estamos realmente comprometidos com o futuro das pessoas e do planeta”, enfatiza a coordenadora de campanhas da Avaaz Bia Calza.

A PEC dos Direitos da Natureza segue a tendência já adotada em países como Equador e Bolívia. Algumas cidades brasileiras já reconhecem a natureza como detentora de direitos, a exemplo de Bonito (MT) e Florianópolis. 

Segundo o procurador-geral da capital catarinense, Zany Leite Jr., 70% da ilha de Florianópolis está preservada. Em 2019, uma emenda na Lei Orgânica do município alterou a redação do art. 133, prevendo diversidade e harmonia com a natureza e proferindo a titularidade de direito.

“Eu vejo essa lei como importante no aspecto sociológico e ideológico para ilustrar a concepção antropocêntrica do direito, que é muito voltado para o homem, e passe a ter também uma visão biocêntrica ou ecocêntrica, mais voltado para a natureza”, afirmou o procurador. Segundo ele, desde que está à frente do órgão ainda não houve registro de punição a agressores do meio ambiente com base no dispositivo.

·        Dificuldades de aprovação desde a origem

Mesmo com apoio, a PEC dos Direitos da Natureza deve enfrentar dificuldades no Congresso. “A PEC pode zerar as legislações vigentes, considerando que cria uma nova prioridade, por isso acho muito difícil ela ser aprovada da forma que está, embora esteja bem fundamentada”, opina a advogada Paolla Alves, do escritório João Domingos Advogados, que representa clientes ligados ao agronegócio.

Para o advogado constitucionalista e cientista político Pedro Chaves Beff, do escritório Chaves e Azevedo, a PEC vem em um momento de discussão internacional muito forte sobre a pauta do clima. No entanto, há pelo menos dois elementos a considerar.

“Há a dimensão jurídica propriamente dita, a partir das prerrogativas próprias do procedimento legislativo para aprovação, mas existem também as barreiras políticas. Como a gente tem uma Câmara e um Senado com uma bancada ruralista, representativa do agronegócio muito forte, eu vejo que politicamente é difícil de passar”, avalia.

·        União e urgência

A deputada Célia Xakriabá entende que o desafio de fazer a PEC passar está pautado na importância do debate. “Ter uma legislação ambiental na Constituição Federal dá um respaldo diferenciado. […] A questão é por que as pessoas ficaram tão distantes da terra e das questões ambientais? Parece que meio ambiente é só árvore. Na verdade, a questão ambiental somos nós”, declarou, lembrando que a proposta reforça a luta ativa contra as mudanças climáticas no Brasil, no ano em que o país presidiu o G20, e vem no contexto da proposta de criação do Conselho de Mudança do Clima nas Nações Unidas e às vésperas da COP30, em 2025.

Xakriabá é uma das quatro mulheres indígenas eleitas para a Câmara dos Deputados. Ela é mestra em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília (UnB), doutoranda em antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e uma das fundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade. A deputada destaca o papel de povos originários na proteção de 83% da biodiversidade.

“Povos indígenas representam 20% da solução para barrar a crise climática, e povos com comunidades tradicionais, a exemplo da comunidade quilombola, representam 30%. […] Então reconhecer esses elementos como sujeitos de direito é reconhecer a continuidade de um planeta”, ressaltou.

 

Fonte: The Conversation Brasil/Agencia Pública

 

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