O Brasil
"passou no teste" após os atos golpistas de 2023?
As instituições brasileiras
foram colocadas diante de uma prova de fogo inédita com os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, que depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília. Muitos se
questionaram: elas iriam sucumbir à pressão, negociar uma pacificação via
anistia ou processar e punir os responsáveis?
Dois anos após as imagens de
bolsonaristas quebrando vidraças correrem o mundo, a resposta do
Judiciário aponta para o terceiro caminho. Isso começou a ficar claro com o
destino da massa de radicais que invadiu os palácios: das 1.552 pessoas
denunciadas, 58% já foram responsabilizadas – 371 receberam condenações de até
17 anos de prisão e outras 527 confessaram os crimes e assinaram acordos com o
Ministério Público.
A grande novidade dos
últimos meses, porém, é que o alto escalão parece não estar a salvo das
investigações. Em novembro, a Polícia Federal (PF) concluiu que os atos
golpistas seriam parte de um plano mais amplo para derrubar o então
recém-empossado governo de Luiz Inácio
Lula da Silva e trazer Jair Bolsonaro de volta
ao poder. O inquérito indiciou
Bolsonaro, ex-ministros do seu governo e o presidente do PL, seu partido, por
crimes graves contra o Estado de Direito.
E pela primeira vez na
história do país, um general quatro estrelas da reserva foi preso preventivamente em
dezembro – Walter Braga Netto, candidato a vice de Bolsonaro em 2022. A PF
afirma ter provas de que sua casa sediou uma reunião para discutir um plano
para matar Lula, seu vice, Geraldo Alckmin, e o ministro do Supremo Tribunal
Federal (STF) Alexandre de Moraes.
Ainda há um caminho à frente
para avaliar as acusações. A Procuradoria-Geral da República precisa decidir se
denuncia os indiciados, que então seriam julgados pelo STF. Mas a divulgação do
inquérito já teve outro efeito: esfriar o debate no Congresso sobre uma
possível anistia aos condenados por atos golpistas, e afastar ainda mais a
chance de Bolsonaro, declarado inelegível até 2030, reverter a decisão e
concorrer em 2026.
Bolsonaro nega que tenha
tentado um golpe e afirma estar sendo perseguido por Moraes, e a defesa de
Braga Netto diz que ele "não tomou conhecimento de documento que tratou de
suposto golpe e muito menos do planejamento de assassinato de alguém". Os
demais indiciados também negam ter participado de atividades criminosas.
·
Virada histórica na relação com militares?
Braga Netto não foi o
único militar de alta patente entre as 36 pessoas indicadas pela PF.
Também figuram na lista o
general da reserva Augusto Heleno, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança
Institucional, que seria responsável pelo suposto núcleo de inteligência do
plano golpista; o general da reserva Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da
Defesa e ex-comandante do Exército, que teria atuado para disseminar a versão de
que a eleição de 2022 fora fraudada; e o almirante da reserva Almir
Garnier Santos, ex-comandante da Marinha, que teria colocado suas tropas à
disposição para um eventual golpe, segundo o inquérito.
O indiciamento desses
militares e a prisão preventiva de Braga Netto, autorizada por Moraes, sugerem
que o sistema de Justiça não está com pudores de avançar contra a caserna,
avalia para a DW o cientista político Pedro Lima, professor da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos coordenadores do Núcleo de Estudos
sobre a Democracia Brasileira (Nudeb).
"Há um simbolismo muito
grande em ter um general preso, mais de 40 anos depois de o Brasil ter feito
uma transição [da ditadura para a democracia] pelo alto, com garantias aos que
cometeram crimes", afirma. "E também tem peso político a extrema
direita e o próprio Bolsonaro se verem às voltas com a Justiça. Pode ser um
momento de virada de como tratamos os militares, do ponto de vista
institucional e também cultural."
Heloísa Fernandes Câmara,
professora de teoria do Estado do curso de Direito da Universidade Federal do
Paraná (UFPR) e pesquisadora do Centro de Estudos da Constituição, tem
avaliação semelhante: "Isso não tem precedentes e
representa o começo de uma responsabilização mais ampla – de fato chegar a quem
estava coordenando os atos, e não só a quem foi para as ruas."
Ela avalia que a maneira
como o Judiciário está tratando os atos golpistas pode deixar uma lição ao
país: "Não utilizar anistia como mecanismo de uma falsa pacificação".
Em retrospecto, ela considera que a falta de responsabilização de agentes da
ditadura deixa sequelas até hoje na democracia, como a militarização da segurança pública.
·
Ruptura de paradigma
Mas a resposta do Judiciário
não representa todo o aparato institucional brasileiro, pontua Rubens Glezer,
professor da FGV Direito SP e coordenador do grupo de pesquisa Supremo em
Pauta. Líderes importantes do Congresso se movimentaram para
debater uma anistia aos golpistas, e mesmo
o ministro da Defesa, José Múcio, defendeu o perdão aos "casos leves"
do 8 de janeiro de 2023.
"Naquela linha do
'deixa disso, aconteceu, deixa os velhinhos voltarem para casa, deixa o
Exército ver quem ele quer punir'", afirma. "Isso só não ocorreu por
conta do Supremo, e o ator-chave foi Alexandre de Mores. Ele não está operando
na tradição da conciliação política, e a prisão do Braga Netto foi o epítome
disso."
Glezer avalia que a
responsabilização dos golpistas e a prisão de um general quatro estrelas da
reserva representa uma ruptura de paradigma tão grande como havia sido a Lava
Jato, mas "com outra qualidade, outro peso institucional e outro tipo de
prova".
Contudo, ele recomenda que o
STF adote uma postura de maior comedimento em relação a decisões de alto
impacto na sociedade que tensionem o equilíbrio entre os três poderes. Além das
ações sobre os atos golpistas, ele menciona as decisões recentes do ministro
Flávio Dino que alteram o regime de pagamento de emendas parlamentares.
"Isso acaba tendo um
custo para a própria corte", diz, ponderando que há dois tipos de crítica
ao tribunal: uma que busca aprimorá-lo para que ele se atenha ao seu mandato
constitucional e eleve sua transparência, e outra que no fundo gostaria de
extinguir a independência da instituição.
Não foi só o Supremo que
tomou a dianteira. Heloísa Câmara, da UFPR, cita o exemplo dos Estados Unidos,
que reelegeu Donald
Trump apesar da invasão do Capitólio por seus
apoiadores em janeiro de 2021, para reforçar a relevância da Justiça Eleitoral
– que tem um rito processual mais célere do que a Justiça Comum e declarou
Bolsonaro inelegível até 2030 por abuso de poder político e uso indevido
dos meios de comunicação durante uma reunião convocada por ele com embaixadores no Palácio da Alvorada para atacar as urnas eletrônicas.
·
Como fica a direita extremista
Um ponto de interrogação é o
que acontecerá com Bolsonaro. Qual será sua relevância para a direita
brasileira? Ele será responsabilizado pelos atos golpistas? Mesmo que o
ex-presidente seja condenado, a análise da conveniência de sua prisão é
complexa, afirma Lima, da UFRJ.
"A prisão de um líder
político envolve um cálculo político, não é só uma questão de rigor jurídico. E
tenho impressão que as instituições e o STF vão pensar se vale a pena",
afirma. "Do ponto de vista institucional e político, você não quer
transformar Bolsonaro num mártir. Sob o ponto de vista da salvaguarda da
democracia e do isolamento dos operadores da extrema direita, talvez seja
interessante mantê-lo inelegível, mas não necessariamente prendê-lo."
Outro aspecto do 8 de
Janeiro foi acentuar uma divisão do campo da direita que já vinha ocorrendo
durante o governo Bolsonaro, abrindo espaço para a "direita mais
democrática" se divorciar da "direita extremada e autoritária",
avalia Glezer, da FGV.
O que ficou claro após essa
decantação foi que um percentual relevante do eleitorado segue radicalizado. E,
como ocorreu em algumas cidades brasileiras na eleição passada, é possível que a direita se divida em dois candidatos ao Planalto em
2028, um extremista e outro mais tradicional.
·
Como a população avalia os atos golpistas
Duas pesquisas de opinião
divulgadas nesta segunda-feira (06/01) abordam a percepção dos brasileiros
sobre os atos golpistas.
A maioria desaprova a
invasão das sedes dos Três Poderes e é contra uma anistia aos que cometeram
crimes no 8 de Janeiro. Mas cerca de um terço da população defende o perdão
judicial a essas pessoas, e há uma clara divisão sobre a avaliação do papel de
Bolsonaro nos atos.
O levantamento da Genial/Quaest
aponta que, entre os eleitores de Bolsonaro na última eleição, 55% não acham
que ele teve algum tipo de influência sobre os atos golpistas em Brasília.
Percentual relevante, mas bem menor do que em dezembro de 2023, quando a fatia
representava 81% do seu eleitorado. Entre a população em geral, 50% consideram
que Bolsonaro teve algum tipo de influência sobre os atos, e 39% avaliam que
não.
Quando questionados se
aprovam ou desaprovam as invasões das sedes dos três poderes, 86% desaprovam –
queda de três pontos percentuais em relação a dezembro de 2023 e de oito pontos
percentuais sobre fevereiro de 2023. Outros 7% dos brasileiros aprovam as
invasões, alta de um ponto percentual em relação a dezembro de 2023 e de três
pontos sobre fevereiro de 2023.
Outra pesquisa, do
Datafolha, aponta percentuais semelhantes sobre o envolvimento de Bolsonaro nos
atos: a maioria dos brasileiros (52%) considera que Bolsonaro tentou se manter
na Presidência por meio de um golpe, três pontos a menos do que em março de
2024. Já outros 39% avaliam que Bolsonaro não tentou se manter no poder dessa
forma.
Entre os que avaliam que
Bolsonaro não tentou se manter no poder por meio de um golpe, os percentuais
mais altos estão entre os mais instruídos (47%), com renda familiar mensal
acima de 5 salários mínimos (49%), moradores da região Sul (50%), evangélicos
(52%) e eleitores de Bolsonaro em 2022 (73%).
Questionados sobre uma
eventual anistia aos envolvidos nos ataques na Praça dos Três Poderes, 62% dos
brasileiros são contrários e 33%, a favor, segundo o Datafolha. Entre os que
são contra a anistia, destacam-se os eleitores de Lula em 2022, com 72%. Entre
os eleitores de Bolsonaro, 45% defendem a anistia.
·
"Abraço" em volta da Praça dos Três
Poderes
Nesta quarta-feira haverá um
ato na Praça dos Três Poderes, com a presença de Lula e de representantes do
Legislativo e do Judiciário, para marcar os dois anos da depredação de suas
sedes. Os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica também
devem ir, mas o presidente da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo
Pacheco, não confirmaram presença.
Na ocasião serão
recolocadas em seus locais obras de arte danificadas durante a invasão e haverá
um abraço simbólico ao redor da praça, organizado por movimentos sociais.
¨ "A democracia
amadureceu", avalia Barroso após dois anos dos ataques de 8 de janeiro
Dois anos após
os ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023, os ministros Luís Roberto
Barroso, Edson Fachin e Rosa Weber - aposentada - ressaltaram, em declarações
ao jornal O Globo, a resistência e o fortalecimento da
democracia brasileira frente às tentativas golpistas. Os ataques, que atingiram
gravemente as sedes dos Três Poderes em Brasília, foram definidos pelos
magistrados como um marco de amadurecimento das instituições democráticas do
país, mas também como um alerta sobre os perigos do extremismo.
O trio
reforçou a importância da responsabilização dos autores e articuladores dos
atos golpistas, com o objetivo de evitar que eventos semelhantes voltem a
ameaçar a democracia no Brasil. O Supremo Tribunal Federal (STF), alvo mais
afetado pelas depredações, se prepara para receber ainda neste ano denúncias da
Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Jair Bolsonaro (PL) e outros
envolvidos no planejamento dos ataques.
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Barroso: "a democracia amadureceu"
O atual
presidente do STF, Luís Roberto Barroso, enfatizou que os atos de vandalismo
representaram o ápice de uma campanha de descrédito contra as instituições e o
sistema eleitoral brasileiro. Para ele, a resposta dada pelo Judiciário foi
essencial para demonstrar a força do Estado Democrático de Direito.
"A
democracia amadureceu após ser atacada por uma campanha de descrédito
permanente das instituições e acusações falsas de fraudes nas eleições. Isso
tudo culminou com o ataque truculento e antidemocrático às sedes dos Três
Poderes há exatos dois anos", afirmou Barroso.
Desde os
ataques, o STF instaurou 908 investigações, das quais 485 ainda estão em
tramitação. Barroso destacou que "a Justiça é um valor que transcende
prédios" e que o simbolismo da resistência institucional foi crucial para
manter a confiança na democracia.
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Fachin: "cicatriz histórica que não deve ser esquecida"
Edson Fachin,
vice-presidente do STF e futuro presidente da Corte, descreveu os ataques como
uma "grave ausência de sentido de República". Segundo ele, a democracia
brasileira, consolidada ao longo de três décadas da Constituição de 1988,
mostrou-se robusta ao derrotar a "agenda autoritária" por trás dos
atos violentos.
"Há dois
anos vivemos uma situação grave de ausência total de sentido de República, de limites
na legalidade constitucional e de freios inibitórios, em desrespeito à coisa
pública, às instituições e à própria democracia. A democracia brasileira se
mostrou robusta após mais de três décadas de vigência da Constituição Federal,
derrotando naquele momento uma agenda autoritária que transformou o dissenso e
as frustrações em violência", alertou Fachin.
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Rosa Weber: "dia da infâmia"
Rosa Weber,
que presidia o STF no momento dos ataques, relembrou o esforço de reconstrução
do tribunal após os atos de destruição e classificou o episódio como "dia
da infâmia". Para ela, a data deve ser permanentemente lembrada como um
alerta à sociedade.
"Dois
anos depois, relembrar o 8 de janeiro é importante para que nenhum de nós
esqueça o que aconteceu no Brasil. A destruição do patrimônio público foi
lamentável, mas o verdadeiro objetivo, todos sabemos, era ferir de morte a
democracia", declarou Rosa Weber.
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Debate sobre anistia e números das condenações
Até o momento,
371 pessoas foram condenadas pelos ataques de 8 de janeiro, enquanto 527
firmaram acordos de não persecução penal, que preveem medidas alternativas à
prisão. Cinco pessoas foram absolvidas. Paralelamente, o Congresso discute a
possibilidade de anistia aos envolvidos, tema que divide opiniões dentro e fora
das instituições.
Para os
ministros do STF, a punição dos envolvidos é imprescindível para assegurar a
continuidade do Estado Democrático de Direito e impedir novos atos de violência
política. Como destacou Rosa Weber, "a responsabilização de todos os
envolvidos se impõe para que nunca mais se repita ataque dessa natureza! O 8 de
janeiro há de servir como sinal de alerta para que cultivemos diuturnamente
nossa democracia constitucional, assegurando a continuidade do nosso Estado
Democrático de Direito".
Fonte: DW
Brasil/Brasil 247
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