Por que personagens
da cultura de massa são apropriados por movimentos políticos?
Em novembro do ano
passado, um homem usando vestes semelhantes ao do personagem Coringa morreu ao
explodir fogos de artifício na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Por que
movimentos políticos lançam mão de símbolos da ficção em sua empreitada?
O salto da ficção
para a realidade às vezes é menor do que parece. O Brasil, por exemplo, viveu
recentemente sua febre quando a ficção se encontrou com movimentos políticos.
Nas jornadas de junho de 2013, as máscaras de Guy Fawkes, personagem do
filme e dos quadrinhos V de Vingança, inundaram as ruas da avenida
Paulista, em São Paulo.
Embora possa ser
classificado como um movimento heterogêneo e complexo, os protestos daquele ano
marcaram contrariedades ao Partido
dos Trabalhadores (PT), que estava à frente do poder no Brasil há cerca de 11
anos.
Se vertemos o olhar
para nossos vizinhos ao sul, também encontraremos histórias onde personagens da
cultura popular foram incorporados por movimentos políticos. Famosa na
Argentina, a história em quadrinhos do Eternauta virou símbolo da
esquerda do país, apropriada mais precisamente pelo kirchnerismo, na
figura do ex-presidente Néstor Kirchner.
De volta ao Brasil,
outro personagem das páginas e das telas esteve aludido em manifestações
políticas. Francisco Wanderley Luiz, que morreu ao se explodir em Brasília, na
Praça dos Três Poderes, usava uma roupa que remetia ao personagem Coringa. Em
suas redes sociais, o homem publicava posts contra a Suprema Corte brasileira e
contra o atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
·
A
vida imita a arte?
De acordo com o
cartunista Carlos Latuff, esses encontros acontecem pelo fato de "as
obras fictícias não serem tão fictícias". Latuff, que se define como um
cartunista político, está, sim, acostumado a ver suas obras presentes em
manifestações de cunho político mundo afora.
Nesse sentido, Alexandre
Linck, professor doutor e pesquisador de quadrinhos, criador do canal
Quadrinhos na Sarjeta, salienta que as obras ficcionais denotam uma pluralidade
de sentidos, permitindo que sejam interpretadas de inúmeras formas.
"As obras
estão no mundo, elas não existem isoladas", diz, ressaltando que como a
arte não está isolada da sociedade, é inevitável que se misture com uma série
de movimentos.
Há ficções
que estão diretamente
inspiradas em determinados aspectos da sociedade, desafiando valores culturais
preestabelecidos.
"Posso citar
romances que viraram filmes e seriados como '1984', de George Orwell, e 'O
Conto da Aia', de Margaret Atwood, que exploram regimes totalitários, expondo
de maneira crua a opressão aos grupos minoritários, provocando reflexões sobre
temas como a liberdade e os direitos humanos", relembra Luciene Carris,
doutora em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
cofundadora do Box Digital de Humanidades e do Sarau da Casa Azul Podcast.
Além das obras
citadas, Carris destaca alguns seriados, produtos com apelo, sobretudo entre os
mais jovens, que abordam temáticas políticas. "No
streaming destaco
The Boys, The Umbrella Academy, House of Cards, Watchmen, O poder, Black
Mirror", elenca.
"Black Mirror
explora os impactos éticos e sociais das tecnologias nas nossas vidas, algo que
não podemos mudar ou viver sem hoje em dia, se pensarmos na inteligência
artificial. Essas produções conseguem abordar uma pluralidade de temas
contemporâneos como igualdade, gênero, tecnologias e crítica social, entre
outros aspectos do mundo em que vivemos", descreve a pesquisadora.
·
Ordem
não é dada, mas disputada
Linck ressalta que
há uma disputa de sentidos colocada, inerente à história, e que não é diferente
com o mercado do entretenimento.
"O Tintim, por
exemplo, que gerou polêmica recentemente, volta e meia gera polêmica de novo:
mangás, animes, enfim, tudo isso está sempre em disputa", recorda.
O personagem
Tintim, máxima do quadrinista belga Hergé, chegou a ser usado recentemente
como símbolo da resistência ao terrorismo e à intolerância após os
atentados de Bruxelas, em 2016, que deixaram mais de 30 mortos.
No entanto, obras
do autor já retrataram o personagem em contextos anticomunistas e até
mesmo racistas —
como na história "Tintim no Congo".
Latuff, por sua
vez, caracteriza que há projetos, como os filmes hollywoodianos, com
a capacidade de introduzir ideologia disfarçada de entretenimento.
"A velha
lógica do corações e mentes. Essa é a essência do soft power", destaca.
Em relação aos
filmes e aos quadrinhos, Linck afirma que há entre essas duas modalidades um
campo em disputa, possível de ser percebido entre os mesmos personagens, mas
representados em diferentes perspectivas.
"O V de
Vingança, que foi muito apropriado principalmente por movimentos, começou sendo
uma coisa mais de esquerda e depois foi para a direita, principalmente essa
nova direita. Isso é muito em função do filme, de uma certa ideia de massa, de
fazer valer vontade à força por meio de um grupo, às vezes falsamente
orgânico", explica.
Já o Coringa, que
representa uma ideia de "antissistema", uma
expressão "da nova direita bolsonarista", conforme retoma
Latuff, já foi símbolo na periferia, desde sentidos atribuídos à violência
quanto à figura de rebeldia e de contestação do Estado.
O Eternauta,
símbolo da esquerda argentina, até o momento permanece com sua representação do
lado progressista. Entretanto, com uma série a ser lançada por uma famosa
plataforma de streaming, Linck afirma que não estranharia se a "direita
se apropriar do personagem por algum motivo".
"Pela noção de
fim do mundo ou […] porque o Eternauta tem uma coisa meio self-made man. Assim,
diante do problema, ele vai lá e tenta resolver. Não duvidaria que o Eternauta
pendulasse em termos políticos dentro do imaginário público", explica.
¨ Pelo bem público,
Brasil é pioneiro na quebra de patentes de remédios; confira casos históricos
O Brasil é um dos
pioneiros globais na quebra de patentes farmacêuticas em prol do bem público.
Confira abaixo alguns dos medicamentos e das vacinas que tiveram suas licenças
concedidas ao Estado nos últimos 30 anos.
O Brasil fez
história mundial e incomodou muita gente ao quebrar as patentes dos
medicamentos retrovirais usados no combate à AIDS, propriedades da farmacêutica
Merck.
A medida — na época
celebrada por países do Sul Global e malvista por países do Norte e, até mesmo,
por alguns comentaristas brasileiros — se deu na legalidade, tanto dentro da
lei brasileira quanto fundamentada nas diretrizes da Organização Mundial do
Comércio (OMC).
No país, as
patentes de medicamentos e outras invenções são outorgadas pelo Instituto
Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e regulamentadas pela Lei nº
9.279/1996, estabelecida há quase 30 anos.
No caso dos
fármacos, os produtos ainda devem passar por aprovação paralela da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que verifica a segurança e
efetividade médica das substâncias e libera a venda no Brasil.
Segundo a
legislação brasileira, as empresas possuem um período de 20 anos no qual podem
monopolizar a comercialização dos medicamentos desenvolvidos.
Contudo, dada a
emergência nacional ou o interesse público pelo medicamento, o artigo 71
permite suspender esse direito e o licenciamento compulsório do produto,
manobra popularmente conhecida como "quebra de patente".
A medida, no
entanto, só pode ser tomada quando a fabricante não conseguir satisfazer a
demanda do mercado ou a prática de preços abusivos, dificultando sua obtenção.
Dessa forma, o
governo federal permite a produção temporária de alternativas genéricas locais,
barateando os custos de produção e disponibilizando
o medicamento em maior número para a população.
>>>> Confira
abaixo os principais casos de patentes quebradas no Brasil.
<><> AIDS
O primeiro e mais
célebre caso de licenciamento compulsório no Brasil foi o Efavirenz, antiviral
para o tratamento da AIDS. Desde meados dos anos 1990, o Brasil incluiu o
tratamento gratuito da AIDS no Sistema Único de Saúde (SUS).
Do coquetel de
medicamentos utilizados, quatro eram responsáveis por 50% dos gastos
públicos. Só o Efavirenz representava 11% de todos os gastos do Ministério
da Saúde com medicamentos antirretrovirais.
Na época, o governo
brasileiro tentou negociações com a Merck para abaixar o custo do medicamento.
Com cada comprimido de 600 mg sendo vendido a US$ 1,59 na época (R$ 9,75 hoje),
o governo pedia o valor de US$ 0,65 (R$ 3,98 na conversão atual), preço
praticado na Tailândia.
A companhia,
irredutível em uma redução máxima a até US$ 1,11 (atualmente R$ 6,80), teve sua
patente quebrada em 2007 por meio do Decreto nº 6.108/2007. O primeiro lote
ficou pronto em 2009 a um custo de R$ 1,35 por comprimido. Nesses dois anos de
intervalo, versões
genéricas da Índia foram importadas ao custo de US$ 0,42 (hoje R$ 2,57)
por comprimido.
<><> Hepatite
C
Outro remédio
revolucionário que teve sua patente aberta foi o Sofosbuvir, que cura a
hepatite C em 95% dos casos. O caso foi a segunda vez que o Brasil aplicou o
licenciamento compulsório.
Lançada em 2014
pela Gilead, o tratamento com o medicamento chegava a custar R$ 35
mil por paciente. Já em um levantamento da Universidade de São Paulo (USP),
entre 2015 e 2019, o preço médio cobrado pela Gilead foi de R$ 986,57 por
comprimido.
Em 2018, uma
decisão da Justiça Federal do Distrito Federal anulou a patente do medicamento,
possibilitando o barateamento da droga a partir de uma concorrência com o
Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), da Fiocruz. Nessa
época, o preço praticado pela Gilead chegou a ser R$ 64,84 por comprimido.
Em 2019, contudo, o
monopólio retornou para a Gilead.
<><> Doenças
autoimunes
No ano passado, o
Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região decidiu que a patente
do Stelara, nome comercial da Ustequinumabe, expirou em 2021.
Usado para tratar
uma série de doenças autoimunes como doença de Crohn, psoríase, artrite
psoriásica e colite ulcerativa, o medicamento teve sua patente estendida por
três anos pela via judicial a pedido da Johnson & Johnson.
A patente do
Stelara estava prevista para vencer apenas em 2027. No entanto, em 2021, o
Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a extensão de
patentes para além de 20 anos desde a data de registro. Antes disso, as
empresas aproveitavam o atraso do INPI em conceder o registro para estender o
período de monopólio nas vendas dentro do país.
Estima-se que o
Ministério da Saúde economize R$ 130 milhões na compra de cada
lote do medicamento, barateando e facilitando o acesso ao público.
<><> Soliris:
o mais caro do mundo
Em 2018, a 3ª Turma
do Superior Tribunal de Justiça (STJ) quebrou a patente do Soliris, nome
comercial do Eculizumabe, também conhecido informalmente como o remédio mais
caro do mundo. Cada unidade custava aos cofres públicos R$ 21,7 mil.
Utilizado para
tratar hemoglobinúria paroxística noturna (HPN), doença rara que atinge
entre uma e duas a cada um milhão de pessoas. A doença destrói as hemácias do
sangue, deixando o paciente anêmico, com cansaço, falta de ar, dores crônicas e
sangue na urina.
O Soliris,
desenvolvido pela Alexion, é o único remédio contra a HPN, não sendo
disponibilizado em farmácias, apenas pelo SUS. Como cada paciente necessita de
seis frascos ao mês para evitar os sintomas, em 2017 os 400 pacientes
diagnosticados com a doença incorreram um gasto de R$ 644,4 milhões ao SUS.
Com a decisão do
STJ, torna-se mais acessível a produção de genéricos do medicamento. Em
2022, a Anvisa estabeleceu o preço máximo de R$ 11.942,60 para
as vendas ao governo federal, conforme os menores preços praticados
internacionalmente.
Tensões
geopolíticas ameaçam aumentar em até 20% os custos dos produtos básicos em 2025
O preço dos
produtos básicos para o lar, eletrônicos, máquinas, produtos químicos e
derivados do petróleo pode aumentar em 2025 devido à instabilidade global e
ameaças de Donald Trump de impor tarifas a parceiros comerciais, alertou o
Chartered Institute of Procurement and Supply (CIPS), que representa mais de 60
mil empresas de 150 países.
"Comprar e
fornecer itens, incluindo alimentos e bebidas, pode custar às empresas até uma
quinta parte a mais este ano, o que será repassado aos consumidores",
disse o CIPS,
O preço dos
produtos básicos para o lar pode subir até 20% em 2025, enquanto o custo de
eletrônicos, máquinas, produtos químicos e derivados do petróleo também pode
aumentar entre 5% e 20% nos próximos meses.
"O que está
claro em nossa pesquisa é que existem uma série de desafios estratégicos que
provavelmente interromperão o fluxo contínuo de bens e serviços", disse o
CEO do CIPS, Ben Farrell. "Esses desafios representarão problemas
particulares para os consumidores, que provavelmente serão afetados de forma
desproporcional, a menos que essas questões sejam tratadas de forma
eficaz", acrescentou.
Por exemplo, desde
o outono de 2023, muitos navios que navegavam
pelo mar Vermelho mudaram
de rota por receio de ataques do movimento iemenita mais conhecido como
hutíes.
Eles vêm realizando
ataques repetidos com mísseis e drones contra dezenas de navios
mercantes que tentavam atravessar essa rota, paralisando o transporte
marítimo mundial e provocando o aumento dos custos. Os líderes do movimento
confirmaram que continuarão os ataques até que Israel cesse suas operações
militares na Faixa
de Gaza.
A isso se somam as
ameaças do presidente
eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, que em novembro advertiu que imporia
tarifas sobre os bens que entrassem no país norte-americano após o dia 20
de janeiro, quando ele retornasse à Casa Branca.
De acordo com o
jornal britânico The Guardian, as ameaças do republicano levaram diversas
empresas a antecipar
o envio de contêineres de mercadorias para evitar os aumentos. No entanto,
especialistas consultados pelo veículo explicaram que as medidas preventivas,
como o armazenamento, vão adiar temporariamente o impacto do aumento
dos preços.
Enquanto isso,
qualquer novo imposto poderia elevar os custos, perturbar os fluxos
comerciais e provocar retaliações contra as exportações americanas, acrescentou
o jornal britânico.
"O impacto das
tarifas americanas nos fluxos comerciais, que levam a uma maior tensão
política, a guerra global por talentos, esses e outros temas exigirão uma
gestão habilidosa se quisermos manter o crescimento e a confiança dos
consumidores nos principais mercados", disse Farrell.
Fonte: Sputnik
Brasil
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