Sylvio Costa: Dados preciosos para entender
o Centrão
Graziella Testa,
pesquisadora de mão-cheia e jurada da edição deste ano do #Prêmio
CongressoemFoco, antecipou pra gente um pedaço da coisa aqui. Mas a pesquisa
que ela e outros dois cientistas políticos, Bruno Bolognesi e Lara Mesquita,
fizeram sobre o Centrão foi bem além da survey cujos resultados ela adiantou,
na coluna do Legis-Ativo.
Trato aqui daquilo que
me soou como as partes mais suculentas do trabalho, agora já publicado na
íntegra pela revista acadêmica Caderno CRH, da Universidade Federal da Bahia
(UFBA): a recuperação histórica desse agrupamento político peculiar e a análise
individual dos congressistas vinculados ao Centrão quanto a aspectos como
herança política e vivência e lealdade partidárias.
São dados preciosos
porque toda hora ouvimos falar e falamos de Centrão, mas é bastante difícil
identificá-lo tanto conceitualmente quanto na prática. É complicado até mesmo
determinar com precisão seus rastros partidários, já que, dependendo da
votação, o grupo que hoje tem em Arthur Lira sua mais vistosa liderança chegou
a arrastar consigo parlamentares de quase todos os partidos.
Daí a importância das
informações anteriormente divulgadas neste site. Bruno, Graziella e Lara
enviaram questionários a 539 cientistas políticos perguntando que partidos
políticos, em sua visão, compõem o Centrão. Com as respostas de 379 deles,
descobriram que os partidos mais associados ao Centrão são, em ordem
decrescente, PP, Republicanos, PL, PTB (que se juntou ao Patriota e virou PRD),
MDB, União Brasil, Podemos, PSD e Avante.
Cruzando dados de
atuação legislativa e comportamento eleitoral, os pesquisadores chegaram a
quatro partidos que representam o que poderíamos chamar de “núcleo duro” do
Centrão (expressão que não é deles, mas tomo a liberdade de usar aqui). São
eles: PSD, Podemos, PP e Republicanos.
Uma análise do perfil
individual dos membros do Centrão apontou características muito interessantes.
Resumidamente, é possível dizer que eles são:
• mais frequentemente herdeiros de outros
políticos (28,3% deles, contra 20,1% dos demais deputados;
• possuem menos vínculos com entidades
associativas, tais como sindicatos, igrejas e ONGs (47,7% a 57,6%);
• ocuparam menos cargos de direção
partidária (29,6% x 36,9%); e
• estiveram em maior número de partidos
antes de chegarem ao Congresso (média de 2,05 contra 1,67).
Falamos, portanto, de
“parlamentares com lealdade menor às legendas das quais faziam parte, ainda que
se possa afirmar que lealdade partidária não seja um traço forte do sistema
político brasileiro”, destacam os autores.
Notável que esses
deputados tenham chegado ao centro do poder estabelecendo uma proporção menor
de lealdades com os partidos pelos quais passaram. Já no Parlamento, apenas 9%
dos deputados do Centrão atuaram em algum momento como lideranças de suas bancadas
partidárias, enquanto os deputados dos demais partidos fora do bloco foram
líderes das bancadas de seus partidos em 18,8% das vezes” — prosseguem eles.
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Livres para negociar
A pesquisa também
quantificou as liberações de bancada na Câmara dos Deputados ao longo de duas
décadas, de 1989 a 2019. É um indicador importante, que revela o grau de coesão
partidária nas chamadas votações nominais. Isto é, naquelas em que o congressista
vota individualmente — ao contrário do que ocorre por exemplo nas votações
simbólicas, nas quais líderes votam por liderados. Havendo menos concordância
interna quanto aos temas em debate, maior a tendência a liberar parlamentares a
votarem como bem entenderem. Liberar mais a bancada também pode apontar maior
disponibilidade para o fisiologismo, ou seja, para a troca do voto por algum
tipo de benefício direto (cargos, recursos e outros favores).
Bastante esclarecedor
o resultado desse levantamento.
<><> Média
de liberação de bancada nos partidos (1989-2019)
Interessante notar,
como ressaltam os pesquisadores, que o percentual de liberações de bancadas
aumenta a partir de 2007, após o Supremo Tribunal Federal (STF) restringir as
possibilidades de mudança de partido político. Desde então aumentou o risco de
perda do mandato em caso de migração partidária, ante a vitória no STF da
máxima de que, em se tratando de eleições proporcionais (como as de deputados e
vereadores), “o mandato pertence ao partido”. De 1999 a 2006, revela o
trabalho, a taxa de liberação ficou ao redor de 2%. A partir de 2007, nunca
esteve abaixo de 4%, atingindo o seu ápice entre 2011 e 2014, quando se
aproximou de 8%.
Pontuam os
pesquisadores que o Congresso aprovou, a partir de 2017, várias mudanças legais
para “minimizar a esfera de atuação dos pequenos partidos”. A mais importante
delas foi a Emenda Constitucional 97, que proibiu as coligações em eleições
proporcionais e estabeleceu uma cláusula de desempenho eleitoral mínimo (a
famosa cláusula de barreira) para que os partidos tivessem acesso ao fundo
partidário e ao horário de propaganda no rádio e na TV.
Resultado: “Os
pequenos partidos do Centrão perderam com a reforma de 2017. Já os partidos
médios parecem ter herdado o legado dos pequenos que deixaram de receber
recursos. (…) Dentre os partidos classificados como Centrão – PP, PSD,
Republicanos e Podemos –, somente o Podemos não viu sua bancada crescer no
período. (…) A reforma de 2017 pode ter diminuído o número de pequenos partidos
de comportamento parlamentar fisiológico, mas concentrou recursos e poder em
partidos médios com comportamento semelhante.”
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História e conceito
Quem deu origem à
articulação parlamentar que terminaria ficando conhecida como Centrão foi um
grupo de deputados de perfil até hoje típico dos integrantes do agrupamento.
Liberal na teoria, fisiológico na conduta. O grupo, surgido durante os
trabalhos da Constituinte de 1987 e 1988, era capitaneado pelo deputado
paulista Roberto Cardoso Alves, que atacava o poder excessivo dos líderes
partidários, uma suposta tendência esquerdizante nos rumos da Constituição
então em obras, defendendo a troca do voto pela concessão de favores políticos
por parte do governo. Robertão, como ele era conhecido, explicava com algum
deboche que se inspirava em São Francisco: “É dando que se recebe”.
Alertam os autores,
contudo, que o Centrão adquiriu nova configuração a partir de 2010 e, mais
ainda, depois da ascensão de Eduardo Cunha à presidência da Câmara dos
Deputados, em 2015. É o que eles chamam de Centrão 2.0, ainda mais fisiológico
e menos comprometido com a agenda econômica liberal. Se antes o Centrão era a
reunião daqueles que se julgavam na periferia do poder, a partir de Eduardo
Cunha ele se torna — e aqui a afirmação é por minha conta e risco — a expressão
maior do poder parlamentar, com controle sobre a pauta legislativa, cargos
federais e, cada vez mais, emendas orçamentárias. E, agora sim, nas palavras
dos autores:
“O que vemos é uma
mudança no sentido da atomização do papel dos partidos políticos como
principais interlocutores com o governo e uma agenda baseada exclusivamente em
benefícios egoístas para os parlamentares individuais” — afirmam os
pesquisadores.
“É o descontentamento
da base parlamentar aglutinada em torno de Cunha, o principal motor do centrão
em busca de cargos e verbas que conduz o processo de impeachment da presidente
Dilma Rousseff. O Centrão se torna um ator institucional mais uma vez suprapartidário
e disperso no Parlamento. Ainda que alguns partidos, como veremos mais adiante,
pareçam estar mais alinhados ao bloco do que outros, é na fragilidade
partidária e na figura do parlamentar alijado dos grandes negócios com o
governo – como o colégio de líderes e as comissões – que o Centrão deságua em
força.
O ‘Centrão 2.0’ é um
agrupamento que se aglutina em torno da demanda clientelista de seus membros e
cuja agenda ideológica fica relegada em segundo plano. É apenas na oposição ao
governo de esquerda, já no quarto mandato do Partido dos Trabalhadores (PT),
que encontramos verniz conservador para a organização do Centrão como um bloco
suprapartidário.”
Vimos nos últimos anos
um Centrão ainda mais vitaminado. Após ser alvo de críticas constantes do
ex-presidente Bolsonaro, o agrupamento ampliou muito os seus poderes justamente
no seu governo, sobretudo depois da eleição de Arthur Lira como presidente da
Câmara, em 2021: “O Centrão, congregado em torno da presidência da Câmara dos
Deputados, passa a desfrutar de carta branca para fortalecer sua atuação
clientelista e contar com a mesma presidência como garantidor das demandas
individuais dos parlamentares em detrimento da Presidência da República. Em
resumo, a lealdade dos parlamentares se desloca centripetamente em direção ao
Parlamento. É essa a mudança institucional mais importante da qual o Centrão se
aproveita para consolidar-se como grupo capaz de garantir a governabilidade,
para o bem e para o mal, nos governos pós-impeachment de 2016.”
Jorraram sem parar
novos incentivos legais para uma atuação cada vez mais individualista dos
deputados e senadores. Uma das mais importantes foi a criação do Fundo Especial
de Assistência Eleitoral, mais conhecido como fundo eleitoral, e a mega
turbinada no Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos –
o popular fundo partidário. Concluem os autores: “O deputado interessado em se
reeleger depende mais de sua atuação individual para arrecadar recursos tanto
do presidente da Câmara quanto do presidente do partido, além de que atuar nas
fileiras do governo já não garante aumento da probabilidade de vitória
eleitoral, uma vez que os recursos estão retidos nos presidentes de partido e
no presidente da Câmara dos Deputados (…) É a somatória do clientelismo como
prática eleitoral com o fisiologismo como prática legislativa que coloca o
parlamentar do centrão como um ente autônomo ao partido, seja ao angariar
votos, seja ao representar.”
Em tempo: Graziella
Testa, mestre (UnB) e doutora (USP) em Ciência Política, é professora da
Fundação Getúlio Vargas (FGV). Lara Mesquista, doutora em Ciência Política pela
Uerj, e pesquisadora da FGV. Bruno Bolgnesi, doutor em Ciência Política pela
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), fez pós-doutorado na Universidade
de Oxford, na Inglaterra, e é professor na Federal do Paraná (UFPR).
• Deputado enviou R$ 2,7 milhões em
emendas a comunidade terapêutica criada por colega
Ao longo dos anos de
2023 e 2024, o deputado Eduardo da Fonte (PP-PE) dedicou um valor considerável
de suas emendas individuais ao patrocínio de comunidades terapêuticas
vinculadas a aliados. Nesses dois anos, o deputado realizou sete repasses, no
total de R$ 2,7 milhões, à Sociedade Assistencial Saravida. A organização foi
fundada por dois colegas de seu partido: o deputado estadual Cleiton Collins e
sua esposa, a deputada federal Michele Collins, ambos de Pernambuco.
Michele é uma
integrante recém-chegada ao PP na Câmara: ela era suplente até o mês de junho,
quando assumiu a vaga de Clarissa Tércio, que se licenciou para se dedicar às
eleições municipais. A nova deputada e o marido são aliados próximos do
deputado Lula da Fonte (PP-PE), filho de Eduardo. Lula, inclusive, fez uma
doação para a campanha de Cleiton Collins em 2022.
Michele e Cleiton são
pastores do ministério Recuperando Vidas com Jesus, atuante em Recife (PE). Em
seu site oficial, a entidade afirma que “conta com a estrutura de atendimento
aos dependentes químicos em casas de recuperação instaladas por todo estado, a
exemplo da Sociedade Assistencial Saravida”.
Apesar de não estarem
cadastrados como administradores no CNPJ da entidade, os dois são figuras
frequentes no conteúdo das redes sociais da Saravida, apresentando-se
publicamente como seus fundadores. A rede tem como presidente Emanoele de
Morais de Albuquerque, que em 2022 chegou a exercer o cargo de assessora de
gabinete de Michele durante seu mandato como vereadora.
Os repasses foram
identificados a partir de dados da Frente Parlamentar Mista para a Promoção da
Saúde Mental por meio do Portal da Transparência. Ao todo, foram sete emendas
distribuídas por Eduardo da Fonte neste mandato, além de outros repasses menores
na legislatura anterior. A íntegra da lista de emendas parlamentares para a
Saravida pode ser acessada aqui.
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Fragilidade no controle
O advogado Antonio
Rodrigo Machado, mestre em direito, professor de direito administrativo do
Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), avalia que os
repasses não chegam a configurar crime, mas podem ser questionados em sua
constitucionalidade, pois há indícios de violação do princípio da
impessoalidade.
Ex-presidente da
Comissão de Legislação Anticorrupção e Compliance da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) do Direito Federal, ele alerta que o atual desenho de distribuição
de emendas parlamentares não apenas permite que situações do tipo aconteçam,
mas cria condições para que se tornem comuns. “O sistema de destinação de
emendas parlamentares para organizações não-governamentais é, por si só,
bastante controverso. Ele abre precedentes para que o fato de um aliado
político ser dirigente direto ou indireto daquela Ong não faça, por si só,
muita diferença, mesmo sendo capaz inclusive de alavancar determinadas
carreiras políticas”.
A contadora Josita
Rosa, presidente do Instituto Fiscalização e Controle (IFC), também enxerga com
preocupação o envio de emendas de um parlamentar à organização ligada a uma
colega de partido. “As pessoas que recebem mandatos públicos deveriam prestar contas
aos eleitores. Mas infelizmente, ao longo dos últimos anos, o instituto das
emendas parlamentares serviu muito mais para facilitar a corrupção do que
melhorar a vida da população, em especial dos mais necessitados”, lamentou.
<><> Outro
lado
O Congresso em Foco
questionou o gabinete de Eduardo da Fonte sobre os motivos que levaram a
destinar emendas parlamentares a uma instituição ligada aos seus colegas de
partido. Os gabinetes de Michele e Cleiton Collins também foram acionados. A
assessoria de comunicação da deputada foi a única a se pronunciar. Segue a
íntegra da nota:
“É importante
esclarecer que, embora tenha sido idealizada e fundada pela deputada federal
Missionária Michele Collins e pelo seu esposo, o deputado estadual Pastor
Cleiton Collins, o corpo administrativo e técnico da Saravida é composto por
profissionais sem vínculos políticos, assegurando a total independência e
integridade da instituição.
O deputado federal
Eduardo da Fonte destinou a entidade Saravida que tem 21 anos de atuação e já
recebeu a visita de representantes da Organização das Nações Unidas (ONU), por
entender ser merecedora desse incentivo para a continuidade do serviço sério e
de qualidade realizado.A parlamentar acredita que todo o processo e a aplicação
dos recursos recebidos pela instituição foram realizados conforme a legislação
vigente, sendo transparente, que pode ser acompanhado no sistema transferegov.
Missionária Michele
deixa claro que não participa e nunca participou da decisão de nenhum
parlamentar acerca de envio de recursos para qualquer instituição”.
Também foram enviados
questionamentos à rede Saravida sobre qual foi o destino dado ao dinheiro
recebido por meio das emendas. A entidade não se pronunciou.
Fonte: Congresso em
Foco
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