Guilherme Cortez:
Encantar, enquanto ainda há tempo
O ano de 2024 vai
chegando ao fim sob um clima de apreensão e desesperança. Enquanto o planeta se
aproxima da data-limite apontada pela ciência para uma guinada nas emissões de
gases de efeito estufa a tempo de evitar um colapso ambiental que inviabilize a
vida como a conhecemos, por todo o mundo a extrema direita mantém sua dinâmica
de crescimento, tendo levado a melhor na mais importante disputa de um ano em
que quase metade da população global foi às urnas: as eleições americanas.
Tamanha desilusão
não é sem motivo, afinal, no começo do ano, o ponteiro do Relógio do Juízo
Final estava a apenas 90 segundos do limite – a menor distância registrada na
história. Na esteira da guerra da Ucrânia e do genocídio do povo palestino, das
tensões crescentes entre os Estados Unidos e a China e da emergência climática,
o gasto militar global atingiu o maior nível desde a Segunda Guerra Mundial.
Há décadas, a
ciência alerta a humanidade sobre os riscos de colapso dos limites planetários
associado ao aquecimento global e que, para evita-lo, seria necessário um
grande esforço consciente, coletivo e racional de toda a humanidade, que
deixasse de lado as desigualdades entre nós em prol de um objetivo comum – a
sobrevivência da espécie humana e a manutenção do equilíbrio ambiental. Afinal,
a atmosfera não reconhece as fronteiras imaginárias criadas por nós. O efeito
estufa não se importa se os gases que o intensificam são oriundos do Canadá ou
da África do Sul, do desmatamento na floresta Amazônica ou da queima de carvão
na China, do fracking americano ou de alguma petrolífera dinamarquesa
no sudeste asiático.
Esforço esse que
não poderia parecer mais remoto. Na contramão das recomendações científicas, a
humanidade parece caminhar exatamente na direção contrária de uma articulação
global, responsável e solidária para fazer frente às mudanças climáticas. Por
todo o mundo, a extrema direita se fortalece com um discurso negacionista,
divisionista e individualista, esvaziando organismos de cooperação
multilateral, enquanto a esquerda e os verdes perdem terreno.
<><> Eleições
No Brasil, as
eleições municipais mostraram uma esquerda que não conseguiu ganhar terreno
após a volta ao governo federal, um centrão turbinado pelo dinheiro público
drenado através de emendas parlamentares e uma extrema direita dinâmica dois
anos depois da derrota de 2022, capaz de produzir novos quadros em velocidade
muito superior às forças progressistas. Nos Estados Unidos, a vitória acachapante
de Trump contra o governo federal, e apesar da sua amplamente reconhecida lista
de crimes, mostrou que o neofascismo não é um fenômeno passageiro nem acidental
e que a defesa da democracia em abstrato não é mais capaz de barrar os seus
inimigos. O respiro do ano ficou a cargo do México, com a vitória da Claudia
Sheinbaum, dando continuidade
ao projeto do
Movimento Regeneração Nacional (MORENA), e da França, onde a esquerda unificada
e com um programa popular conseguiu impedir uma vitória da extrema direita,
apesar do golpe de Macron para burlar
o resultado das urnas.
O mundo nunca
esteve tão perto do abismo e caminhando tão rápido em sua direção. As vozes que
se opõem a esse rumo suicida encontram muitas dificuldades para avançar. Em São
Paulo, um prefeito inexpressivo conseguiu levar a melhor sobre um dos melhores
nomes da esquerda surgidos nesse século, enquanto os porto-alegrenses
reelegeram com folga o prefeito que deixou
a cidade submersa.
Greta Thunberg e a greves globais pelo clima têm hoje apenas uma fração da
audiência de anos atrás. É compreensível, portanto, o desencanto generalizado
com qualquer perspectiva otimista de futuro.
Então, o que fazer?
Algumas pessoas sucumbem ao adoecimento mental. Outras optam pela alienação.
Aquelas que decidiram dedicar alguma parte do seu tempo a mudar a realidade ao
seu redor o fazem com cada vez menos convicção.
<><> Transformar
o presente para disputar o futuro
Aprisionada em uma
maré reacionária e refém de uma política defensiva há anos, a esquerda tem
falhado em apresentar um projeto motivador de futuro. Diante de um mundo em
crise, a extrema direita tem sido a força política mais convincente ao
apresentar alternativas – por mais ineficientes, imorais e mentirosas que elas
sejam. Aproveitando o vácuo das forças progressistas, canalizando o medo, as
inseguranças e o ressentimento de grupos sociais contra inimigos imaginários –
sejam eles imigrantes, chineses, cotistas, sindicatos ou o movimento LGBT –,
dopando seus apoiadores com uma boa dose de negacionismo científico e
manipulando com brilhantismo a máquina das redes sociais e dos algoritmos, a
extrema direita tem pautado a reação à crise do mundo como o conhecemos.
À esquerda,
enfraquecida por décadas de desmonte neoliberal das entidades de representação
coletiva e pela adaptação de boa parte de suas direções aos limites da
democracia liberal, tem restado oferecer uma cambaleante resistência à ascensão
das forças reacionárias e à depenação das estruturas restantes do Estado,
quando não o triste papel de defensor das últimas posições de um sistema em
decomposição. Não por outro motivo, a extrema direita tem sido tão bem-sucedida
em vender a si própria como “antissistema”, embora seja ela mesma a expressão
mais pura e atrasada do sistema que diz combater.
Com mentiras,
notícias falsas, teorias da conspiração, ridicularizando adversários ou
recorrendo ao velho racismo, à misoginia e ao pânico moral, a extrema direita
tem conseguido motivar seus adeptos e oferecer uma saída para uma realidade
amplamente marcada pela desesperança: o escapismo para um passado utópico onde
não se ouvia falar em mudanças climáticas, comer carne ou ter um carro eram
marcadores de qualidade de vida e os papeis sociais eram rigorosamente
estáticos. Enquanto isso, a esquerda apresenta com cada vez menos entusiasmo
uma visão de mundo ceticista, desanimadora e autocontenciosa, com pitadas de
policiamento moral e hiperracionalização. Não é difícil pensar no que é mais
convidativo – o que não significa mais ético ou consequente com a realidade.
Encantar – palavra
banida do vocabulário da esquerda objetivista – as pessoas em torno de uma
proposta inspiradora de futuro nunca foi tão necessário. Temos pouco tempo para
fazermos mudanças radicais a nível global, enfrentando interesses econômicos
poderosos, que colocariam em xeque as concepções fundamentais do capitalismo e
da forma como nossa sociedade se organiza, se quisermos ter alguma chance de sobreviver
às mudanças climáticas e às múltiplas ameaças à vida no planeta Terra. Isso só
será possível conquistando maioria social e com capacidade de mobilização – o
que, por sua vez, depende de levarmos a melhor contra a extrema direita na
disputa das saídas da crise multifatorial que vivemos.
Para disputar
contra populistas reacionários fluentes na linguagem dos algoritmos, a esquerda
precisa mobilizar ela própria os afetos das pessoas diante da crise
generalizada ao seu redor, ao invés de insistir em uma abordagem cética ou no
retorno impossível para um ponto de equilíbrio. Apresentar a si própria como a
mais consequente alternativa ao “sistema”, porque é a única que questiona os
pressupostos da relação entre o poder político e o econômico que tornam a democracia
liberal uma fachada da manutenção dos interesses de uma minoria sobre o
desalento da maioria. Se alfabetizar no dialeto das redes sociais e entender
que, no século XXI, as “ruas” não têm hierarquia sobre o terreno digital, mas o
complementam.
A conjuntura
defensiva que hoje é reconhecida pela maior parte dos setores consequentes da
esquerda não pode nos fazer abdicar da defesa das nossas próprias bandeiras de
futuro, por mais distantes que possam parecer. É a partir delas que podemos
mobilizar afetos para passar da defesa à ação. Vale lembrar que Bolsonaro
defendia suas pautas mórbidas muitos anos antes de conquistarem a devoção de
milhões de pessoas, numa época em que elas pareciam para a grande maioria
inapropriadas. Ou que a luta contra a escala 6×1 irrompeu logo após um
resultado eleitoral muito desfavorável para os defensores da redução da jornada
de trabalho.
Há um limite para o
quanto somos capazes de nos mobilizar contra retrocessos. Depois de três,
quatro ou cinco derrotas, é natural que uma parte se pergunte se ainda vale a
pena sair de casa, comprometer sua vida pessoal, seu trabalho ou seus estudos
para tentar frear uma onda de retrocessos que parece avassaladora. Por isso as
manifestações de rua estão cada vez mais esvaziadas. É preciso dar às pessoas
uma razão para se engajar. Não apenas lutar “contra”, mas “a favor de”.
A esquerda tem as
melhores respostas para as crises que hoje ameaçam a vida no planeta Terra.
Decretar imediato cessar-fogo nas guerras existentes, recompor as estruturas do
Estado e as políticas públicas, substituir o orçamento militar por
investimentos pesados em compensação, adaptação e prevenção dos efeitos das
mudanças climáticas, descarbonizar urgentemente a economia e cobrar a conta de
quem lucrou por séculos com a exploração do nosso meio ambiente, reflorestar
áreas devastadas, remodelar nossas cidades, tornar todos os recursos ambientais
públicos e instituir sua gestão democrática, com protagonismo das comunidades e
povos originários. Resta torná-las convincentes, atrativas e motivadoras.
Mostrar que o caminho para superarmos essas crises passa por mais solidariedade
e cooperação e não por individualismo e divisão. Que a vida em um mundo de paz
e equilíbrio ambiental significa mais liberdade e qualidade de vida, não
restrições e policiamento.
Em 2025 precisamos
sonhar mais e encantar com um projeto de futuro digno e animador, mais
convincente do que as alternativas hipócritas da extrema direita.
Fonte: Jacobin
Brasil
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