O adeus do pajé que falava com as árvores
O tcheramoi Alcindo
Moreira Wherá Tupã morreu neste 14 de setembro aos 114 anos de idade. Líder na
defesa da terra e dos direitos indígenas semeou saberes por esse mundo de
Nhanderu, como testemunhei em nossas andanças, uma em 2007, quando acompanhados
do seu filho Geraldo, visitamos a pajé Zeneida Lima no Marajó. Pude presenciar
o encontro de sábios: o líder religioso guarani de Santa Catarina com a
herdeira da pajelança cabocla do Pará.
Outro evento foi na
Semana dos Povos Indígenas, em 2011, na PUC de Goiás, que organizou a mesa
Diálogos interculturais: Universidade e Sustentabilidade Indígena para discutir
a ciência, que circula na universidade e o saber indígena, que se transmite oralmente,
renovado e atualizado. Abordamos o mesmo tema depois no Museu do Índio (RJ).
De 2003 a 2011, nos
encontramos duas vezes ao ano no Curso de Magistério Kuaa Mboé. Juntos, demos
aulas na mesma sala para 80 professores bilingues de escolas indígenas situadas
em cinco estados (RS, PR, SC, RJ e ES). Wherá Tupã usava a língua guarani e eu,
o português. No intervalo, não desgrudava dele e da dona Rosa, bebendo as
sábias palavras do casal. Dessa forma, fomos tecendo vínculos de amizade e
afeto, até que ele me convidou a visitar sua aldeia de nome poético Reflexo das
Águas Cristalinas (Yynn Moroti Wherá) em Biguaçu (SC).
Em um desses encontros
conversamos muito. De noite sonhei que meu pai era Nhanderu Tenondé, o Criador
do mundo, mas Ele não me reconhecia como seu filho. Acordei suado, suado,
decidido a pedir exame do DNA para verificar se Nhanderu era mesmo meu pai. A questão
da paternidade divina surgia sempre na interlocução com meu amigo Wherá Tupã.
Afinal, quem era esse pajé guarani que fazia até um órfão desamparado em sua fé
se sentir filho de Nhanderu?
Nascido em 1909, Wherá
Tupá Alcindo Moreira comemorou seu aniversário de 114 anos em 25 de janeiro de
2024. Casado com Poty-Dja Rosa Mariani Cavalheiro, com ela teve oito filhos –
cinco mulheres e três homens – e mais de 50 netos, três dezenas de bisnetos e
vários tataranetos. Com um século de existência, esbanjando saúde e vitalidade,
viajava por esse Brasil, disseminando conhecimentos do bem viver.
• Fios da felicidade
Todo mundo se
perguntava de onde é que esse homem baixinho, pernas e braços musculosos,
cabelos grisalhos, olhos de um brilho extraordinário, tirava tanta força e
energia?
– Eu cheguei aos 100
anos, porque fui educado como um guarani – conta. Aprendeu a cuidar do corpo e
do espírito com igual atenção. Acordava com os galos, fazia suas orações e, já
adulto, aconselhava os mais jovens, ia à roça plantar milho, feijão, aipim,
batata doce e hortaliças, base de sua alimentação, onde não entra nem sal, nem
açúcar.
Ele tinha a certeza de
que o segredo de sua longevidade residia no afeto familiar. “Ninguém é feliz
sozinho” – dizia. Dessa forma, ao longo da vida, teceu os fios da felicidade
cotidiana, no convívio com as pessoas queridas, no trabalho diário no qual realizava
exercícios físicos e se alimentava de comida saudável.
O tcheramoi Wherá Tupã
presidia os rituais na Casa de Reza – “a Opy, lugar de aprendizagem da
sabedoria de Nhanderu sobre a natureza do mundo e das pessoas”. Lá batizava
crianças, orientava e aconselhava jovens e cuidava da saúde de todos, com ajuda
de Nhanderu, de quem recebia inspiração e com quem vivia em contato permanente:
– Doença? Não sei o
que é isto. Médico fica longe de mim. Me trato com as plantas que cultivo na
aldeia, seguindo a sabedoria dos meus avós.
Sua sabedoria
ancestral entrou na universidade em 2015. Com sua ajuda, seus filhos Geraldo e
Wanderlei Moreira realizaram pesquisa no Curso de Licenciatura Intercultural
Indígena do Sul da Mata Atlântica da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), intitulada “Calendário Cosmológico: os símbolos e as constelações na
visão guarani”, do qual Wherá Tupã foi o principal “livro” consultado,
constituindo-se no orientador de fato. Integrante da banca, pude acompanhar com
ele e dona Rosa a defesa deste trabalho.
– Os Guarani para
verem a terra, olham o céu. Com a leitura do céu, elaboram o calendário
cosmológico chamado Apyka Miri, que conta o tempo, marca o clima, a chegada da
chuva, a época de extrair o mel e de semear, o tempo da colheita e de fazer
artesanato, a duração das marés, a caça e a pesca, tudo em sintonia com
Nhanderu Tenondé – o Pai Criador e com Nhamandu – o Pai Sol. A astronomia e a
religião dão suporte para a agricultura guarani, que tem o pé na terra e o olho
no céu.
• A voz das árvores
O sábio Wherá Tupã
aprendeu botânica com seu pai, João Sabino Kauã, de quem recebeu inúmeras
sementes. O plantio e a colheita são frutos da observação sistemática, mas
constituem também expressões máximas da religiosidade, do trabalho coletivo e
da partilha. Ele conhece as plantas, não apenas da mata atlântica.
Na ilha do Marajó,
tive o privilégio de entrar na floresta com ele e com a pajé Zeneida Lima,
quando assisti uma aula de botânica. Ali, onde só víamos “árvores genéricas”,
os dois sábios nomeavam cada espécie. Naquela ocasião, cada planta foi
identificada, cheirada, tocada com carinho, reverenciada, catalogada,
classificada, analisada, com suas propriedades medicinais e alimentícias
reconhecidas e enaltecidas.
Debaixo da copa de uma
árvore, por onde penetrava o sol, a três metros de distância de onde eu me
encontrava ao lado do amazonense Amaro Júnior, que filmava com uma câmara
japonesa, Wherá Tupã sentenciou:
– As árvores falam, a
gente é que desaprendeu e não sabe mais escutar o que elas dizem.
Disfarço sempre minha
emoção, buscando refúgio no humor.
– Não estou escutando
– brinquei.
Wherá pediu:
– Você não escuta
porque está longe. Venha aqui pra perto.
Fui:
– Continuo sem nada
ouvir. O que a árvore está dizendo?
– Você não ouve porque
só escuta com os ouvidos, não escuta com os olhos. Veja as marcas das unhas do
animal, que são as letras de Nhanderu escritas no céu e na natureza. Precisa
aprender a ler essas letras.
Vi as marcas das
unhas. Era, se a memória não me trai, um jatobazeiro, que informava a passagem
por seu tronco de um roedor, cujo nome não lembro, meia hora antes – segundo o
que ouviu Wherá. Mas não consegui ler o relógio da árvore. Wherá mostrou a casca
ferida com a resina ainda fresca:
– Ainda está
escorrendo – disse. Faz pouco tempo que passou.
• Caminho florido
As árvores falam e os
guaranis escutam, porque para eles toda a natureza faz parte da sociedade, não
está separada da cultura. As plantas, os animais, os acidentes geográficos, os
rios, as montanhas, os fenômenos meteorológicos são dotados de humanidade e de
consciência.
– Essa terra que
pisamos é o nosso irmão, ela tem vida, é uma pessoa, tem alma.
Esse é o arandu porã,
o bom conhecimento que os Guarani trazem para a academia e que começa a fazer
parte das bibliotecas em monografias, dissertações, teses e livros escritos por
mestres e doutores, indígenas ou não. Alguns foram ouvir Wherá Tupã lá na sua
aldeia.
É o caso da tese
“Música e xamanismo guarani” defendida na USP pela doutora Deise Montardo,
professora da Universidade Federal do Amazonas e do livro “O caminhar sob a
luz, território Mbyá à beira do oceano” de Maria Inês Ladeira, assim como as
pesquisas de Ana Lucia Notzold, Flávia Melo, Aguirre Neira, Ismênia Vieira,
Helena Alpini e tantas outras da UFSC.
Esses trabalhos
criaram uma ponte entre os Guarani e a Universidade, confirmando a conclusão de
Darell Posey:
“Se o conhecimento
indígena for levado a sério pela ciência moderna e incorporado aos programas de
pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo que são: povos
engenhosos, inteligentes e práticos, que sobreviveram com sucesso por milhares de
anos…”
A botânica é um campo
que os Guarani dominam bem, especialmente as plantas medicinais. Wherá Tupã era
procurado por gente de longe, até mesmo não-indígenas. O tratamento que ele
dava foi descrito por Diogo Oliveira do Laboratório de Etnobotânica do Centro
de Ciências Biológicas da UFSC.
Na aldeia de Biguaçu
existe uma vereda – a trilha da escola, chamada Tape Poty, que significa
caminho florido – onde foram colocadas placas com os nomes de plantas
medicinais identificadas por Wherá Tupã.
– Vocês pisam nos
remédios e não sabem – ele costumava dizer.
• Universidade indígena
Esses saberes foram
durante séculos pisoteados e discriminados como fruto de culturas “primitivas”
e de “obstáculo ao progresso” como sinaliza Jorge Terena:
“Eles veem a tradição
viva como primitiva, porque não segue o paradigma ocidental. Assim, os costumes
e as tradições, mesmo sendo adequados para a sobrevivência, deixam de ser
considerados como estratégia de futuro, porque são ou estão no passado. Tudo aquilo
que não é do âmbito do Ocidente é considerado do passado, desenvolvendo uma
noção equivocada em relação aos povos tradicionais, sobre o seu espaço na
história”.
Hoje, a troca de
conhecimentos começa a ser efetiva graças à presença de indígenas na academia,
o que não constitui apenas uma política de inclusão social, mas a possibilidade
de construção de outro modelo de universidade, capaz de repensar sua metodologia
de produção e circulação de saberes e de conviver com taxonomias cujos
critérios lógicos são outros.
Não se trata,
portanto, de somente indagar o que a instituição pode fazer por seus alunos
indígenas, mas de saber o que eles podem fazer pela universidade, que ganha com
a presença de representantes de outras culturas e de outras línguas, portadores
de saberes e de formas diferentes de produzi-los.
A ciência aspira a
universalidade, mas só é possível obter um conhecimento universal se houver
diálogo entre saberes particulares. Esse diálogo é estimulado com a presença de
indígenas nas salas de aula, nos laboratórios e nos corredores das universidades.
Alcindo Whera Tupã
conversava com crianças e jovens. Quem sabe essa nova geração aprende a falar
com as árvores, cuidando delas, não deixando que sejam assassinadas pelo fogo e
pela ganância. Podem assim se encantar com o sagrado e eliminar o pesadelo de
ter de pedir exame de DNA do Papá Tenondé.
Fonte: Por José
Ribamar Bessa Freire, em TaquiPraTi
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