Como
Erdogan colocou a Turquia na rota do autoritarismo
A
prisão em 19 de março de Ekrem Imamoglu, prefeito de
Istambul e principal adversário do presidente turco Recep Tayyip Erdogan, provocou revolta no
país e gerou uma onda de protestos contra o governo, os maiores desde
as manifestações pró-democracia do
Parque Gezi, em 2013.
A
prisão do oposicionista também foi criticada internacionalmente. A Comissão
Europeia reagiu dias depois apelando à Turquia para "manter os valores
democráticos". O Ministério do Exterior da Alemanha advertiu contra o uso
de "tribunais e prisões" na arena política do país, uma
"potência regional importante".
Para
especialistas, a Turquia há muitos anos caminha rumo à autocracia. Depois que
sobreviveu à tentativa de golpe de 2016, Erdogan ampliou seu
poder no comando do Executivo e apertou o cerco contra rivais e dissidentes
políticos.
Com
a prisão de Imamoglu, o político que
chegou à Presidência como reformista teria dado agora mais um "passo rumo
ao autoritarismo total", na avaliação da pesquisadora Hürcan Asli Aksoy,
da fundação alemã SWP, em entrevista ao portal Tagesschau. O que explica essa
trajetória?
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Início da carreira política
Nascido
em 1954 como filho de um guarda costeiro, Erdogan cresceu em Kasimpasa, bairro
humilde de Istambul predominantemente habitado por muçulmanos praticantes.
Durante a juventude, trabalhou como feirante, vendendo limonada e pães de
gergelim para ajudar a família a pagar as contas.
Por
obra do pai, foi parar em uma escola religiosa, onde teve aulas de retórica e
se destacou por sua eloquência. Seu apelido na época, segundo a imprensa turca,
era "rouxinol do Alcorão".
Em
1978, casou-se com Emine, com quem teve quatro filhos. Mais tarde, em 1981,
concluiu os estudos na Universidade Marmara, em Istambul. A instituição, porém,
afirma em seu site só ter virado universidade em julho de 1982. Por causa
disso, há muitos anos se debate se o político tem ou não um diploma de ensino
superior – requisito obrigatório para o exercício da Presidência.
Depois
dos estudos, Erdogan foi trabalhar na empresa de transporte municipal de
Istambul e, paralelo a isso, atuou como jogador semiprofissional de futebol.
Sua
carreira política começou na década de 1970, quando ele se juntou a um partido
conservador e religioso liderado pelo islamista Necmettin Erbakan. Em 1994,
numa vitória surpreendente, foi eleito prefeito de Istambul, apesar de até
então ser relativamente desconhecido.
O
divisor de águas em sua carreira política veio em 1998, quando ele foi
condenado à prisão e precisou abdicar da prefeitura por causa de um poema
considerado à época incitação ao ódio religioso.
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Fundação da AKP
Em
2001, Erdogan fundou, junto com outros políticos, o Partido para Justiça e
Desenvolvimento (AKP), de orientação conservadora e populista de direita.
No ano
seguinte, a sigla novata obteve 35% dos votos. O resultado teria qualificado
Erdogan para o posto de primeiro-ministro – não fosse a condenação. Ele acabou
assumindo o cargo em 2003, após uma mudança nas leis, e se reelegeu mais duas
vezes.
Durante
seu mandato, Erdogan impulsionou o crescimento econômico da Turquia e chegou
até mesmo a ser elogiado como reformista.
Em
2005, começaram as negociações oficiais para a admissão da Turquia na União Europeia. O processo
impulsionou a modernização do ordenamento jurídico do país em um ritmo inédito.
Erdogan fomentou o desenvolvimento da infraestrutura, e a classe média cresceu.
Mas a
maré virou em 2013, com os protestos no Parque Gezi. O que começou como uma
pequena manifestação contra um projeto de construção em Istambul logo se
transformou em um movimento contra a política autoritária de Erdogan e as
crescentes restrições à liberdade de expressão.
O
governo reagiu com gás lacrimogêneo, canhões de água e balas de borracha. Oito
pessoas morreram e milhares ficaram feridas. Erdogan classificou os protestos
como uma "tentativa de golpe" e fez deles uma oportunidade para
consolidar seu poder.
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Alinhamento à comunidade religiosa
Em seus
mais de 20 de poder, Erdogan apoiou a parcela da sociedade turca mais apegada à
religião. Uma de suas vitórias foi desfazer a proibição do uso do véu islâmico
(hijab) em prédios e repartições públicas. Sua esposa, Emine, sempre o usa; as
filhas do casal estudaram nos Estados Unidos para que não precisassem deixar de
cobrir a cabeça.
"Sou
um pai em sofrimento. Minhas duas filhas estudam em universidades no exterior
por causa disso, porque não podem fazer isso [usar o hijab] na Turquia, se
quiserem observar sua fé", disse Erdogan em 2004 ao canal francês LCI.
Em
2008, o governo dele conseguiu liberar o uso do hijab em universidades,
escolas, no serviço público, no Parlamento e na polícia.
Erdogan
também defende uma concepção conservadora de família. Para ele, a mulher é
"acima de tudo, uma mãe". "Tragam pelo menos três crianças ao
mundo" é um mantra antigo do político.
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Como Erdogan expande seu poder
Desde
2014, Erdogan é presidente da Turquia e tem se empenhado em obter ainda mais
poder. Uma de suas principais iniciativas neste sentido foi a introdução, em
2018, de um sistema que ampliou seus poderes de
presidente e
acabou com o cargo de primeiro-ministro. Desde então, cabe ao presidente – cuja
função antes era mais representativa – chefiar o Executivo.
Outra
mudança foi a restrição drástica da liberdade de imprensa: veículos
independentes foram fechados ou submetidos ao controle estatal, o trabalho de
jornalistas críticos ao governo foi se tornando cada vez mais difícil – os que
insistem estão expostos a intimidações e até mesmo à prisão. Nessa onda recente
de protestos, ao menos 11 profissionais foram detidos.
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Pressão sob a Justiça
Paralelo
a isso crescem também as prisões de oposicionistas. Após a tentativa de golpe fracassada de 2016, milhares de
adversários políticos e intelectuais foram detidos, a maioria acusada de apoiar
organizações terroristas.
Naquele
ano, na noite de 15 para 16 de julho, parte dos militares turcos tentou
destituir violentamente Erdogan. O governo atribuiu a iniciativa principalmente
a apoiadores de Fethullah Gülen, teólogo turco exilado nos Estados Unidos e que
faleceu em 2024. Milhares de servidores, juízes e procuradores foram demitidos
desde então.
Ainda
não se sabe como a prisão do prefeito de Istambul afetará Erdogan. Para a
pesquisadora Hürcan Asli Aksoy, da fundação SWP, a lógica de Erdogan parece
promissora: "Não necessariamente porque a abordagem dele agrada aos
eleitores, mas porque ele pode contar com todo o sistema estatal, que inclui
não só o aparato político, mas também o Judiciário."
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'Erdogan tenta transformar Turquia em autocracia ao
estilo russo'
A
diretora para Turquia do think tank
americano Middle East Institute, Gonul Tol está convencida de que a prisão do
prefeito de Istambul na semana passada representou muito mais do que uma
mudança para a cidade. Na opinião dela, foi um "ponto de virada" em
todo o sistema político da Turquia.
Tol diz
que a prisão se deve à determinação de Recep Tayyip Erdogan em permanecer no poder — posição que
ele ocupa há 22 anos, primeiro como primeiro-ministro e agora como presidente.
Erdogan
"está tentando transformar o país em uma autocracia ao estilo russo, onde
ele pode escolher seus próprios oponentes e não há surpresas nas urnas",
disse Tol em entrevista à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da
BBC).
Ela
afirma que o prefeito detido, Ekrem Imamoglu, de
54 anos, é uma ameaça política para Erdogan, pois seria um provável candidato
presidencial da oposição, capaz de atrair votos de diferentes segmentos da
sociedade turca.
A
especialista acredita que a única saída para o principal partido de oposição da
Turquia em sua batalha contra Erdogan é manter os protestos de rua contra a
prisão de Imamoglu, mesmo prevendo um aumento na repressão.
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Confira trechos de uma conversa por telefone com a pesquisadora e autora.
·
Que significado político a prisão do prefeito de
Istambul, Ekrem Imamoglu, tem para a Turquia?
Gonul
Tol: Este
é um ponto de virada no regime político da Turquia. Ao prender seu rival mais
importante, o presidente Erdogan está nos dizendo que quer transformar o regime
autoritário competitivo da Turquia em uma autocracia absoluta ao estilo russo.
Erdogan
tomou muitas medidas para minar a democracia da Turquia. No entanto, cientistas
políticos têm consistentemente descrito a Turquia como um regime autoritário
competitivo nos últimos anos, porque há um certo grau de competição: há
eleições, partidos políticos que não são clandestinos e, de tempos em tempos,
aqueles que estão no poder podem perder eleições.
Vimos
isso em 2024, quando a Turquia realizou eleições municipais e o principal
partido da oposição venceu todas as cidades. Isso foi um duro golpe para o
governo de Erdogan. Então a urna ainda é importante na Turquia.
Hoje,
as pessoas, e os jovens em particular, estão indo às ruas para manter seu
direito de voto. Mas Erdogan está tentando tirar isso deles com essa atitude.
Ele está tentando transformar o país em uma autocracia ao estilo russo, onde
ele pode escolher seus próprios oponentes e não há surpresas nas urnas.
·
Como você avalia as acusações de corrupção e terrorismo
contra Imamoglu, que ele rejeita?
Tol: É claro que elas são
motivadas politicamente. Seus advogados dizem que isso não tem base legal. E
grandes setores do país acreditam que há uma motivação política: Erdogan está
tentando derrubar seu oponente mais popular em um momento em que ele está perdendo
terreno nas pesquisas, a economia turca está em dificuldades e ele enfrenta
eleições em 2028.
·
Erdogan nega qualquer motivação política por trás dessas
acusações. Por que você e tantos outros estão convencidos de que essa alegação
dele é falsa?
Tol: Os advogados de
Imamoglu dizem que tiveram acesso negado ao arquivo do caso, o que é um direito
legal, e que a acusação é baseada em testemunhas secretas, o que se tornou uma
ferramenta de Erdogan para reprimir seus oponentes.
Não
existe mais um Estado de direito na Turquia. Os tribunais são altamente
politizados; Erdogan tem controle total sobre eles. Alguém pode ir para a
cadeia só por curtir algo no X.
Como é
possível que esses processos judiciais sejam sempre contra partidos da
oposição, enquanto os tribunais nunca movem um dedo quando se trata de
ilegalidades cometidas por pessoas próximas a Erdogan ou ao partido no poder, o
AKP?
O ponto
principal é que Erdogan minou o Estado de direito por muitos anos.
O ponto
de virada veio em 2016, após o golpe fracassado contra ele, quando ele
reestruturou os tribunais e os encheu de legalistas que basicamente aprovam
automaticamente qualquer decisão que ele tome.
·
Como você definiria Imamoglu e o desafio que ele
representa para Erdogan?
Tol: Ele é uma figura
política muito popular. Ela atrai não apenas pessoas do principal partido de
oposição, mas um grupo muito mais amplo: de conservadores a nacionalistas, de
turcos a curdos. Isso representa um perigo para Erdogan.
Tal
qual Erdogan, ele é alguém que consegue cultivar um relacionamento especial com
os eleitores. Ele é jovem e carismático. Tudo isso faz dele um rival formidável
para Erdogan. Nas pesquisas, Imamoglu está à frente de Erdogan.
·
Imamoglu está permanentemente fora da corrida
presidencial?
Tol: Sim, pouco antes de
sua prisão, revogaram seu diploma, necessário para concorrer à presidência.
Acho que Erdogan o manterá na prisão pelos próximos anos.
Mas é
claro que há algo incerto que devemos considerar: o que acontecerá com os
protestos? Se continuarem por meses e causarem danos significativos à economia,
os protestos poderão forçar um recuo de Erdogan.
No
entanto, neste momento não vejo nenhum desses sinais. Acredito que Erdogan será
mais agressivo nos próximos dias para garantir que os protestos sejam
reprimidos e que Imamoglu permaneça na prisão.
·
Quais são as chances da oposição turca nas próximas
eleições depois disso?
Tol: Bom, é difícil, não
é? Eles estão pedindo eleições antecipadas porque não querem esperar até 2028:
se conseguirem que as pessoas votem agora, há uma boa chance de Erdogan perder.
Mas a
única arma que o principal partido da oposição tem são os protestos. Eles não
podem lutar contra Erdogan nos tribunais que ele controla. Portanto, é
essencial que a oposição mantenha os protestos.
·
Em que Erdogan e Putin são parecidos ou diferentes?
Tol: Ambos querem
permanecer no poder pelo resto da vida. Nenhum deles vive em uma democracia.
Eles veem a democracia como um domínio exercido pela maioria.
Eles
certamente não são liberais. Ambos defendem valores conservadores. E eles
sentem nostalgia da história de seu país: Erdogan acha que o colapso do Império
Otomano foi uma tragédia, e Putin acha que o colapso da União Soviética foi uma
tragédia.
Então
eles são semelhantes em muitos aspectos.
Mas a
Turquia e a Rússia não são a mesma coisa. A Rússia tem vastos recursos
energéticos, o que a ajuda a se manter economicamente ativa, enquanto a Turquia
depende muito de outros países para manter sua economia ativa.
·
E como você definiria o relacionamento da Turquia com os
EUA agora sob o comando do presidente Donald Trump, que elogiou Erdogan como um
"bom líder"?
Tol: O Ministro das
Relações Exteriores da Turquia está em Washington agora (nesta quarta-feira).
Ambos os lados veem esse relacionamento como muito positivo. Eles esperam
resolver questões bilaterais. Trump vê Erdogan como um líder forte com quem ele
pode fazer negócios. E Erdogan vê Trump como um presidente americano mais
disposto a se encontrar com ele do que [Joe] Biden.
Fonte:
BBC New Brasil/DW Brasil
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