Lazzarato: por que
é tão crucial superar o dólar
Lúcido,
cordial e direto, Maurizio Lazzarato (Meduna di Livenza, Itália, 1955) é um
pensador heterodoxo cujas reflexões sobre o funcionamento econômico do mundo
servem para entender a origem das guerras. Sobre esta última, ele diz sem
rodeios: “Desafiar a hegemonia do dólar é declarar guerra aos EUA”. Sociólogo e
filósofo, Lazzarato é um dos pais do movimento “Autonomia Operaia”, que Toni
Negri ajudou a fundar, uma consciência crítica da esquerda clássica italiana na
década de 1970. Exilado por este motivo em Paris, na década de 1980, Lazzarato
não desistiu de seus esforços para disseminar a consciência social, ora
dirigindo projetos de pesquisa sobre capitalismo financeiro na Universidade de
Paris, ora escrevendo ensaios como Guerras e o capital ou
o mais recente El Imperialismo del dólar (Tinta
Limón, 2023) onde analisa o mercado internacional como fator decisivo que os
norte-americanos utilizam para dominar o mundo e liberar sua força bruta quando
surgem contrapesos. A China é o alvo de sua fulminante estratégia imperial. Com
pesar, Lazzarato antecipa que “a Europa tem sido a grande perdedora nesta
batalha. A guerra na Ucrânia já conseguiu quebrar o eixo franco-alemão, bem
como transferi-lo para a Polônia, país liderado por um dos governos mais
reacionários do continente, reforçando assim as posições mais atlantistas”,
conclui.
·
A hegemonia global do dólar começa a ser questionada
por vários lados. Você acha que o declínio da moeda americana é irreversível?
Dizer
que o dólar começou a perder de vez a hegemonia é um pouco exagerado. O que
estamos presenciando é um relativo declínio dos Estados Unidos em relação à
posição que ocupavam desde a Segunda Guerra Mundial, quando passaram a
representar metade da produção mundial e organizaram a economia do planeta em
torno da supremacia de sua própria moeda. Não há dúvida de que hoje perderam
posições, porque outras regiões do mundo, como a Europa e alguns países do Sul
global, cresceram muito. Essa queda, evidentemente, ficou exposta após a crise
financeira de 2008 e fez com que países como a China ou mesmo a Rússia, embora
não seja bem um país do Sul global, queiram se desvincular do dólar como moeda
de troca, entendendo que funciona como um mecanismo global de captura de
riqueza. No entanto, não será fácil levar adiante esta ruptura, pois é tida é
como uma declaração de guerra pelos Estados Unidos.
·
Lula pediu aos países do Mercosul que criem sua própria
moeda, a China negocia a compra de petróleo em yuans e a Rússia exige o
pagamento de seu gás em rublos. Você considera essas propostas inviáveis?
A
dificuldade é que, por meio da dolarização do sistema monetário, os Estados
Unidos financiam seu próprio déficit, que é gigantesco. Se esses países e
regiões conseguirem se livrar de seu domínio, os norteamericanos perderão o
dinheiro de que precisam para manter as relações econômicas necessárias a seu
padrão de vida, o american way of life. Até 2008, parecia que não
havia problemas porque operávamos sob um sistema internacional baseado nas
relações entre os Estados Unidos e a China. Os chineses produziam mercadorias
baratas e os americanos as compravam. Isso permitiu à China acumular enormes
volumes de dólares, apesar de ser uma moeda que não lhe servia muito, por ser
desvinculada do ouro. A saída que encontraram foi adquirir dívida americana,
mas chegou 2008 e tudo mudou. Os chineses decidiram iniciar um processo de
desdolarização para se desvincularem, na medida do possível, da enorme
capacidade que os americanos têm de criar crises, uma atrás da outra. A guerra
na Ucrânia, por exemplo, não é bem um confronto entre democracia e autocracia
como querem que vejamos, mas sim uma guerra pela hegemonia do dólar. Tão claro.
Por isso mesmo, não tenho muitas esperanças no sucesso desses movimentos de
Lula e da China. Do ponto de vista econômico, será difícil para eles conseguir isso
a curto e médio prazo. Mas houve uma grande novidade indiscutível em tudo isso
e é que surgiram países dispostos a desafiar a hegemonia dos Estados Unidos do
ponto de vista político.
·
Você defende que as condições que levaram à guerra
na Ucrânia foram forjadas, em grande parte, após a crise de 2008. Por quê?
Porque
a guerra é uma “lei” inerente ao capitalismo. A tendência natural desse sistema
econômico é dominar o mercado mundial, embora nunca o tenha conseguido, porque
carece de uma estrutura estatal em nível global e há nações reativas à sua
expansão natural. A única maneira de o capitalismo quebrar qualquer resistência
que encontre em seu caminho é a guerra. Acho que o que estou dizendo é bem
fácil de entender. Se você estudar cuidadosamente as causas que levaram à
Primeira Guerra Mundial, encontrará muitas semelhanças com a situação em que
vivemos hoje.
·
Na sua opinião, qual é a maior semelhança?
O
desejo de dominar o mercado mundial. Antes da Primeira Guerra Mundial, havia
dois impérios coloniais estabelecidos, o francês e o britânico, e uma potência
emergente como a Alemanha que queria sua parte nos despojos. O conflito entre
essas três potências coloniais européias surgiu quando se tratava de determinar
quem estava no comando ou quem controlava o mercado mundial. Agora, os atores
mudaram, mas a essência do problema é a mesma. Temos um Sul global que deixou
de ser objeto de disputa política e passou a ser um sujeito político e
econômico que exige sua posição no mercado mundial. Essa é outra grande novidade
da tensão atual. A divisão que se estabeleceu no mundo durante quatro séculos,
entre um Norte que se desenvolveu explorando o Sul, começou a ser
definitivamente questionada porque esses países se rebelaram contra a
subordinação. A China, evidentemente, é a principal representante desse desejo
de emancipação. Na verdade, o alvo da guerra na Ucrânia são os chineses e não a
Rússia – uma potência militar, mas muito fraca economicamente. Acho que ninguém
duvida que hoje eles são o verdadeiro concorrente dos Estados Unidos.
·
Seria então China um país imperialista?
Depende.
Se olharmos para sua capacidade de exportar capital, sim. Embora não no sentido
clássico porque, ao contrário dos Estados Unidos, não ocupa territórios nem tem
aspirações militares, além das conhecidas, longe de suas fronteiras. No
entanto, é o primeiro parceiro comercial de quase todos os países
latino-americanos e tem uma grande presença na África por meio de uma série de
intercâmbios comerciais que visam, também, obter benefícios próprios. Você tem
que observar essas coisas se desenrolarem.
·
Você acha que as diferentes crises que estão sendo
vividas hoje estão acabando com a globalização, tal como era configurada há 30
anos?
Na
realidade, a globalização continua a funcionar, mas de uma forma diferente. As
cadeias de valor foram reorganizadas para privilegiar países considerados
aliados políticos. Por exemplo, o Ocidente tenta excluir a China de certos
processos de inovação tecnológica, impedindo-a até mesmo de ter contatos com
algumas empresas europeias. Portanto, estamos submersos num processo de
reorganização, porque a globalização que conhecemos nos últimos 30 anos chegou
ao fim. Daí as constantes tentativas dos Estados Unidos de repatriar as
empresas que deslocaram para a China ou a Europa, ainda que seja difícil
conseguir.
·
Que papel desempenha a Europa nesta luta?
A
Europa está sendo a primeira derrotada nesta guerra. O conflito na Ucrânia tem
muitas guerras dentro dele e uma das mais importantes é a travada pelos Estados
Unidos para controlar a Europa. Washington já conseguiu romper o eixo
franco-alemão e transferiu-o para a Polônia e outros países vizinhos, com o
objetivo de agravar a crise na Alemanha, que hoje atravessa graves
dificuldades, com a maior recessão econômica do continente. Não se pode
esquecer que os alemães desenvolveram, há décadas, uma política própria em
relação ao Oriente, a “Ostpolitik”, que envovia relações pragmáticas com
a Rússia e também com a China. É algo que s americanos não suportariam
na situação atual, e decidiram cortar destruindo os
gasodutos Nord Stream e obrigando o resto da UE a se alinhar com as
posições atlantistas que mais os favorecem.
Na
minha opinião, este é o segundo suicídio cometido pela Europa em um século,
após a Primeira Guerra Mundial. Ele cedeu completamente aos Estados Unidos e
agora tem que assumir as consequências – ou seja, a ascensão do nacionalismo,
que nada mais é do que novas formas de fascismo e extrema direita. É o caso da
Polônia, o país que os americanos colocaram no centro, sendo um dos estados
mais reaccionários da UE. O governo fascista italiano já estabeleceu relações
íntimas com eles e outros países com claras tendências de extrema-direita. Não
tenho dúvidas de que a partir de agora veremos a curva à direita acentuar-se em
toda a Europa.
·
Você acha que o resultado da guerra na Ucrânia pode
acelerar o totalitarismo europeu?
As
condições que provocaram a guerra na Ucrânia não terminam com a cessação dos
confrontos armados porque, insisto, o problema que existe é entre o Ocidente e
o Sul global. A China não poderá ocupar o lugar dos Estados Unidos e os
americanos não poderão derrotar a China e o Sul. Minha impressão é que
entraremos em um período de grande instabilidade política e um certo caos que
levará a situações imprevisíveis. A Europa e os Estados Unidos estão armando a
extrema direita na Ucrânia e ajudando os países politicamente reacionários do
Leste a construir exércitos muito poderosos. Embora não possamos saber como
terminará esta história de armamento da extrema-direita na Europa de Leste,
será mais um elemento de instabilidade que terá consequências para o resto do
continente. Mas quero enfatizar que um problema muito semelhante ocorreu há não
muitos anos. Os Estados Unidos armaram os islâmicos e depois tiveram que
declarar guerra para desarmá-los.
·
Onde estão os movimentos transformadores, como o
feminismo, nessa batalha pela hegemonia mundial e na ascensão dos nacionalismos
fascistas?
As
lutas do feminismo, do indigenismo ou do ambientalismo são muito importantes,
mas não são suficientes, porque o conflito contra o poder é muito mais
profundo.
Não
acredito que o feminismo tenha a capacidade de reverter a ascensão do fascismo
na Europa. Na minha opinião, é um movimento de emancipação muito importante,
mas não é revolucionário em termos clássicos. Sua grande contribuição é ter
apontado o sexismo sobre o qual esta sociedade foi construída, mas não responde
a um problema mais amplo. No Chile, por exemplo, todos pudemos constatar que o
movimento feminista foi um dos motores do enfrentamento social contra um Estado
patriarcal e privado, mas quando se chega a um certo nível de conflito surgem
questões que vão além da injustiça intrínseca do poder patriarcal . O movimento
feminista também foi muito importante nas “primaveras árabes”, mas não
conseguimos encontrar a estratégia que nos levaria à vitória. Os Estados
Unidos, por exemplo, acompanharam de perto a dinâmica do surto social
ocorrido no Chile em 2019 . Portanto, as lutas do feminismo, do
indigenismo ou do ambientalismo são muito importantes, mas não são suficientes,
porque o conflito contra o poder é muito mais profundo. Estou falando de um
poder geral, um poder internacional que nos obriga a pensar em um nível mais
amplo de enfrentamento.
·
O que acontece com a esquerda?
A
esquerda não entendeu a transformação sofrida na composição de classes. Continua
sem entende que ela mudou de modo notável. E quando você produz um confronto
contra o poder, só duas coisas podem acontecer: ou você ganha, ou você
retrocede. O exemplo chileno é muito instrutivo. Eles desafiaram o poder, mas
não conseguiram quebrá-lo e agora estão regredindo como vimos com a
Constituição de Pinochet.
·
Você não está um pouco pessimista?
Não,
não sou pessimista, mas realista. Estamos entrando em um novo momento político
que está provocando transformações sociais muito rapidamente. Vamos prestar
atenção à história. Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, em 1914, a
esquerda havia praticamente desaparecido e o que existia estava completamente
alinhado com o nacionalismo e seus exércitos. A social-democracia alemã votou
pelos créditos de guerra. Logo depois, Lênin liderou a revolução na Rússia. Não
estamos na mesma situação, mas a guerra introduz um tempo imprevisível que
exige que as forças políticas assumam esta nova temporalidade embora, no final,
seja sempre a necessidade, inserida no confronto, que faz uma reação emergir.
Assim diz a história – e esse é o meu desejo
Fonte:
Por Maurizio Lazzarato, em entrevista Gorka Castillo, em CTXT | Tradução:
Antonio Martins para Outras Palavras
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